Antonio Fabiano
Como sucede aos mais fecundos pensadores, Kant pôde contar com uma legião infindável de discípulos para a sua doutrina filosófica que apresentava traços originais e novíssimos. Não poucos, nem menos ilustres mestres, debruçaram-se sobre escritos seus para pretensa ratificação ou retificação. Isto, enquanto ele vivia e postumamente. Veja-se, oportunamente, o idealismo pós-kantiano e também aquilo que denominou-se neokantismo. Immanuel Kant teve notável prestígio, mas enfrentou a oposição de muitos e respeitáveis intelectuais. Propositalmente evocaremos apenas Friedrich Nietzsche, esta figura emblemática que nos dá hiperbólica mostra disso.
Sempre que lhe pareceu convir, Nietzsche atacou Kant em seus escritos. E, como era de seu feitio, não o fez apenas em nível doutrinal, mas também pessoal. Para Nietzsche, que se ocupa assiduamente em demolir toda moral “padrão”, a de Kant expressa perfeitamente o que ele chama em "Humano, demasiado humano" (1878) de famigerada antiga moral, algo ironicamente tido como belo e ingênuo (NIETZSCHE, 2005, p.33). E não apenas aí a moral de Kant é destroçada por este outro alemão.
Scarlett Marton desenvolve em seu livro "Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos", um excelente capítulo dedicado inteiramente à crítica feita por este último filósofo à doutrina moral kantiana [1]. Não há como negar a genialidade e perspicácia do espírito de Nietzsche, que opõe-se desvairadamente ao “chinês de Koenigsberg”, ridicularizando-o de diversas maneiras, desde “fanático da moral à la Rousseau” a “idiota” etc. Para ele, o propósito de Kant na primeira Crítica era impor limites à razão para poder destarte forjar a moralidade em um mundo transcendente. Segundo Nietzsche, só para viabilizar um “reino moral”, Kant se obriga a inventar um mundo indemonstrável, a fim de fazer este mesmo “reino moral” absolutamente invulnerável, inclusive e talvez principalmente à própria razão. Marton escreve: Para ele [Nietzsche], o filósofo [Kant] seria hipócrita, pois lançou mão dos mais diversos estratagemas para tornar a moralidade invulnerável. (MARTON, 1990, p. 109). Scarlett nos inteira, com clareza de percepção: Nietzsche não pode acatar a idéia de autonomia, ponto central da doutrina moral kantiana, nem aceitar o seu rigorismo e formalismo. Diferença de perspectivas! Mas Kant é antes analista do que moralista (MARTON, 1990, p. 110) [2]. Realmente não seria tragável, a Nietzsche, todo o viés da moral kantiana, ainda mais quando se tem em conta as evidentes diferenças de perspectiva até no que cada um deles entende por filosofia. Impossível seria pôr em acordo estes dois gênios. Dentre observações pungentes, Nietzsche não rechaça apenas a idéia de Kant pretender autenticar a moralidade em um mundo supra-sensível. Ele se espraia em mais sutilezas e por isso pode-se dizer que cai em alguns equívocos:
"em Kant, a idéia de autonomia tem por horizonte a universalidade. Se o homem, ao submeter-se à lei moral, obedece apenas a si mesmo, é porque a autoridade do dever é a autoridade da própria razão, ou seja, da faculdade pela qual ele é homem. Ora, Nietzsche parece identificar universal e coletivo; é por essa razão que despreza a idéia kantiana de autonomia, investe contra a universalidade do imperativo categórico, pensa a lei moral como fruto de mera convenção e talvez seja levado ainda a considerar a doutrina moral de Kant defensora dos interesses gregários." (MARTON, 1990, p.118).
NOTAS
[1] Capítulo III. Intitula-se “A crítica à doutrina moral kantiana”.
[2] “Para que uma ação tenha valor moral, Kant não exige que seu autor se despoje de seus sentimentos e afecções, mas que, ao agir, se deixe guiar apenas por sua vontade governada pela razão. De natureza híbrida, o ser humano revela-se dotado de razão e sensibilidade, não podendo desfazer-se em vida de nenhuma delas. Referindo-se ao homem, disse Pascal: “ni ange ni bête”; e Kant talvez dissesse, num sentido análogo: “ange et bête”. Não se trata, portanto, de um ser humano tornar-se insensível para capacitar-se a agir moralmente – e sim de eleger como único motivo de uma ação a obediência incondicional à lei moral, sem levar em conta, em momento algum, qualquer móvel baseado em inclinações sensíveis. Aqui mostra o rigorismo da doutrina kantiana: ela não procura aconselhar nem persuadir, mas quer apreender a moralidade em seu estado puro. O rigorismo é, pois, rigor de pensamento: mesmo que nunca tenha existido neste mundo um ato feito por puro dever, isso em nada altera as exigências da moral. Para Nietzsche, esse aspecto da filosofia prática trai, ainda uma vez, o apelo ao transcendente: ‘se se chega a supor que a norma moral, como pensava Kant, nunca foi perfeitamente realizada e permanece suspensa sobre a realidade, como uma espécie de além, sem nunca nela cair, então, a moral implicaria um juízo sobre a totalidade em si, que permitiria colocar a questão: de onde ela se arroga o direito para tanto? como a parte vem a erigir-se aqui enquanto juiz do todo?’ (XII, 7 (62)).” (MARTON, 1990, p. 110-111).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEFRANC, Jean. "Compreender Nietzsche". 3.ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
MARTON, Scarlett. "Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos". São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich. "Humano, demasiado humano". São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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