Do livro Rosa
de Pedra (1953):
SONETO
PARA O MOMENTÂNEO REENCONTRO DA PERDIDA INFÂNCIA
Não.
Esse não, porque esse quadro encerra
os
seus limites infantis de outrora
quando
plantava as mãos de medo e terra
nos
flocos de algodão sujos de aurora.
Não
esse quadro antigo em que se aferra,
surda,
uma dor que uma antes criança chora
perdida
no caminho que a desterra
e
no pranto que então seus anos mora.
Esse
não: que ainda busca o procurado
abismo
de onde os traços seus, feridos,
surpreendam
voz pedindo claros sons.
Não
essa inútil forma em céu crestado
descolorindo
os ecos ressurgidos
nos
dedos que inventaram lírio e tons.
(p.
219)
SONETO
TRISTE PARA MINHA INFÂNCIA
De
silêncios me fiz, e de agonia
vi,
crescente, meu rosto saturado.
Tudo
de mágoa e dor, tudo jazia
nos
meus braços de infante degredado.
Culpa
não tinha a voz que em mim nascia
pedindo
esses desejos – sonho ousado
por
onde o meu olhar navegaria
de
cores e de anseios penetrado.
Buscava
uma beleza antecipada
–
a condição mais pura de harmonia
nessa
infância de medos tatuada,
querendo-me
embeber de inacabada
procura
que, em meu ser, superaria
a
minha triste infância renegada.
(p.
224)
CANÇÃO
DA MINHA RUA
Rua
triste
rua
feia
rua
velha
sem
calçadas
rua
fria
tão
distante...
Sim,
és triste
feia
e velha
és
distante
mas
não importa.
Mesmo
assim
és
minha rua
onde
vivo os meus sonhares
onde
sofro os meus pesares
onde
sinto os meus amores.
Para
mim
tu
tens belezas
que
não há
nas
outras ruas.
Se
alguém
te
tem desprezo
deixa
que
eu te quero bem.
Eu
conheço a tua história
tu
me contas teus sonhares
tu
me contas teus pesares
tu
me dizes
bem
baixinho
teus
segredos
teus
amores.
(p.
236-237)
Do livro Salinas
(1958):
POEMA
DE VIAGEM
Na
estrada cinzenta e desigual
o
automóvel se abisma.
Onde,
o sono da mulher
carregando
uma criança nos olhos?
A
fala da criança
ficou
dependurada lá fora
no
tempo
a
vestiu as árvores magras,
as
árvores nuas,
os
cactos tristes dos caminhos.
De
tudo,
durou
apenas
na
memória
a
última estrela
do
ante-amanhecer.
(p.
155)
CANTO
INÚTIL
Na
penumbra do quarto me distingo
frase
morta, que as grandes mãos do tempo destruíram
sem
ecos,
sem
remorsos,
sem
furor.
Somente
nesse nada se restringe
a
condição recôndita do medo
que
na memória dorme.
Se
em mim fonte já não chora
retesam-se
meus olhos.
Em
palavra existi:
agora,
em
sombras permaneço decomposta.
Frias
letras indicam-me
sem
nome,
explicam-me
sem
vida,
sem
lugar.
Fendeu-se-me
o caminho.
Meu
nome,
há
muito não se faz chamar.
(p.
161)
Do livro O
Arado
(1959):
ANTECOLHEITA
Ah
te saber distante, embora a chuva
amareleça
em frutos e a colheita
não
tarde. Já meus dedos se presentam
como
instrumento* à terra matinal.
Ausentes
os teus braços, a charrua
nega-se
à lida, caminhança e bois;
o
cata-vento remudece as hastes
que
calentavam cedo anoitecer.
Não
sei que faça dos celeiros. Vem:
setembro
amadurece nos folhados
deixando-se
nascentes para o estio.
Vem
que me espanta o apascentar das ramas
e
minhas mãos, de frágeis, agonizam
nessa
visão de lavras, de eira e sol.
(p.
136)
* A edição “Navegos/A
Herança” (2003) traz essa palavra no plural (aqui omitido), diferentemente da edição
“Navegos” de 1978, organizada pela própria Zila. Infelizmente não pude cotejar
com a edição original de “O Arado”, 1959. O plural pareceu-me pretensa correção
ou lapso da nova edição, pois além de mudar o sentido do poema, muda também sua
cadência, destruindo a possibilidade de elisão, quebrando – num amadorismo de
escansão que Zila dificilmente incorreria – a metrificação, antes gramatical e
poeticamente perfeita, do verso. (Opinião do autor deste Blog)
UM
PÁSSARO ME HÁS DE DAR
Em
manhã de pastoreio
ovelhas
apriscando
largarás
de tuas cismas
e
cajado
que
um pássaro me hás de dar
quando
me amares.
Leve
levemente mo trarás
das
fontes dos teus olhos
sem
nenhum pensamento
sem
gesto liberto
a
mansidão do teu silêncio
apenas.
À
minha face matutina
descerá
uma carícia
de
pássaro
pousado.
(p.
148)
Do livro Exercício
da Palavra (1975):
A
PONTE
Salto
esculpido
sobre
o vão
do
espaço
em
chão
de
pedra e de aço
onde
não
permaneço
– p a s s o.
(p.
69)
AEROPORTO
Do
pássaro invoado
–
o antipássaro –
vibram
sons de turbinas de emoção e sangue
Onde
o pouso-cantar do pensamento?
Onde
as artérias – medo em combustão?
Desce
o pássaro
toca
o chão
toma
posse da pista asfaltoamor
Há
o impacto da espera
permanência
na esfera
nos
espaços
nos
ritmos de aço
de
astronave novopartindo
chegando
pairando
sem
aportar
alterar
alunizar
Propulsão
que te
(nos)
perde
em
plataformas
do nada.
(p.
97)
Do livro Corpo
a Corpo (1978):
PROCISSÃO
Quando
vem a procissão
no
seu passo de perdão,
Alcaide,
comendador
dominam
o povo e andor
Cada
grupo de irmandade
empunhando
uma verdade:
A
das Filhas-de-Maria
virgindade
em romaria
Do
SS. Sacramento
vermelha
de emproamento
Do
Senhor Jesus dos Passos
roxo
em santos e devassos
Irmãs
da Ordem Terceira
terço
em mãos de camareiras
Os
meninos da Cruzada
fome
na barriga inchada
A
Banda da Prefeitura
solo
e soldo de amargura
Estandartes,
confrarias
escondem
velhacarias
O
Santo vai carregado
pelos
donos do mercado
E
o povo segue inocente
descalço,
nu, paciente:
–
A compacta multidão
carente
de Deus e pão.
(p.
51-52)
CAIEIRAS
Memórias
há (vão e vêm)
das
queimadas de caieiras:
a
vida deslembra a gente
da
vida que não se tem.
Fumaça
assobe na frente
labareda
vem depois.
Tijolo
e telha cobrindo
a
querência de nós dois.
Viola
bem assentada
no
florir dos cajueiros,
alpercatas
batucando
o
chão do chão do barreiro,
as
mulatas ressurgindo
com
seus dengues noveneiros,
as
comadres se benzendo
frente
ao santo milagreiro.
Aluás
somem dos potes,
fogem
em risos de tropeiros,
nas
prendas dos namorados,
no
aboio dos vaqueiros,
na
presença do Senhor
da
Casa-Grande – o festeiro,
no
fogaral projetando
seu
calor pelo terreiro.
Caieiras
milavoengas,
tijolos:
encantação
de
caminhos não batidos,
de
telha embicada vã,
dos
pedregais dos açudes
(sem
água), de solidão:
o
tempo resumiu tudo
em
vida-palavra-chã.
(p.
57-58)
Do livro A
Herança (1984):
CHICO
DOIDO
a José Bezerra
Gomes, em memória
Chico
Doido, doido e Chico
cavaleiro
de Roldão,
de
dia catando esmolas;
de
noite: fiel seguidor
da
fantástica milícia
do
“Padim Frei Damião”.
As
baladeiras nos bolsos
do
dólmã sem forma e cor.
A
espingarda (brinquedo),
no
velho saco-de-estopa.
No
roto chapéu-de-massa,
casa
e abrigo. Na canção
tirada
no realejo
de
sopro, fabulação
de
arcanjo. Da rustiquez
do
capote inseparável,
o
reaquecer nas sessões,
nos
catarros, nas insônias.
No
cinturão de soldado
ajaezado
nos quadris,
imaginário
punhal.
Na
curva da orelha, as pontas:
piúbas
secas, entrepalhas,
cuspe
de fumo em chão, no ar.
No
fiapo da fita fosca
do
deslavado chapéu,
marca
de outra devoção:
Relíquia
milmuito amada
na
fome, na dor, na fé
–
“meu Padim Ciço Romão”.
Sem
tantos dentes sãos: sujos;
unhas
de luto tão garras,
punhos
de tão frágeis; ferro.
Toda
a alma era um passarinho
sorrindo
no inconsciente
do
insano Chico, do Doido
cavaleiro
de Roldão
na
luta por um cruzado
para
lamparina e gás.
p.
276-277
_____________
MAMEDE,
Zila. NAVEGOS / A HERANÇA. EDUFRN –
Editora da UFRN. Natal (RN), 2003.
Veja também:
https://antoniofabiano.blogspot.com/2014/10/selecao-de-poemas-de-zila-mamede.html