Se fôssemos reconstituir a cena, seria algo mais ou menos assim: um homem, suplicante, dirige-se a uma cobrinha de nada e lhe ordena que ela pare de serpear, a fim de que ele copie as cores de seu corpo ofídico, para dali fazer um belo colar e dar à sua amada.
Patético? E se eu disser que é uma joia, talvez o primeiro poema genuinamente brasílico de que se tem notícia?
Quem gosta de música popular brasileira (MPB), já se deu conta de que estou falando de algo que lembra aquela canção do Caetano Veloso:
“Pára de ondular, agora, cobra coral:
a fim de que eu copie as cores
com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar
à minha amada,
a fim de que tua beleza
teu langor
tua elegân...cia
reinem sobre as cobras não corais.”
É a “Cobra Coral”, do CD “Noites do Norte”. Mas talvez você não saiba ou tenha esquecido que a letra – o belo poema – é de Waly Salomão, publicado em seu último livro, “Tarifa de Embarque” (2000). Dele, sim ou não? Dele, sim e não!...
Waly Salomão (1943-2003) lia Michel de Montaigne (1533-1592). E foi de Montaigne que ele “raptou” esse trecho, que nem é de Montaigne. Aliás, permita-me uma digressão, Montaigne costumava se apropriar do pensamento de alguns autores célebres, sem demasiada preocupação de, digamos assim, citá-los “explicitamente”... Com Waly, então, temos um caso de bom discípulo desse mestre! Mas fiquemos com a cobra coral... Em Montaigne, ela era simplesmente “serpente”. E o poema ficou conhecido como “chanson de la couleuvre”, isto é, “canção da serpente”. Acreditem ou não, esta canção teria sido fundamental para provar, no século XVI, que os nossos selvagens – índios canibais brasileiros – eram humanos (!). Segundo Montaigne, alguma vez acusado de ter falsificado esta letra, o fragmento poético – citado em uma de suas importantes obras (Ensaios, I, XXXI, Dos canibais...) – lhe chegou aos ouvidos por meio de um empregado seu que teria vivido aqui no Brasil e, por sua vez, ouvira dos índios a pérola inestimável de que falamos. É quase insustentável hoje em dia, dada a originalidade da canção e o avanço de outros achados científicos, que Montaigne tenha inventado isto! Melhor assim! Mas, como se não bastasse tamanha fortuna, um pouco mais tarde, em 1783, Goethe traduziu a canção para o alemão, encantando sobremaneira os românticos do século XVIII. Em Goethe, a canção da serpente virou quase um palavrão: “Liebeslied eines Amerikanischen Wilden”, isto é, “canção de amor de um selvagem americano”.
Dizem que nem Caetano, de quem o poeta Waly era amigo, soube desse affair. Waly não apenas traduziu, mas refez o poema, embelezando-o sumamente, excluindo sem pejo aquilo que considerou excrescência. A semelhança de um texto para o outro é tão grande que, se não fosse de fato uma transcriação[*] das mais geniais, seria um plágio! Mas, plágio não é! E dos muitos poemas de seu livro – inclusive este que é bem maior –, foi exatamente o feliz trechinho que já correu mundo, através dos séculos, a parte que Caetano (sem o saber) catou para cantar e encantar! Ficou perfeito em sua voz, e ainda mais perfeito ao ser cantado por ele e Lulu Santos, ao vivo.
Agora, depois desse admirável currículo da cobrinha, depois de uma tão invejável fortuna literária, a nossa serpente com sua canção, a brasileiríssima cobra coral, não nos parece mais tão patética quando para homens suplicantes e inspira colares de amantes! E quem a esta altura ousará pedir que ela pare de ondular? Ondula, ondula cobra coral!...
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Alguns dessas informações estão contidas de modo científico num admirável ensaio que li, certa vez, do Prof. Dr. José Alexandrino de Souza Filho (UFPB), a quem dedico a crônica desta segunda-feira.
[*] transcriação – “tradução, em sentido lato, de algo em que se põe tal criatividade que, alegadamente, o resultado vale como se fosse um original” (DICIONÁRIO HOUAISS).
“A transcriação, conceito formulado por Haroldo de Campos e posto em prática pelos expoentes do Concretismo, propõe um tipo de tradução criativa, em que o tradutor, na pele do escritor (ou do poeta), se permite alterar, acrescentando ou suprimindo determinadas passagens do original, estabelecendo uma espécie de diálogo criativo com o autor e a tradição literária.” (SOUZA FILHO).
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Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 30 de agosto de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
domingo, 29 de agosto de 2010
DAVID DE MEDEIROS LEITE É POETA!!!
O amigo David, natural de Mossoró-RN, é advogado e professor da UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Sempre estamos em contato! Da Espanha, às voltas com o seu doutoramento em Direito Administrativo pela Universidade de Salamanca, até já me obrigou a ir visitar sua família em terras potiguares e ver os escombros de um convento que há séculos pertenceu aos carmelitas. Fui. Sua gente é acolhedora! Já li muita coisa dele (tem diversos livros publicados), até seus polêmicos artigos sobre história de Mossoró... Mas, nunca me disse que era poeta! Eis que me chega há pouco um sedex de Natal (a capital), com seu INCERTO CAMINHAR. Ou será que devo decir... INCIERTO CAMINAR? O livro foi publicado pela editora Sarau das Letras, em 2009. Sua edição é bilíngue (português e espanhol), e conta com ilustrações de Brito e Silva. A obra foi premiada pela USAL – Universidade de Salamanca e Escola Oficial de Idiomas de Salamanca, Espanha, em 2008.
E isto não me tinhas dito, sô!
Abraços, David! Vou te perdoar! Parabéns! E obrigado pela boa surpresa!!!
“A estrada é esta vontade de chegar...
E é o passo que transforma a todo instante
a vida num incerto caminhar.”
(David de Medeiros Leite – Incerto caminhar)
“El día avanza,
con la libertad de un cóndor,
sabiendo que otra vez morirá.”
(David de Medeiros Leite – Púrpuras tardes)
E isto não me tinhas dito, sô!
Abraços, David! Vou te perdoar! Parabéns! E obrigado pela boa surpresa!!!
“A estrada é esta vontade de chegar...
E é o passo que transforma a todo instante
a vida num incerto caminhar.”
(David de Medeiros Leite – Incerto caminhar)
“El día avanza,
con la libertad de un cóndor,
sabiendo que otra vez morirá.”
(David de Medeiros Leite – Púrpuras tardes)
sábado, 28 de agosto de 2010
O QUANTA QUALIA SUNT ILLA SABBATA
Pedro Abelardo (1079 - 1142) e frontispício de um dos seus livros - figuras disponíveis na Web.
Há algum tempo o amigo Cleber José me enviou um poema de Pedro Abelardo, pedindo que eu o traduzisse do latim para o português. Não sei o que ele queria exatamente com isso! Este amigo é músico profissional, receio que tenha descoberto o texto a partir de alguma partitura antiga... Ele me enviou o poema em latim truncado. Depois, outra versão. As versões diferiam ligeiramente, como é comum em textos que ao longo dos séculos passaram pelas mãos de tantos copistas. Fiz o que pude, está aí meu contributo! Lamentavelmente, as rimas do original foram sacrificadas. O poema ficou branco, mas salvei a métrica em razoáveis decassilábicos. A composição fala sobre o dia perfeito, o Sábado eterno da alegria! Esse Sábado e a Jerusalém celeste se imbricam. Há quem acredite que esta é a expressão mais bela e comovente de toda a poesia cristã, sobre o referido tema. Tentei passar isso na minha despretensiosa versão! Queria isentar-me dessa culpa, mas não encontrei em português qualquer vestígio de uma outra tradução que nos socorresse. Há admirável versão feita para a língua inglesa. De John Mason Neale, 1854.
Este Abelardo é o célebre teólogo e filósofo do século XII. Um dos homens mais notáveis de toda a Idade Média e que, aliás, não se enquadrou em nenhum dos estereótipos do seu tempo. Hoje ele é mais lembrado, entre o povo comum e nos filmes, por sua trágica história de amor com Heloísa. Abelardo foi castrado por causa desse envolvimento amoroso com a mesma. Ela, então, entrou para um convento e ele encerrou-se num mosteiro. Há muitas lendas envolvendo estes amantes. Do relacionamento pretérito lhes nasceu o filho Astrolábio.
Vejamos a tradução do poema...
O QUANTA QUALIA SUNT ILLA SABBATA
Original latino de Pedro Abelardo (1079 - 1142)
Versão em português de Antonio Fabiano
Oh, quão ditosos são, pois, estes sábados:
Os celebrados na sublime corte!
Folga aos cansados, dádiva aos valentes,
Em todos, tudo, faz-se Deus presente!
Ah, sim, Jerusalém, cidade santa,
Regida pela paz, suma alegria!
Onde o desejo não precede a coisa,
E o prêmio vindo é mais que se antevia!
Que Rei, vetusta corte, que palácio!
Que paz, que alegria, que repouso!
Quem parte tem na glória dos partícipes
Mais sinta e veja dito o inexprimível!
Assim, em nossa espera, suba a mente...
Estes pátrios desejos mais prosperem!
E à Jerusalém voltem do exílio,
Os que muito esperaram em Babilônia!
Já terminada, enfim, toda labuta,
Entoaremos cantos de Sião!
Contínuas graças, por tão grandes bens,
Prorromperão do povo, a Deus subindo!
Com louvação perpétua e alegria,
Celebraremos sábado após sábado!
Sob inefável júbilo eternal,
Nós cantaremos junto aos anjos todos!
Do eterno Deus, contínua seja a glória,
De quem, por quem e em quem são todas coisas!
Daí ao Pai, e dele e nele o Filho,
De quem por meio vem o Espírito. Amém.
CONTO (MINI) - fragmento do meu inédito MIRIÁGONO.
VI
ENCANTAMENTO
(COLAR)
“Para! Para!”, quase implorou. Mas ela ia cada vez mais rápida, como se não tivesse pés, como se... se... se deslizasse.
Ele corria ao seu encalço, para alcançar-lhe... Mas ela, sibilante, não queria se mostrar.
Enigma sem fim pareceu-lhe, no primeiro instante. E no segundo... E no terceiro... Até o fim! Ele, contudo, não queria decifrar nada, que é mal dos enigmas a indecifrabilidade e é muito bom que seja assim! Queria apenas furtar-lhe as cores, algumas cores só, talvez as mais primárias ou... Ou? Queria apenas isso, a fim de que... a fim de que...
Seu ir cada vez mais rápida desconcertava-lhe! Dali a pouco era uma confusão de tons sem nexo, cores, mais a teimosia de uma só sinfonia incólume, símbolo de clara resistência nesse afinado desconcerto, música sempre viva no bailado dos corpos que ondulam. Ai, ai, verdadeiro desconserto!... Delicioso desconcerto!...
Já não caberia dizer “stop”, ou qualquer coisa soçobrante em vernácula esfera do poema walysalomônico. Aquilo era coisa buscada, rapto de mestre!, coisa buscada exatamente daquelas páginas de um mais antigo pensador, ditada (essa coisa) por um tal índio brasileiro, que a soubera cantada por seus longínquos ancestrais (pois estes, sim, tinham alma e amavam-se).
Ofegante olhou, agora de frente e sob um entrecruzado olhar, o olhar da ofídia. “Não quero teu enigma”, jurou, “bastam-me as cores!”...
E a tocou.
“Para! Para!”, implorava esta outra vez. “Ondulas tu demais e assim não dá”...
Era um colar pra dar – o que se fez diálogo – à sua amada. E a exaltada beleza, já por demais reinante, agora imperaria sobre outras cobras não corais.
Antonio Fabiano
Direitos reservados
ENCANTAMENTO
(COLAR)
“Para! Para!”, quase implorou. Mas ela ia cada vez mais rápida, como se não tivesse pés, como se... se... se deslizasse.
Ele corria ao seu encalço, para alcançar-lhe... Mas ela, sibilante, não queria se mostrar.
Enigma sem fim pareceu-lhe, no primeiro instante. E no segundo... E no terceiro... Até o fim! Ele, contudo, não queria decifrar nada, que é mal dos enigmas a indecifrabilidade e é muito bom que seja assim! Queria apenas furtar-lhe as cores, algumas cores só, talvez as mais primárias ou... Ou? Queria apenas isso, a fim de que... a fim de que...
Seu ir cada vez mais rápida desconcertava-lhe! Dali a pouco era uma confusão de tons sem nexo, cores, mais a teimosia de uma só sinfonia incólume, símbolo de clara resistência nesse afinado desconcerto, música sempre viva no bailado dos corpos que ondulam. Ai, ai, verdadeiro desconserto!... Delicioso desconcerto!...
Já não caberia dizer “stop”, ou qualquer coisa soçobrante em vernácula esfera do poema walysalomônico. Aquilo era coisa buscada, rapto de mestre!, coisa buscada exatamente daquelas páginas de um mais antigo pensador, ditada (essa coisa) por um tal índio brasileiro, que a soubera cantada por seus longínquos ancestrais (pois estes, sim, tinham alma e amavam-se).
Ofegante olhou, agora de frente e sob um entrecruzado olhar, o olhar da ofídia. “Não quero teu enigma”, jurou, “bastam-me as cores!”...
E a tocou.
“Para! Para!”, implorava esta outra vez. “Ondulas tu demais e assim não dá”...
Era um colar pra dar – o que se fez diálogo – à sua amada. E a exaltada beleza, já por demais reinante, agora imperaria sobre outras cobras não corais.
Antonio Fabiano
Direitos reservados
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
WALT WHITMAN
Apresento-vos um poema do Walt Whitman que por acaso encontrei numa antologia inglesa, editada com notas e uma introdução de Michael Thorpe. MODERN POEMS (Anthology). London: Oxford University Press, 1963.
Walt Whitman (1819-1892) – foi poeta, ensaísta e jornalista norte-americano. Consideram-no o “pai do verso livre”, “o poeta da América”, etc. Escreveu “Leaves of Grass” (Folhas de Relva), cuja primeira edição data de 1855. Alguns dos seus poemas foram citados no enredo do filme – que toda a minha geração viu – “Sociedade dos Poetas Mortos”. E quem poderia esquecer o antológico “O Captain! My Captain!”... ???
Walt Whitman, 1887, Nova Iorque - Foto disponível na Wikipédia.
Vejamos o poema e uma possível tradução...
‘The Learn’d Astronomer’
When I heard the learn’d astronomer,/
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me,/
When I was shown the charts and diagrams, to add, divide, and measure them,/
When I sitting heard the astronomer where he lectured with much applause in the lecture-room,/
How soon unaccountable I became tired and sick,/
Till rising and gliding out I wander’d off by myself,/
In the mystical moist night-air, and from time to time,/
Look’d up in perfect silence at the stars.
WALT WHITMAN
‘O Astrônomo Instruído’
Quando ouvi o astrônomo instruído,/
Quando as provas, as cifras, foram postas em colunas bem diante de mim,/
E me foram exibidos gráficos e diagramas, para somar, dividir, mensurar tudo aquilo;/
Quando eu ouvi o que dizia o astrônomo, de onde falava, sob muitos aplausos na sala de conferência;/
Sem que eu saiba como ou o porquê, vi-me de súbito cansado e saturado,/
Até elevar-me e deslizar plainante, abismando-me em mim mesmo,/
Na brisa da noite úmida e mística, de quando em quando/
Levantando os olhos em perfeito silêncio às estrelas.
WALT WHITMAN
(Versão em português de Antonio Fabiano)
Se o poema original tivesse sido escrito por mim, eu o teria intitulado ironicamente de “O aprendiz de astrônomo”...
Forte abraço ao amigo FLÁVIO BEZERRA, a quem dedico esta postagem e meu melhor carinho!
Walt Whitman (1819-1892) – foi poeta, ensaísta e jornalista norte-americano. Consideram-no o “pai do verso livre”, “o poeta da América”, etc. Escreveu “Leaves of Grass” (Folhas de Relva), cuja primeira edição data de 1855. Alguns dos seus poemas foram citados no enredo do filme – que toda a minha geração viu – “Sociedade dos Poetas Mortos”. E quem poderia esquecer o antológico “O Captain! My Captain!”... ???
Walt Whitman, 1887, Nova Iorque - Foto disponível na Wikipédia.
Vejamos o poema e uma possível tradução...
‘The Learn’d Astronomer’
When I heard the learn’d astronomer,/
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me,/
When I was shown the charts and diagrams, to add, divide, and measure them,/
When I sitting heard the astronomer where he lectured with much applause in the lecture-room,/
How soon unaccountable I became tired and sick,/
Till rising and gliding out I wander’d off by myself,/
In the mystical moist night-air, and from time to time,/
Look’d up in perfect silence at the stars.
WALT WHITMAN
‘O Astrônomo Instruído’
Quando ouvi o astrônomo instruído,/
Quando as provas, as cifras, foram postas em colunas bem diante de mim,/
E me foram exibidos gráficos e diagramas, para somar, dividir, mensurar tudo aquilo;/
Quando eu ouvi o que dizia o astrônomo, de onde falava, sob muitos aplausos na sala de conferência;/
Sem que eu saiba como ou o porquê, vi-me de súbito cansado e saturado,/
Até elevar-me e deslizar plainante, abismando-me em mim mesmo,/
Na brisa da noite úmida e mística, de quando em quando/
Levantando os olhos em perfeito silêncio às estrelas.
WALT WHITMAN
(Versão em português de Antonio Fabiano)
Se o poema original tivesse sido escrito por mim, eu o teria intitulado ironicamente de “O aprendiz de astrônomo”...
Forte abraço ao amigo FLÁVIO BEZERRA, a quem dedico esta postagem e meu melhor carinho!
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
VOCÊ NÃO PRECISA DE MÚSICA PARA DANÇAR
Entre ruídos e luzes, confusão de todos os lados, eu paro em meio à agitação da rodoviária de São Paulo e me pergunto se sou capaz de escrever a crônica devida à próxima segunda-feira. Não terei tempo depois! Beijei o frio da grande metrópole e queimei meus lábios que estão ardendo até agora! As pessoas passam sem parar... Para onde vão? Ah, essa espécie de criaturas sempre me fascinou! Sou amante incorrigível do gênero humano!... Já é quase fim de semana, eu devo embarcar em alguns minutos para BH, minha ansiedade não me deixa em paz e – o que é muito raro – esqueci de trazer comigo um livro pra essas horas. Bem, o livro eu trouxe. Mas só um e eu o li na vinda. Eu nunca perco tempo em filas e esperas, tenho sempre algo pra ler. Assim, eu não me estresso (quase) nunca! Mas, desta vez... Bem, desta vez eu só esqueci um livro e nada mais! Jurei que não ia me apoquentar, principalmente porque aquilo de estressar-se está na moda e eu não sou da moda! Como ia dizendo, estive em São Paulo para conferir palestra a um seleto grupo de pessoas. Gente tão simpática que suscita amor à primeira vista e saudades depois do parto! Partir é um parto! Missão cumprida, devo regressar à capital mineira. Enquanto espero (coisa que nem todo mundo gosta!), penso nos meus leitores imaginários (vocês são reais? eu não sei se eu sou real!...) e escrevo a crônica da próxima segunda. Isso também – devo confessar – contraria meu plano inicial que era escrever algo intitulado “Você não precisa de música para dançar”. O assunto seria outro. Achei tão bonito esse título, quando o pensei numa noite dessas, que decidi que viraria no mínimo literatura. Foi uma iluminação, mesmo sem ser tão original! A meu ver, naquela hora em que pensei isso, o título mereceria um texto quase pleno, prenhe de coisas sublimes e, quem sabe, novíssimas. Porém, como é possível escrever crônica assim? Gênero, esse, literário, mas tão inusitado, estranho em si mesmo, híbrido e sei lá mais o quê... Letra quase indecisa, imediata, meio displicente... Coisa – nome apropriado a isso! – quase perigando-se ao descartável, precipitando-se nas cavernas do banal, mas com (in)devidas tentações de eternizar-se – oxalá pelo raio de um dia, o dia!... Sim, porque fazer crônica é mais ou menos falar disto e daquilo e de algo entre ambos, desavergonhadamente, em primeira pessoa pronominal, reinventando-se com o leitor, discorrendo sobre tudo e, inclusive, sobre nada... sem fingir não ver o óbvio que é a matéria favorita do cotidiano! Mas eu queria encher de tudo as minhas crônicas, ao menos esta que se intitularia “Você não precisa de música para dançar”. Eu pensei que talvez conseguisse transmudá-la (a croniquinha) de “gênero menor” em algo que não dormisse pura, simples e momentaneamente nas retinas de um meu displicente ou aplicado leitor imaginário e, tampouco, se acordasse amanhã nos detritos do esquecimento. Ao menos essa, quis que durasse mais que um dia, sim, desejei isso, quando na verdade é fantasia pensar assim, sobretudo se é estéril a inspiração para o ofício. Fracassei. Mas, eu fiz menção de falar de dança! Esta é a palavra, e mal me vem aos lábios, soando sonora, me alerta a moça da rodoviária, toda voz, que o meu ônibus já vai partir e eu devo ir... Corro! Não vai dar tempo! Não vou falar de dança! Só ia dizer que... O que eu ia dizer? Esqueci, mas... Quando estou chateado eu danço, não tão literalmente! Eu danço no melhor e mais positivo dos sentidos! Sabe aqueles dias em que – por mais deuses que sejam alguns de vós e quiçá também eu mesminho – a gente tem vontade de gritar e chutar o pau da barraca ou a canela dos que nos aporrinham? Em momentos como esse eu danço! Apago as luzes do meu quarto – para não ficar com vergonha de mim mesmo, que sou muito tímido – e danço! Não sozinho, mas comigo mesmo! E se você puder dançar com outrem, além de você mesmo, isso é perfeito e incomparavelmente maior! Assim, eu danço até ficar feliz de novo! Nenhuma tristeza, nada, resiste à sedução da dança!... Mas agora eu desisto da crônica, porque o ônibus já está se movendo, os passageiros dançam nos assentos e algo com o título que eu queria não cabe em meu bloco de anotações, não cabe em nada! Se algo eu pudesse dizer, isto seria: dance! Quando apagarem-se as luzes, dance! Seja você mesmo a luz e dance! E se não tocarem nada, se sufocarem a música, dance! Que importa? Você não precisa de música para dançar e, quer saber, com a dança até mesmo a música vem! Ela não resiste a este encantador escândalo que é dançar sem música e vem! Aí tudo fica com cara de sol em veraneio de praias potiguares! Perfeito! Paro. O ônibus parte. Eu paro, mas tudo ao meu redor se move mais veloz e freneticamente... Prédios, fábricas, casas, Tietê, placas, placas, pontes, carros, placas... Estou com sono. Durmo. Acordo. Montanhas. A viagem é longa. De repente Minas, Minas, Minas... Minas que amo e não se acaba mais, Minas enorme, Minas toda a vida... Engarrafamento. Minas, obviamente, Belo Horizonte. Cheguei. Desisto de tentar escrever a crônica da próxima segunda-feira. Meus leitores imaginários entenderão.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 23 de agosto de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 23 de agosto de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
domingo, 22 de agosto de 2010
NÃO DIREI O ÓBVIO...
sábado, 21 de agosto de 2010
CONFUSÃO
Antonio Fabiano e Frei Fabiano de Santa Maria são nomes de uma mesma pessoa! Não há conflito aí! Estão perfeita e harmoniosamente integrados no mesmíssimo homem que é frade, inclusive. O primeiro nome é civil, com acréscimo dos nomes de família. E fui batizado apenas como Antonio. O padre pronunciou Antônio, muito corretamente. Mas meu nome que tem acento tônico, não tem - como conviria graficamente - o tal circunflexo. Agradeço quando acertam e não me escrevem de chapéu, mas não me aborreço quando acertam segundo a gramática normativa da língua portuguesa. A questão é fonética, sob os auspícios do famigerado sinal gráfico. A desgrafia até confundiria, se Antônio não fosse um nome bastante comum por aqui... No meu caso, pronuncia-se Antônio, mas escreve-se Antonio. E eu acho bom que seja assim, sem acento. Vai que um dia acontece outra maluca reforma ortográfica e eles cassam o circunflexo dos Antônios brasileiros... Aí, já estou prevenido! Aliás, em Portugal acentuam meu nome assim: António. Amigos portugueses nunca me escreveram sem esse sinal gráfico bem agudo, quase a afrontar-me... O segundo nome, que é ainda maior, porque tem todo o não pequeno Monte Carmelo, é religioso. Por ele me chamam na Ordem à qual pertenço. Com ele assino quase tudo que não seja documento civil. Bem, tudo isso parece simples. Mas não é. Eu não existo oficialmente de Santa Maria do Monte Carmelo. Vou contar algo que ilustra o fato... Quando estava de férias no Rio Grande do Norte, antes de retornar pra Minas, no intuito de evitar excesso de bagagem no avião, despachei pelos Correios uma caixa de coisas minhas, para recebê-la em BH mais comodamente. Que comodamente nada! Eu cheguei e alguns muitos dias depois a encomenda chegou... Fui buscá-la na agência dos Correios que há aqui pertinho de casa, convencido de que a retirada seria algo normal. Pois não quiseram me entregar coisa alguma! Eu estava sem a carteirinha de frade, onde se prova que os supostos dois Fabianos são um só. Meu RG indicava apenas, naturalmente, que há um único Fabiano e este é o Antonio, sem acento, nunca aquele tal outro de Santa Maria etc. Eu fiquei uma hora e quarenta minutos na agência dos Correios, tentando provar para a simpática gerente que eu era eu mesmo! Ela me dizia que não liberava a encomenda, para a minha própria segurança e bem estar!... Vê se pode? E tudo ficou ainda mais confuso quando lhe jurei que eu tinha mandado aquilo pra mim mesmo, estava lá no remetente o nome civil, não havia possibilidade de engano; eu era o destinatário de minha própria remetência, ela podia até conferir... Por que fiz isso? Tudo piorou! Agora lhe pareceu que eu devia também provar a minha idoneidade mental! Ou o Frei de Santa Maria estava prestes a ser lesado pelo Sr. Antonio, pessoa física ali presente, o Fabiano do RG... Quer dizer, eu estaria roubando de mim mesmo a minha própria encomenda, na seriíssima agência dos Correios! Aquilo pareceu-me surreal!... E não era? O problema só se resolveu quando, depois de todo esse contratempo, alguém notou (pois já eram muitos os funcionários ao nosso redor) que entre parênteses, com letras bem pequenininhas, estava repetido o nome civil do Frei, depois da ladainha de santos e montes em letras garrafais do onomástico religioso! Moral da história: nunca mande nada pra você mesmo pelos Correios. E, se isso não puder ser evitado, ponha com letras bem grandes o seu nome civil, só o civil, que pode não ser o mais religioso, mas é o que conta... oficialmente!
Antonio Fabiano
Antonio Fabiano
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
BRAILE
À minha avó Maura, que não pode ler isto com os olhos...
Eu quisera ter a delicadeza
de uma pena pequena
que cai de uma ave
em voo rasante
ou de altura sem fim
p’ra escrever um poema
que deslizasse
fininho
como o filete de uma água
que escorre na montanha
sem nunca parar
de escorrer
p’ra eu dizer-te
vozinha
que vejo em teus olhos
a luz
que alumia
o caminho
da vida
e dizer
que eu sorria
se visse
teus dedos
correndo
e tocando
as palavras
e vendo
no tato
de fato
os afetos
e o trato
do meu coração
pontilhado
de pontos
(não letras)
que formam
palavras
gigantes
tão
quanto
invisíveis
e nunca
cansasses
de ler
e reler
estes pontos
estrelas
palavras
de toque
qual toque
de notas
de música
linda
sem fim
e o faria
tão terno
e mansinho
que não cansaria
a vozinha
de ler
(mas sem ver)
estas coisas
tão devagarinho
sem ponto
nem vírgula
mas tão de carinho
que o ar
não faltasse
do peito ou da graça
porque só vozinha
o leria
assim
Antonio Fabiano
Direitos reservados
Eu quisera ter a delicadeza
de uma pena pequena
que cai de uma ave
em voo rasante
ou de altura sem fim
p’ra escrever um poema
que deslizasse
fininho
como o filete de uma água
que escorre na montanha
sem nunca parar
de escorrer
p’ra eu dizer-te
vozinha
que vejo em teus olhos
a luz
que alumia
o caminho
da vida
e dizer
que eu sorria
se visse
teus dedos
correndo
e tocando
as palavras
e vendo
no tato
de fato
os afetos
e o trato
do meu coração
pontilhado
de pontos
(não letras)
que formam
palavras
gigantes
tão
quanto
invisíveis
e nunca
cansasses
de ler
e reler
estes pontos
estrelas
palavras
de toque
qual toque
de notas
de música
linda
sem fim
e o faria
tão terno
e mansinho
que não cansaria
a vozinha
de ler
(mas sem ver)
estas coisas
tão devagarinho
sem ponto
nem vírgula
mas tão de carinho
que o ar
não faltasse
do peito ou da graça
porque só vozinha
o leria
assim
Antonio Fabiano
Direitos reservados
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
E SE EU NÃO VOS FALAR DE DEUS...
Parece estranho que este fradezinho, em seus escritos “bloguísticos”, fale de pedras, ventos, peixes, ipês de todas as cores, cores, fale de tantos homens e mulheres, atrizes, amores e tudo... e não fale de Deus! Terá perdido a fé? Não caberia em seu discurso, mais adequadamente, uma fala apologética, em tempos como estes? Ou, quem sabe, uma exaltação da Santa Cruz? Um tratado sobre a virgindade fecunda de Maria? O amor de Deus e Seu Sagrado Coração? Quem sabe, até mesmo um apelo à conversão dos pecadores? Tantos, tantos!!!... E por que faz versos pra um cravo e não faz versos pra Deus? A Igreja, não lhe bastaria? E este fradezinho perdido em miudezas!... Desesperou da salvação?
Ah, meus amigos, quando me dizem isso eu rio e um rio corre solto dentro de mim! Nessas horas eu me lembro do velho poeta do Sul, Quintana, o Mário, em seu poema, aquele, “Se eu fosse um padre” e tal... Ele versejou que, se ele fosse um padre, em seus sermões não falaria nem de Deus nem do pecado, muito menos do... “Anjo Rebelado”. Também não falaria, terminantemente, nem de profetas nem de santos! Pra quê? Ele citaria – se ele fosse um padre – os poetas! E sabem por quê? Responde, ó Quintana: “Porque a poesia purifica a alma / ...e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – / um belo poema sempre leva a Deus!”
Não sou tão poeta quanto Quintana! Mas acredito nisso! Na poesia nos encontramos todos! Quando lemos um poeta mulçumano, judeu ou cristão, um poeta ateu, agnóstico ou... qualquer um!...: na poesia nos encontramos todos! Os místicos – de todos os credos e não credos – falam a mesma língua e essa língua é uma língua de (fogo? não!; espada? não!) poesia! Na poesia eles se esbarram e... se calam! (Abismados que estão no mistério mais subido!). Porque ali, na linguagem suprema, mora o silêncio. Os poetas emprestam a voz pra isso: pra que se faça silêncio... No fundo nem são poetas pra eles mesmos, apenas abrem as mãos e agarram uma fagulha quase imperceptível do grande mistério da vida. E se dizem bem o não dizível, é de todos o dom! Ninguém é dono da poesia! Ela é que se assenhoreia de nós e nos poetiza. Ai, pronto, o milagre acontece!...
Poesia é difícil de explicar: é absolutamente inútil! Explicar é impossível, inútil mesmo é a poesia! Já o disse. É coisa de quem ama, fracassa, perde, chora, goza, ri, tudo!, não necessariamente nessa ordem, mas com toda a extensão e imprevisibilidade da vida. Poesia é coisa de gente! Poesia é coisa de doido! E, graças a Deus, só os muito normais não a percebem! Mas eu não digo só de abrir um livro, pra ler versos, coisa e tal... Se você alguma vez sorriu ao – por exemplos – ver seu filho dormir... ou cantou sozinho no banheiro, só porque recebeu aquele olhar daquela pessoa... ou fala com seu bichinho de estimação... ou viu passarinho verde e tá rindo à toa... ou amou alguém (tem coisa mais patética que o amor?)... ou fechou os olhos para ouvir pela milésima vez aquela canção... ou, sei lá, acha que dar ou ganhar uma rosa pode fazer alguém feliz e até mudar sua vida... Se você já fez ou viveu algo assim, você... (desculpe dizer, mas...) você... Você não é normal! E o que é pior, você é poeta! Pronto, disse! E depois de um poema... ah, depois de se sujar de poesia, com a reputação por terra... você se descobre verdadeiramente humano! Tudo se humaniza e se diviniza... o que, no final das contas, dá no mesmo!
Já ouvi Adélia Prado dizer não sei quantas vezes nada sobre um poema do Carlos Drummond de Andrade. É um poema que fala de uma tarde de maio. Eu já o li (não por causa dela, mas por causa dele), quase bastantes vezes, e também não canso. Dá-nos uma comoção de espírito, uma reviravolta nas entranhas, um aperto no coração e uma alegria quase de grito (com aquela vontade ridente de chorar)... Mas o poema não fala de nada! É sério!!! E isso é poesia! Mas também seria poesia se falasse de qualquer coisa ou tudo! Basta que seja poesia! É como Deus! Não precisa ser mais nada, basta-se! E eu nunca vi alguém morrer de poesia, mas de coisas muito sérias sim!
Você já reparou que tem coisa que a gente só vê depois de ser poeta? Eu vi uma pedra, pela primeira vez na vida, aos 21 anos: depois de ler aquele poema bobo do Drummond. Tem gente que só viu estrela depois de ler Bilac. Outros só amaram de verdade quando lhes aconteceu Vinícius. E por aí vai... Tá, eu não sou normal. E se você sentiu (sem precisar entender) isso que eu disse, você também não é normal. Então, porque poetizados, estamos quites!
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 16 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
Ah, meus amigos, quando me dizem isso eu rio e um rio corre solto dentro de mim! Nessas horas eu me lembro do velho poeta do Sul, Quintana, o Mário, em seu poema, aquele, “Se eu fosse um padre” e tal... Ele versejou que, se ele fosse um padre, em seus sermões não falaria nem de Deus nem do pecado, muito menos do... “Anjo Rebelado”. Também não falaria, terminantemente, nem de profetas nem de santos! Pra quê? Ele citaria – se ele fosse um padre – os poetas! E sabem por quê? Responde, ó Quintana: “Porque a poesia purifica a alma / ...e um belo poema – ainda que de Deus se aparte – / um belo poema sempre leva a Deus!”
Não sou tão poeta quanto Quintana! Mas acredito nisso! Na poesia nos encontramos todos! Quando lemos um poeta mulçumano, judeu ou cristão, um poeta ateu, agnóstico ou... qualquer um!...: na poesia nos encontramos todos! Os místicos – de todos os credos e não credos – falam a mesma língua e essa língua é uma língua de (fogo? não!; espada? não!) poesia! Na poesia eles se esbarram e... se calam! (Abismados que estão no mistério mais subido!). Porque ali, na linguagem suprema, mora o silêncio. Os poetas emprestam a voz pra isso: pra que se faça silêncio... No fundo nem são poetas pra eles mesmos, apenas abrem as mãos e agarram uma fagulha quase imperceptível do grande mistério da vida. E se dizem bem o não dizível, é de todos o dom! Ninguém é dono da poesia! Ela é que se assenhoreia de nós e nos poetiza. Ai, pronto, o milagre acontece!...
Poesia é difícil de explicar: é absolutamente inútil! Explicar é impossível, inútil mesmo é a poesia! Já o disse. É coisa de quem ama, fracassa, perde, chora, goza, ri, tudo!, não necessariamente nessa ordem, mas com toda a extensão e imprevisibilidade da vida. Poesia é coisa de gente! Poesia é coisa de doido! E, graças a Deus, só os muito normais não a percebem! Mas eu não digo só de abrir um livro, pra ler versos, coisa e tal... Se você alguma vez sorriu ao – por exemplos – ver seu filho dormir... ou cantou sozinho no banheiro, só porque recebeu aquele olhar daquela pessoa... ou fala com seu bichinho de estimação... ou viu passarinho verde e tá rindo à toa... ou amou alguém (tem coisa mais patética que o amor?)... ou fechou os olhos para ouvir pela milésima vez aquela canção... ou, sei lá, acha que dar ou ganhar uma rosa pode fazer alguém feliz e até mudar sua vida... Se você já fez ou viveu algo assim, você... (desculpe dizer, mas...) você... Você não é normal! E o que é pior, você é poeta! Pronto, disse! E depois de um poema... ah, depois de se sujar de poesia, com a reputação por terra... você se descobre verdadeiramente humano! Tudo se humaniza e se diviniza... o que, no final das contas, dá no mesmo!
Já ouvi Adélia Prado dizer não sei quantas vezes nada sobre um poema do Carlos Drummond de Andrade. É um poema que fala de uma tarde de maio. Eu já o li (não por causa dela, mas por causa dele), quase bastantes vezes, e também não canso. Dá-nos uma comoção de espírito, uma reviravolta nas entranhas, um aperto no coração e uma alegria quase de grito (com aquela vontade ridente de chorar)... Mas o poema não fala de nada! É sério!!! E isso é poesia! Mas também seria poesia se falasse de qualquer coisa ou tudo! Basta que seja poesia! É como Deus! Não precisa ser mais nada, basta-se! E eu nunca vi alguém morrer de poesia, mas de coisas muito sérias sim!
Você já reparou que tem coisa que a gente só vê depois de ser poeta? Eu vi uma pedra, pela primeira vez na vida, aos 21 anos: depois de ler aquele poema bobo do Drummond. Tem gente que só viu estrela depois de ler Bilac. Outros só amaram de verdade quando lhes aconteceu Vinícius. E por aí vai... Tá, eu não sou normal. E se você sentiu (sem precisar entender) isso que eu disse, você também não é normal. Então, porque poetizados, estamos quites!
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 16 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
sábado, 14 de agosto de 2010
UM POUCO DE CINEMA ITALIANO - para começo de conversa...
Fotografias capturadas do filme “La Dolce Vita” de Federico Fellini, 1960. Anita Ekberg e Marcello Mastroianni na inesquecível sequência da Fontana di Trevi.
O Frei Dino, brasileiro, ligou da Itália há poucos dias me pedindo umas dicas de filme. Obviamente, ele quer ver filmes italianos. Não qualquer filme, mas bons filmes. Filmes de arte. O Dino tem bom gosto, é exigente! E pra essas coisas tem de ser mesmo! Assim, nos entendemos; seja o cinema italiano, francês, alemão (por que não?), russo, português, espanhol, oriental (muito bom nos muitos e distintos!) e, claro, brasileiro. O nosso cinema nacional também tem verdadeiras obras-primas! E essas subdivisões são meras "convenções", o que existe mesmo é cinema! Mas, voltando ao que dizia... Nunca me cansei de ver os clássicos italianos. Não digo que sejam os melhores do mundo, conheço outros cinemas. É que estes filmes italianos são os que mais me divertem e dão prazer! O amigo Naka (com quem aprendi muito) adorava vê-los comigo, para rir mais de mim que dos “fellinis” e demais “inis” que a Itália deu de excelências ao mundo... Sinto uma alegria indizível toda vez que vejo um bom filme! Até se o filme é triste, a alegria é certa pela estética! Mas, sem mais digressões, começo sugerindo que ele veja algo do neorealismo italiano – aquele famoso movimento surgido na Itália de fins da Segunda Guerra, inspirado, por sua vez, no realismo poético francês. É importante, porque isso marcou o cinema italiano – que não é só isso, claro! As dicas que se seguirão em hipótese alguma restringem-se ao referido movimento, o que se evidencia também pelas datas etc.
Assim, vamos começar por Roberto Rossellini. Ninguém deveria morrer sem antes ver “Roma, cidade aberta” (Roma, città aperta), de 1945. É um filme meio italiano, meio alemão... (por que não?).Vou sugerir outros, não todos (os filmes) de todos (os diretores), mas os que mais gosto e já vi pelo menos uma, duas ou três vezes. Vittorio De Sica: “Vítimas da Tormenta” (Sciuscià), 1946. O antológico “Ladrões de Bicicleta” (Ladri di biciclette), 1948. “Matrimônio à Italiana” (Matrimonio all'italiana), 1964. “Os Girassóis da Rússia” (I girasoli), de 1970. Ah, já ia me esquecendo! Veja o aclamado “Pai Patrão” (Padre Padrone), 1977, dos irmãos Taviani. E, ainda deles, um que me causou profunda impressão, “A Noite de São Lourenço” (La Notte di San Lorenzo), 1982. Agora meu diretor (italiano) favorito: Federico Fellini!!! Se puder, veja todos os filmes do Fellini. São muitos, mas não morra sem vê-los. Eu destacaria os seguintes: “Abismo de um sonho” (Lo sceicco bianco), 1952. “Os boas-vidas” (I vitelloni), 1953. “A estrada da vida” (La strada), 1954. “A trapaça” (Il bidone – que em Portugal virou “O Conto do Vigário”), 1955. “Noites de Cabíria” (Le notti di Cabiria), 1957. “A Doce Vida” (La dolce vita), 1960. “Os Palhaços” (I clowns), 1971. “Amarcord”, 1973. Em filmes como “A estrada da vida” ou “Noites de Cabíria”, você pode abismar-se na atuação brilhante de Giulietta Masina. Amo essa atriz! Aí, também, o Marcello Mastroianni. Este, em “A doce vida”, protagonizou com Anita Ekberg - junto à Fontana di Trevi - uma das sequências mais bonitas da história do cinema. Quando apreciar a cena, ouça também o silêncio... Em “Matrimônio à italiana” do De Sica, vê-se o Mastroianni com a Sophia Loren. No “Roma, città aperta” consagra-se definitivamente Anna Magnani . E por aí vai... porque eles (e muitos outros grandes atores) voltam inéditos em vários filmes dos mesmos diretores! Pra terminar... Se você ainda tiver fôlego, veja a trilogia do silêncio de Michelangelo Antonioni: “A Aventura” (L'avventura), 1960; “A Noite” (La notte), 1961; “O Eclipse” (L'eclisse), 1962. Gosto particularmente do segundo, com a atuação de Jeanne Moreau. Cito, por fim, o polêmico e genial Pierre Paolo Pasolini: “O Evangelho Segundo São Mateus” (Il vangelo secondo Matteo), 1964 . “Teorema”, 1968. “Medea”, estrelado por Maria Callas, 1969. Depois pego mais leve, com outros filmes – italianos – mais novos, menos exigentes, mas também muito bons!
Um abraço!
Antonio Fabiano
PS: Qualquer um – além do Dino – pode seguir as dicas aí dadas. São muito boas! Mas ninguém tem obrigação de gostar de filmes assim, só porque isso é “cult”. É? Cafona é fingir gostar do que não gostamos ou ser pernóstico! Cada um com o seu cinema... Esses filmes – infelizmente – não estão disponíveis (só um ou outro) em locadoras mais “comerciais”, onde há predominantemente filmes descartáveis como a grande maioria dos filmes norte-americanos. Isto não é ofensa, muitos deles são feitos para atender a uma demanda comercial, da hora. Os produtores sabem disso! Querem que seja assim, é o normal. Todo mundo vê, depois ninguém mais vê! Lixo. Os de arte, não. Você pode encontrá-los em algumas locadoras especiais onde geralmente o dono é cinéfilo, tem refinado bom gosto e sabe muito sobre tudo da sétima arte. Apreciá-los exige um aprendizado, é claro! Eu falo de filmes que podemos ver a vida inteira, como bons livros, e que nunca se gastam... E quando você os revisita, tem a impressão de que está vendo-os pela primeira vez... de novo! É muito bom! Eu gosto!
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
PRÊMIO CULTURAL
QUE PAÍS É ESTE?
Quando o meu país nasceu
Anjos tortos tocaram vuvuzelas
Mas o sonho de ser livre
Nunca dormiu
Porque uma coisa é um país
E bem outra o que nos trai.
Quando eu nasci
Meu país era ditado
E os livros editados
Não podiam perguntar.
Até que alguém ousou.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
NOTIFICAÇÃO
Olá, pessoal! Soube há pouco, pela Amanda Borges, que esse meu poema foi premiado num concurso cultural da Editora Rocco. Legal! Como podem ver, é um poeminha de circunstância, feito exatamente para o concurso, no afã da celebração dos trinta anos do livro homônimo, “Que País É Este?”, do grande Affonso Romano de Sant’Anna. Dele e do livro eu falei, sábado passado, aqui (quem não leu, ainda pode ler...). Vi agora à noite que o meu poema de fato já está publicado no blog da Editora, referente ao livro, etc. É bom ter, de vez em quando, estas pequenas alegrias de não menores surpresas! Sereníssimamente! Então, sem mais, fica uma manifestação de apreço à Editora e aos promotores do evento. Com minha gratidão. Cordialmente!
Quando o meu país nasceu
Anjos tortos tocaram vuvuzelas
Mas o sonho de ser livre
Nunca dormiu
Porque uma coisa é um país
E bem outra o que nos trai.
Quando eu nasci
Meu país era ditado
E os livros editados
Não podiam perguntar.
Até que alguém ousou.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
NOTIFICAÇÃO
Olá, pessoal! Soube há pouco, pela Amanda Borges, que esse meu poema foi premiado num concurso cultural da Editora Rocco. Legal! Como podem ver, é um poeminha de circunstância, feito exatamente para o concurso, no afã da celebração dos trinta anos do livro homônimo, “Que País É Este?”, do grande Affonso Romano de Sant’Anna. Dele e do livro eu falei, sábado passado, aqui (quem não leu, ainda pode ler...). Vi agora à noite que o meu poema de fato já está publicado no blog da Editora, referente ao livro, etc. É bom ter, de vez em quando, estas pequenas alegrias de não menores surpresas! Sereníssimamente! Então, sem mais, fica uma manifestação de apreço à Editora e aos promotores do evento. Com minha gratidão. Cordialmente!
terça-feira, 10 de agosto de 2010
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
MANUEL, O BANDEIRA...
Quem de nós não terá lido Bandeira, o Manuel, ao menos uma vez na vida com alumbramento? São deles alguns dos versos mais antológicos da poesia brasileira. Poeta mais velho, soube dialogar com os moços, como aqueles rapazes da Semana de 22, que irritaram o país, dentre outras coisas, com os sapos, de Manuel.
A poesia desse Bandeira habita o imaginário de cada um de nós, até mesmo dos que nunca abriram um livro seu ou sequer sabem ler. Por quê? Ora, Manuel foi brasileiro e, mais que isso, Brasil.
Ele, um dia, descobriu que ia morrer. Era muito novo pra isso, mas a tuberculose prometeu matar-lhe. Manuel até que esperou “a indesejada das gentes”, que não veio por um tempão. Demorou. O poeta do Recife fez, então, a poesia “da vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Sua vida, do nada foi ficando “cada vez mais cheia de tudo”. Ele a escreveu.
Considerado em seu tempo o maior poeta do Brasil, tinha de si uma ideia modesta: a consciência de ser um “poeta menor”, fadado a nem sempre conseguir transmudar emoções morais em estéticas, nas suas “pequenas dores e ainda menores alegrias”, como revela no Itinerário de Pasárgada, uma espécie de autobiografia intelectual.
Embora fosse um escritor completo, dizia que só no chão da poesia pisava com segurança. Mas, longe de viver de ilusões, professava que não há poetas perfeitos, há poemas perfeitos. Aos que lhe chamavam de grande, respondia com humor: “grande é Dante”. E, embora tenha sido imortal da Academia Brasileira de Letras, não alimentava desejo algum de imortalidade. Chegou mesmo a confessar que o seu poema A morte absoluta foi sincero, não apenas na hora em que veio à luz (única sinceridade que se espera de uma obra de arte), mas sempre.
Bandeira foi um respeitado tradutor. E, das línguas que bem conhecia, saiu-nos uma vez com esta afirmação: “sempre achei que dos idiomas que conheço o inglês é por excelência a língua da poesia: tudo se pode dizer em inglês, e a ternura mais desmanchada nunca mela”. Coisas do Manuel!... Gostava de ser traduzido (considerava algumas traduções feitas de seus poemas, melhores que os originais). Coisa dele! Porque nós preferimos ele por ele mesmo! Malungo com todos os mafuás!...
Eu também, Manuel, já arrumei a mala duas ou três vezes, e disse pra todo mundo que ia embora pra Pasárgada! Sim, lá sou amigo do rei e as outras coisas... Também eu, poeta, só vi o rio Capiberibe, Capibaribe (pela primeira vez, depois de mil vezes), ao ler teus versos. E jamais o teria visto de fato, se não o tivesses dito em poesia! Também eu persegui a minha estrela da manhã, por quem faria tudo, até morrer, e sem a qual nunca mais soube viver...
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 09 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
A poesia desse Bandeira habita o imaginário de cada um de nós, até mesmo dos que nunca abriram um livro seu ou sequer sabem ler. Por quê? Ora, Manuel foi brasileiro e, mais que isso, Brasil.
Ele, um dia, descobriu que ia morrer. Era muito novo pra isso, mas a tuberculose prometeu matar-lhe. Manuel até que esperou “a indesejada das gentes”, que não veio por um tempão. Demorou. O poeta do Recife fez, então, a poesia “da vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Sua vida, do nada foi ficando “cada vez mais cheia de tudo”. Ele a escreveu.
Considerado em seu tempo o maior poeta do Brasil, tinha de si uma ideia modesta: a consciência de ser um “poeta menor”, fadado a nem sempre conseguir transmudar emoções morais em estéticas, nas suas “pequenas dores e ainda menores alegrias”, como revela no Itinerário de Pasárgada, uma espécie de autobiografia intelectual.
Embora fosse um escritor completo, dizia que só no chão da poesia pisava com segurança. Mas, longe de viver de ilusões, professava que não há poetas perfeitos, há poemas perfeitos. Aos que lhe chamavam de grande, respondia com humor: “grande é Dante”. E, embora tenha sido imortal da Academia Brasileira de Letras, não alimentava desejo algum de imortalidade. Chegou mesmo a confessar que o seu poema A morte absoluta foi sincero, não apenas na hora em que veio à luz (única sinceridade que se espera de uma obra de arte), mas sempre.
Bandeira foi um respeitado tradutor. E, das línguas que bem conhecia, saiu-nos uma vez com esta afirmação: “sempre achei que dos idiomas que conheço o inglês é por excelência a língua da poesia: tudo se pode dizer em inglês, e a ternura mais desmanchada nunca mela”. Coisas do Manuel!... Gostava de ser traduzido (considerava algumas traduções feitas de seus poemas, melhores que os originais). Coisa dele! Porque nós preferimos ele por ele mesmo! Malungo com todos os mafuás!...
Eu também, Manuel, já arrumei a mala duas ou três vezes, e disse pra todo mundo que ia embora pra Pasárgada! Sim, lá sou amigo do rei e as outras coisas... Também eu, poeta, só vi o rio Capiberibe, Capibaribe (pela primeira vez, depois de mil vezes), ao ler teus versos. E jamais o teria visto de fato, se não o tivesses dito em poesia! Também eu persegui a minha estrela da manhã, por quem faria tudo, até morrer, e sem a qual nunca mais soube viver...
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 09 de agosto de 2010.
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sábado, 7 de agosto de 2010
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
Affonso Romano de Sant’Anna, 1937, é um dos maiores nomes das letras do nosso país. Do nosso país e do mundo. Esse mineiro de Belo Horizonte, que reside oficialmente no Rio de Janeiro, mas que pode estar a qualquer momento em qualquer lugar, é incansável arauto da poesia. Só da poesia? Não. Embora, em seu caso, ser só poeta já nos bastasse. Ele é jornalista. Foi considerado um dos dez que mais influenciam a opinião pública. Exímio cronista, teve a árdua tarefa – mais que honra, grandíssima responsabilidade! – de substituir o amigo Carlos Drummond de Andrade, em 1984, no Jornal do Brasil. Professor em várias universidades nacionais, trabalhou também em outras do exterior. Na ditadura militar, fora proibido de sair do país. Mas saiu. Lecionando nos Estados Unidos aumentava a nota de muitos dos seus alunos, para impedir que estes fossem mandados à guerra do Vietnã. É conferencista, mundial, de altíssimo nível. Escritor versátil, ensaísta e crítico de reconhecida cultura. Aliás, é admirável esta sua capacidade extraordinária de dialogar com as mais diversas culturas e gerações. Homem que fala e é entendido pelo povo, mesmo quando tem sob perfeito domínio as línguas de fogo quase ininteligíveis da academia. Recebeu incontáveis prêmios. Sua tese de doutoramento, transformada em livro – Carlos Drummond de Andrade, o poeta ‘gauche’ no tempo – mereceu nada menos de quatro prêmios nacionais. Quem já leu essa obra intuirá que dificilmente alguma coisa pode ter sido escrita sobre o poeta de Itabira, naquela ocasião, em mais alto nível e tão perfeita qualidade. Affonso fez e continua a fazer muito pela cultura do Brasil. Ele já presidiu a Biblioteca Nacional – a oitava maior do mundo – e foi, entre os anos de 1990/1996, o mentor da modernização tecnológica dessa instituição. Nesse período lançou programas de projeção nacional e internacional. Por isso, quando ele hoje critica ou insiste em determinados aspectos dos métodos de Educação (leitura, por exemplo), ele o faz com a autoridade de quem sabe o que diz, porque já experimentou meios bem sucedidos aí, tanto quanto na sua vasta experiência profissional em diversas partes do mundo.
Mas fixemo-nos um pouco mais no poeta, porque isso ele o é em tempo integral. Além de marido da Marina Colasanti, também escritora, e pai de duas lindas filhas. Seu primeiro livro de poesia é de 1965, "Canto e Palavra". Seu nome, entretanto, já era conhecido em publicações culturais do país desde 1956. Participou dos movimentos de vanguarda que agitaram a poesia brasileira dos anos 1960. Só a poesia? Não, embora em seu caso bastasse. Ele quis atuar, também, nos movimentos políticos e sociais de então. Foi, por exemplo, em perigosos tempos de ditadura que veio a lume o desconcertante “Que País É Este?” (1980). Com poesia fez revolução, seus versos invadiram jornais e lugares até então pouco usuais a coisas de poeta. Nas barbas do ditador, todo mundo ousou não apenas perguntar, mas também responder, com a lira feérica do Affonso.
Outros livros de poesia: “Poesia Sobre Poesia” (1975), “A Grande Fala Do Índio Guarani” (1978), “Política E Paixão” (1984), “A Catedral De Colônia” (1985), “O Lado Esquerdo Do Meu Peito” (1992), “Textamentos” (1999). Quis aqui apenas ressaltar o poeta, mas não nos esqueçamos que é bem mais ampla a sua bibliografia em prosa: ensaios, livros de crônica, etc.
Affonso foi amigo de pessoas muito especiais, como Clarice Lispector. Sempre esteve próximo das maiores expressões literárias do seu tempo, do seu país e de todo o mundo (como Octavio Paz, Elizabeth Bishop, Saramago e muitos outros). Trouxe, inclusive, o filósofo francês Michel Foucault ao Brasil. Mas nunca perdeu a simplicidade, não se distanciou daqueles que o admiram e veneram. Sendo tão grande, faz-se às vezes pequeno para estar mais próximo dos que dele muito aprendem. E não é apenas um grande poeta, mas uma grande pessoa. Está aí um homem que se deixou seduzir pela palavra, e pela mesma palavra nos seduz. Quis ser poeta e não sossegou enquanto a poesia não baixou de vez, para além dos lençóis adolescentes, nos seus versos todos. Explico. Quando ele era adolescente, uma vez procurou Manuel Bandeira. Este era considerado então o maior poeta do país. O rapazinho mineiro não se intimidou, juntou seus versos e foi levá-los pessoalmente ao “poetão” nacional. Bandeira o recebeu, prometeu que leria e escreveria dizendo o que achou. Um dia chegou a carta, que começava assim: “Achei muito ruins os teus versos”... Mas logo Manuel citou três poemas “melhores” e os derradeiros versos do Poema aos poemas que ainda não foram escritos. Affonso, que sempre amou a verdade, ficou feliz com a crítica sincera. Concluiu, nesse dia, que a poesia era possível. E, como já sabemos, ela aconteceu.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 07 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
Mas fixemo-nos um pouco mais no poeta, porque isso ele o é em tempo integral. Além de marido da Marina Colasanti, também escritora, e pai de duas lindas filhas. Seu primeiro livro de poesia é de 1965, "Canto e Palavra". Seu nome, entretanto, já era conhecido em publicações culturais do país desde 1956. Participou dos movimentos de vanguarda que agitaram a poesia brasileira dos anos 1960. Só a poesia? Não, embora em seu caso bastasse. Ele quis atuar, também, nos movimentos políticos e sociais de então. Foi, por exemplo, em perigosos tempos de ditadura que veio a lume o desconcertante “Que País É Este?” (1980). Com poesia fez revolução, seus versos invadiram jornais e lugares até então pouco usuais a coisas de poeta. Nas barbas do ditador, todo mundo ousou não apenas perguntar, mas também responder, com a lira feérica do Affonso.
Outros livros de poesia: “Poesia Sobre Poesia” (1975), “A Grande Fala Do Índio Guarani” (1978), “Política E Paixão” (1984), “A Catedral De Colônia” (1985), “O Lado Esquerdo Do Meu Peito” (1992), “Textamentos” (1999). Quis aqui apenas ressaltar o poeta, mas não nos esqueçamos que é bem mais ampla a sua bibliografia em prosa: ensaios, livros de crônica, etc.
Affonso foi amigo de pessoas muito especiais, como Clarice Lispector. Sempre esteve próximo das maiores expressões literárias do seu tempo, do seu país e de todo o mundo (como Octavio Paz, Elizabeth Bishop, Saramago e muitos outros). Trouxe, inclusive, o filósofo francês Michel Foucault ao Brasil. Mas nunca perdeu a simplicidade, não se distanciou daqueles que o admiram e veneram. Sendo tão grande, faz-se às vezes pequeno para estar mais próximo dos que dele muito aprendem. E não é apenas um grande poeta, mas uma grande pessoa. Está aí um homem que se deixou seduzir pela palavra, e pela mesma palavra nos seduz. Quis ser poeta e não sossegou enquanto a poesia não baixou de vez, para além dos lençóis adolescentes, nos seus versos todos. Explico. Quando ele era adolescente, uma vez procurou Manuel Bandeira. Este era considerado então o maior poeta do país. O rapazinho mineiro não se intimidou, juntou seus versos e foi levá-los pessoalmente ao “poetão” nacional. Bandeira o recebeu, prometeu que leria e escreveria dizendo o que achou. Um dia chegou a carta, que começava assim: “Achei muito ruins os teus versos”... Mas logo Manuel citou três poemas “melhores” e os derradeiros versos do Poema aos poemas que ainda não foram escritos. Affonso, que sempre amou a verdade, ficou feliz com a crítica sincera. Concluiu, nesse dia, que a poesia era possível. E, como já sabemos, ela aconteceu.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 07 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
"QUE PAÍS É ESTE?", O CASO.
Em 1980, Affonso Romano de Sant’Anna publicou o livro “Que País É Este?”. Ousado livro, tendo em vista que o país interpelado era o da ditadura militar. A obra tornou-se célebre. Seus versos de abertura foram publicados com destaque no Jornal do Brasil. E, logo ganharam o mundo. Sim, o livro é atrevido. E neste ano faz aniversário, com direito até a reedição pela Rocco.
Evidentemente falar de ditadura está na moda. Multiplicam-se livros com esse tema. Filmes, então, nem se fala!... Mas, embora esse detalhe ajude a propagar o livro e qualquer outra coisa que queiramos vender na pós-repressão ditatorial, a obra não é boa (só) por isso. Com ditador ou sem ditador – para quem, avante, já desfilamos de tênis, ingenuamente –, o livro do Sant’Anna é autônomo e se impõe do mesmo jeito. Sim, é bom de qualquer jeito!
Quem já cantou com a Legião Urbana de Renato Russo essa atualíssima pergunta (mesmo quem é jovem e nunca passou por uma ditadura), se não leu tem agora renovada oportunidade de aventurar-se nas páginas de “Que País É Este?”, do poeta Affonso Romano de Sant’Anna. Talvez finde o livro sem qualquer resposta, mas crescerá no espírito.
Porque nesse interessante caso, não é o livro que precisa do país, mas o país que precisa do livro.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 07 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
Evidentemente falar de ditadura está na moda. Multiplicam-se livros com esse tema. Filmes, então, nem se fala!... Mas, embora esse detalhe ajude a propagar o livro e qualquer outra coisa que queiramos vender na pós-repressão ditatorial, a obra não é boa (só) por isso. Com ditador ou sem ditador – para quem, avante, já desfilamos de tênis, ingenuamente –, o livro do Sant’Anna é autônomo e se impõe do mesmo jeito. Sim, é bom de qualquer jeito!
Quem já cantou com a Legião Urbana de Renato Russo essa atualíssima pergunta (mesmo quem é jovem e nunca passou por uma ditadura), se não leu tem agora renovada oportunidade de aventurar-se nas páginas de “Que País É Este?”, do poeta Affonso Romano de Sant’Anna. Talvez finde o livro sem qualquer resposta, mas crescerá no espírito.
Porque nesse interessante caso, não é o livro que precisa do país, mas o país que precisa do livro.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 07 de agosto de 2010.
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terça-feira, 3 de agosto de 2010
VESTÍGIOS
A palavra se interpôs
Entre mim e o silencioso ruído
Do amor...
Desdobrou-se, como um céu de pálio
Ou guarda-chuva azul gigante,
Adornada de enigmas,
Velhas perguntas – belas –
Que não se responderão!
Amarelo
Um cravo nasceu do dia
Em seu primevo clarão...
Abriu-se na mão vazia
Que, aberta, não fecharão.
A alegria dançou
Sobre os traços cômicos
De meu rosto maturado!...
Eis minha face nua,
Primorosamente lapidada!
A marca do tempo em mim,
Com suas unhas de ouro,
Deixou brilhantes vestígios,
Caminhos, linhas de história,
Coisas que vi e vivi...
Fez-se o homem que hoje sou!
Os anos trazem-nos feixes
De aguda consciência,
Lucidez, sabedoria,
Coisa que assombra e nos pasma!
A vida é mesmo um espanto
Tremendo!
Centelha de esperança,
Fagulha de sonho e desejo,
Boca de um virginal fascínio!
Ó mistério antigo!
Ó novo!...
Antonio Fabiano
Direitos reservados
Entre mim e o silencioso ruído
Do amor...
Desdobrou-se, como um céu de pálio
Ou guarda-chuva azul gigante,
Adornada de enigmas,
Velhas perguntas – belas –
Que não se responderão!
Amarelo
Um cravo nasceu do dia
Em seu primevo clarão...
Abriu-se na mão vazia
Que, aberta, não fecharão.
A alegria dançou
Sobre os traços cômicos
De meu rosto maturado!...
Eis minha face nua,
Primorosamente lapidada!
A marca do tempo em mim,
Com suas unhas de ouro,
Deixou brilhantes vestígios,
Caminhos, linhas de história,
Coisas que vi e vivi...
Fez-se o homem que hoje sou!
Os anos trazem-nos feixes
De aguda consciência,
Lucidez, sabedoria,
Coisa que assombra e nos pasma!
A vida é mesmo um espanto
Tremendo!
Centelha de esperança,
Fagulha de sonho e desejo,
Boca de um virginal fascínio!
Ó mistério antigo!
Ó novo!...
Antonio Fabiano
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CRIAÇÃO
O teu sopro – hálito sereno –
este invisível movimento mais ternário
– para além dos sentidos – que me toca e
molda (o barro de que sou feito)
cria-me obra magna
a um só tempo
e numa só fração de epifania
coisa de Michelangelo e Da Vinci...
Deste-me a tez de um dos profetas de
Aleijadinho
o escultor sem mãos que esculpiu Deus
e deu das pedras duras
filhos mais delicados a Abraão.
Minha ira não se apaga
com fogo de pequena Inquisição
nem se sublima
com menor quimera que ela...
É de um amor que eu ardo!
Foi teu querer que assim me fez!
Aguente o dardo!
Minha condenação é salvação predestinada!
Trago um rugir profundo...
de gênio aprisionado
em lâmpada que nenhuma outra mão esfrega!
Só para ti desperto nessa entrega!
E venho em certezas mais exatas
que as da matemática!
Tu me tocas
e o que há de grande em mim
todo o meu ser “renascentista”
se levanta – e canta e canta e canta –
a conversar com o mundo que
em espiral
perfaz-me atado pelas mesmas mãos da história!
Eis-me lampejo
quase ameno
brilho rútilo que parte o céu em bandas com mais força!
Eis-me tão meio claro e meio escuro
já bem postado
entre duas potências acabadas
de uma primeira luz
desperta e desmaiada!
Sou mais visionário
que Colombo
a sonhar e vislumbrar
seu Novo Mundo!
Mais visionário e louco
que Copérnico
a tirar todos os orbes siderais
de seus seguros
e mui eternos eixos!
Que venha o que há de vir...
Estou aqui!
Ouvi teu “Fiat”...
Agora eu mesmo digo “Faça-se”...
Antonio Fabiano
Direitos reservados
este invisível movimento mais ternário
– para além dos sentidos – que me toca e
molda (o barro de que sou feito)
cria-me obra magna
a um só tempo
e numa só fração de epifania
coisa de Michelangelo e Da Vinci...
Deste-me a tez de um dos profetas de
Aleijadinho
o escultor sem mãos que esculpiu Deus
e deu das pedras duras
filhos mais delicados a Abraão.
Minha ira não se apaga
com fogo de pequena Inquisição
nem se sublima
com menor quimera que ela...
É de um amor que eu ardo!
Foi teu querer que assim me fez!
Aguente o dardo!
Minha condenação é salvação predestinada!
Trago um rugir profundo...
de gênio aprisionado
em lâmpada que nenhuma outra mão esfrega!
Só para ti desperto nessa entrega!
E venho em certezas mais exatas
que as da matemática!
Tu me tocas
e o que há de grande em mim
todo o meu ser “renascentista”
se levanta – e canta e canta e canta –
a conversar com o mundo que
em espiral
perfaz-me atado pelas mesmas mãos da história!
Eis-me lampejo
quase ameno
brilho rútilo que parte o céu em bandas com mais força!
Eis-me tão meio claro e meio escuro
já bem postado
entre duas potências acabadas
de uma primeira luz
desperta e desmaiada!
Sou mais visionário
que Colombo
a sonhar e vislumbrar
seu Novo Mundo!
Mais visionário e louco
que Copérnico
a tirar todos os orbes siderais
de seus seguros
e mui eternos eixos!
Que venha o que há de vir...
Estou aqui!
Ouvi teu “Fiat”...
Agora eu mesmo digo “Faça-se”...
Antonio Fabiano
Direitos reservados
PENHOR
Deu-me o penhor das eras
Lirismos descomedidos
Roupas de agora e d’antes
Um sonho dentro de outro sonho
E nenhum medo de viver!
De meus secretos desígnios
Grito a esta gente
Em línguas ígneas
E profetizo o novo
O fim e o começo
E o que está por vir
Antes de vir o devir.
Obra de nossas mãos
São todos esses vãos
Entre existir e ser...
“Façamos...”
“Vós sois deuses...”
Enquanto falo
As pedras calam
Sua dureza e fria ira.
São o que são
E eu digo: não!
O futuro se levanta
Já sem véus...
Quem o verá?
Antonio Fabiano
Direitos reservados
Lirismos descomedidos
Roupas de agora e d’antes
Um sonho dentro de outro sonho
E nenhum medo de viver!
De meus secretos desígnios
Grito a esta gente
Em línguas ígneas
E profetizo o novo
O fim e o começo
E o que está por vir
Antes de vir o devir.
Obra de nossas mãos
São todos esses vãos
Entre existir e ser...
“Façamos...”
“Vós sois deuses...”
Enquanto falo
As pedras calam
Sua dureza e fria ira.
São o que são
E eu digo: não!
O futuro se levanta
Já sem véus...
Quem o verá?
Antonio Fabiano
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segunda-feira, 2 de agosto de 2010
AS MANHÃS DE SEGUNDA
As manhãs de segunda-feira são irremediavelmente incômodas. Talvez não fosse esta a palavra exata. O sentido é aquele de uma manhã indecisa, que não quer ser “já” ou tem de ser às pressas para os que vão atrasados aos seus trabalhos e demais pendências do cotidiano.
As manhãs de segunda-feira são preguiçosas. Elas, não nós. Os domingos têm olhos de ipê-amarelo; as sextas-feiras têm bochechas de ipê-roxo; mas as segundas-feiras...
Esta manhã, por exemplo, parece um cão se espichando. E essa dormência às vezes vai até a hora do almoço, com mãos cheias de ventos, abrimentos de boca e desejos de que se acabe logo o dia.
De repente a semana decola! Levanta voo e daqui a pouco finda! Ainda ontem não era domingo? Domingo! E se esse dia para os cristãos é do Senhor, parece agora que nele só o Senhor mesmo descansa! Quase ninguém mais para! O domingo cansa e a segunda mata!
Porém, alguns já se levantam com disposições extremas nestas manhãs de segunda-feira. E só porque é um novo começo, dos chamados dias úteis, tais pessoas despertam e sonham planilhas inteiras de metas, irreverentes conquistas, vitórias. Os mais teimosos, lá chegarão!
Nada nos impede de pensar que somos, neste primeiro dia “útil”, os criadores de todas as manhãs seguintes. Até que venha, outra vez, outra segunda-feira. E outra. E mais outras...
Mas cuidemos, porque o dia já declina!
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 02 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com
As manhãs de segunda-feira são preguiçosas. Elas, não nós. Os domingos têm olhos de ipê-amarelo; as sextas-feiras têm bochechas de ipê-roxo; mas as segundas-feiras...
Esta manhã, por exemplo, parece um cão se espichando. E essa dormência às vezes vai até a hora do almoço, com mãos cheias de ventos, abrimentos de boca e desejos de que se acabe logo o dia.
De repente a semana decola! Levanta voo e daqui a pouco finda! Ainda ontem não era domingo? Domingo! E se esse dia para os cristãos é do Senhor, parece agora que nele só o Senhor mesmo descansa! Quase ninguém mais para! O domingo cansa e a segunda mata!
Porém, alguns já se levantam com disposições extremas nestas manhãs de segunda-feira. E só porque é um novo começo, dos chamados dias úteis, tais pessoas despertam e sonham planilhas inteiras de metas, irreverentes conquistas, vitórias. Os mais teimosos, lá chegarão!
Nada nos impede de pensar que somos, neste primeiro dia “útil”, os criadores de todas as manhãs seguintes. Até que venha, outra vez, outra segunda-feira. E outra. E mais outras...
Mas cuidemos, porque o dia já declina!
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 02 de agosto de 2010.
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