domingo, 15 de novembro de 2020
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 10 - FINAL)
Como se não bastasse,
outros aspectos enigmáticos favorecem o poema. O primeiro deles diz respeito a “Uma nuvenzinha / Apareceu no céu / Sobre o
mar. / Escureceu. / Ouviu-se grande estrondo / Luz / E ventos”.
São indícios de uma
grande tempestade.
Trata-se da história do
profeta Elias e o rei Acabe.
Depois de ir e vir, o
encontro acirrou-se entre os dois. Após tudo isto, Elias disse a Acabe: sobe,
corre, etc.
Esta história se
encontra em Primeiro Reis, cap. 18 (Bíblia Sagrada).
Por analogia, pode-se
estabelecer uma ligação deste fenômeno poético com a história de Elias e o rei
Acabe. Elias apresentou-se a Acabe e a palavra do Senhor veio a ele dizendo:
Vai e mostra-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra. Elias, prontamente,
obedeceu, quando de repente, cai a chuva.
O espaço da cena do
poema estabelece uma relação com a história acima mencionada. Vejamos:
“A
chuva caiu
Indizível.
A
chuva
Caiu.
A
chuva.
A...
Chove.”
................................
................................
................................
O bloco poemático
continua até os versos: “E ainda chove /
Chove”.
Este bloco está
inscrito num espaço, que constrói o traço peculiar de um poema concreto.
Poesia concreta:
produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo
histórico do verso (unidade ritmo-formal), a poesia concreta começa por tomar
conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado:
estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear.
Daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe
espacial ou visual, até o seu sentido específico, realismo total, contra uma poesia
de expressão subjetiva e hedonística. – p. 270-271 - Didática da Literatura
- José Maria de Souza Dantas.
Observe a forma que o
poema assume: o cair de uma chuva, de mais intensa para menos intensa,
terminando, visualmente falando, como uma estrutura espácio-temporal, qualificado.
É tão perfeita a comparação do espaço que nos dá a ideia de um ideograma: a
chuva se despencando do céu, como uma cascata de luz e som.
“Na
montanha / Chove / Quedas d’água / Chove / Sibila aquática a água / E ainda
chove / Chove”. (grifo nosso).
Este poema “Serpente
Emplumada” é tão complexo, profundo, completo que o poeta explorou nada mais
nada menos que Literatura, Teoria da Literatura, Poesia em toda a sua extensão,
além de Língua Portuguesa, Língua Asteca (explicação do título do poema), e outras,
Teologia, Filosofia e Poesia Concreta. É demais para o meu pouco conhecimento.
Cada poema, pelo tom
confessional, pela experiência do que se reveste, pela emoção que o anima, é
como se fora uma parte do próprio poeta a se desprender e a se projetar, a se
difundir e a perpetuar o seu criador. É o que aconteceu com o poeta Fabiano. Fenomenologia
da Obra Literária. – p.209.
Como consequência dessa
“nuvenzinha” que derramou chuva, tem-se outro bloco, dando continuidade a mesma
temática.
É um bloco rico de
imagens como a chuva que desce do céu, “Escorre
a sabedoria / Caudalosa”. É preciso sabedoria para compreender o mundo com
tudo que há nele, mas principalmente entender os desígnios de Deus.
Como resultado da chuva
caída tem-se: “O serpear dos rios / Por
entre encostas / A timidez (obscuridade) / Dos barrancos”. Olhe só o
paralelo entre “O olhar miúdo / Das miúdas fontes”, é uma figura de
construção: Anadiplose – é o emprego da mesma palavra ou expressão no
final de uma frase ou verso e no início da seguinte ou do seguinte, por exemplo:
“Daquele céu de safira / Que se mira, / Que se mira nos cristais!” (Casimiro de
Abreu).
A seguir outra imagem
muito sugestiva:
“Aquele
arisco emaranhado
De
torrentes
Diluvianas
poças
De
ilusão”.
Quando a chuva cai no
chão, mistura-se tudo: barro, mato e água, por isso “emaranhado / De torrentes / Diluvianas poças”, mas “De ilusão”. As poças não são d’água são
sim de ilusão. A cena aqui descrita focaliza o ambiente interno onde se
encontra o sujeito do enunciado, figura central sobre a qual incide o foco
descritivo. Sim, porque a ilusão é um sentimento que recai sobre o sujeito da
enunciação e/ou do sujeito do enunciado.
O poeta abandona o
casulo do lirismo egotista e entrega-se à contemplação do espaço cósmico e à
respiração de amplos temas:
“Chove
/ E tudo chora / De gratidão / De gratidão e medo / De alegria e medo / De
alegria / Por haver água / E ser de água marejada / A esfera azul / Que chora”.
É digno de nota a
gratidão. Gratidão pela água marejada = (leve agitação das ondas do
mar).
O espaço da cena que,
afinal é o espaço do discurso, é articulado por uma coreografia feita de:
“O
silêncio / De quando Deus refez o mundo / Pelas águas / Atravessou a epopeia. /
E no bater de asas / De uma pomba / (Como num piscar de olhos...) / Calou
todas as mágoas / Levou tudo / Lavou tudo... // Tudo.”
Este incidente revela o
dilúvio. Percebe-se e confirma-se pelo espaço, claramente delineado pela figura
da pomba.
Mas vejamos ainda
outros aspectos de interesse nesse final em que a palavra assume importância
cada vez maior, como:
“Cada poema se
caracteriza por ser um universo emotivo e semântico autônomo, a fusão entre a
emotividade, a musicalidade e a carga semântica particulariza cada texto
poético” (p.219) na medida em que o poeta vai esgotando o seu tema. Observe a
emotividade, a musicalidade e a carga semântica dos versos a seguir:
“Ouviu-se
por último / O ruído de uma leve brisa / (– leve... leve...) / E
no tênue sussurro / O perguntar: / Que aqui fazes?”
(grifos nossos)
E a resposta vem logo
em seguida:
“Ardo”.
A problemática da existência
parece presidir, portanto, à estrutura desse poema de Fabiano, que nos faz
considerar por um momento o mistério da vida e de sua peculiar forma de
eternidade. (p.213) É só conferir os versos:
“E
da argila do poema / Haverá novo homem... / Sobre os ossos ressequidos / Do
poema / Nova carne / E vida”.
Mais uma imagem se nos
revela, num paralelo estabelecido, quando da criação do homem e do mundo: Deus
foi quem criou o primeiro homem com um sopro, numa porção de barro.
Se há nele (o poeta)
alguma abertura para o mundo exterior, essa se concentra para o seu mundo
interior na reflexão do seu Eu-poético, para o próprio Deus:
“Depois
disso o Senhor / Por quem meu ardente zelo / Arde e zela / Soprará / E da
argila do poema / Haverá novo homem...”
Surge então esse novo
homem dos “ossos ressequidos / Do poema /
Nova carne / E vida”.
O poeta se identifica
com o próprio poema. Ele está sofrido porque debruçou-se “Sobre os ossos ressequidos / Do poema”... porém, “Nova carne / E
vida” ressurgiu.
Depois disto tudo está
consumado, porque “Deus não pedirá mais /
Isaac em sacrifício / Nem sacrifício algum”.
Enfim:
“Descansaremos
Eu
e Deus
Deus
que viu que tudo era bom”.
Note-se que a tendência
para intelectualizar o tema da Criação, conforme revelam os derradeiros versos,
respeitou os acidentes formais que fazem deste poema uma epopeia. – p.285 -
Massaud Moisés - A Criação Literária - Poesia.
Para o leitor, este
poema é um momento absoluto de poesia, embora para o artista ele represente a angústia
da criação.
Todo esse enigma que
agora se clarifica é a Poesia como chave e caminho, como mapa e código. O
código que afinal se resolve por um detalhe mínimo, e tudo se liberta, tudo se
ilumina, tudo é epifania. A epifania que se concretizou com o confronto entre o
deus mitológico da criação – “A
deidade... Ofídia verdade” ó que
equivale ao deus serpente emplumada, o deus da criação dos astecas que
acreditavam no sol de Quetzalcoatl e o Deus da Criação (tradição judaico-cristã),
“que viu que tudo era bom”.
Com essa epifania
completa-se o ciclo em torno de si mesmo. O eu se reintegra depois de ter se
apartado na procura de si mesmo através do tempo. A travessia do tempo pela
poesia. Onde não havia Nada, senão aparência. Agora existe uma obra, um Ser,
uma consciência. O poeta poematizou o tempo e a si mesmo; salvou-se da
destruição e erigiu uma fundação porque “a poesia é a fundação do ser pela
palavra” – Affonso Romano de Sant’Anna – Carlos Drummond de Andrade: Análise
da Obra – 2ª edição. Editora Documentário – Rio de Janeiro.
Natal,
22 de julho de 2020.
Elizabeth de Souza Araújo
________________________
RELAÇÃO DE LIVROS UTILIZADOS NESTA LEITURA
BOSI,
Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Editora da Universidade de São
Paulo. Editora Cultrix.
DANTAS,
José Maria de Souza. Didática da Literatura. Ed. Forense Universitária,
1982.
DELAS,
Daniel e FILLIOLET, Jacques. Linguística e Poética. Editora da Universidade
de São Paulo. Editora Cultrix Ltda.
DUBOIS,
Jacques. Retórica da Poesia. Editora da Universidade de São Paulo.
Editora Cultrix.
EIKHENBAUM
et alii. Teoria da Literatura. Formalistas Russos – Tradução de
Ana Mariza Ribeiro Filipouski, e outros. Editora Globo.
TAVARES,
Hênio. Teoria Literária. Editora Itatiaia Ltda. Belo Horizonte – Brasil.
____________
Técnica de Leitura e Redação. Coleção Didática Moderna 23. Livraria
Cultura Brasileira Ltda. Belo Horizonte.
MOISÉS,
Massaud. A Criação Literária-Poesia. 10ª edição rev. – São Paulo: Cultrix,
1987.
PORTELLA,
Eduardo e outros. Teoria Literária. Biblioteca Tempo Universitário 42.
Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro - RJ - 1976.
RAMOS,
Maria Luiza. Fenomenologia da Obra Literária. Forense Universitária –
Rio de Janeiro.
REIS,
Carlos. Técnicas de Análise Textual - 3ª edição. Livraria Almedina -
Coimbra - 1981.
SANT’ANNA,
Afonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra.
Editora Documentário – RJ.
STAIGER,
Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Biblioteca Tempo Universitário.
Coleção dirigida por Eduardo Portella. Professor da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
TAHIM,
Jacirema (Organização). Estudos de Literatura. Introdução à
Literatura através da Análise e da Interpretação de seu Discurso. Natal;
Fundação José Augusto, UFRN. Ed. Universitária, 1988.
TELES,
Gilberto Mendonça. A Estilística da
Repetição – Drummond. 2ª edição rev. aum. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 9)
A dinâmica
interior/exterior e toda a área do poema se organizam, também, sintaticamente.
A pontuação exerce função fundamental na marcação do ritmo. As reticências não
indicam a interrupção abrupta e conclusiva da sequência frasal como ocorre com
o sinal de ponto. São pausas cheias de sugestões que não indicam o fim, mas o
prolongamento do sentido ou dos sentidos do verso.
O discurso lírico resulta,
muitas vezes, de uma livre expressão de estados emotivos justamente por
imagens, e o poema não se deixa espartilhar por uma organização sintática muito
complexa, optando pela parataxe cuja formulação se ajusta a esse fluir.
“O
poema ficou calado.
O
poema parou.
(...)
Ou...
deverá o poeta
(...) ”
De agora em diante, o movimento, neste momento, se instaura, com os versos: ... “Sem pressa / Como e quando bem quiser... / Implorar / Com humildade e paciência / Que a poesia venha / Torrencial / (Como chuva milagrosa / Em terra árida
Fazendo
explodir do nada cinzento
O
verde fênix da caatinga)
Sobre
o poema...”
Estes versos possuem
uma cadência de ir e de voltar que as reticências complementam. Estas, enquanto
estabelecem uma pausa entre as estrofes dos versos acima mencionados, nada
concluem, antes dão continuidade ao movimento, mantendo o tempo do verso. A
pausa das reticências não é propriamente uma parada, mas um alongamento, uma
duração. No verso “O verde fênix da
caatinga”... não só o fonema /e/
de verde e /ê/ de fênix se perpetua
fônica e semanticamente, o segmento posterior também é aguardado, “Sobre o
poema...”, criando assim uma expectativa em torno de um depois, de uma sequência:
“Que haja a torrente de Carit”...
Estas últimas reticências
indicam a repetição do processo que não se conclui nunca. As reticências fazem
o ritmo e o sentido ultrapassarem a linha do verso. Enquanto o primeiro
segmento do verso anterior é prolongado, o segundo é já sugerido, formando-se
assim uma cadeia, tendo as reticências como ligação. Estas, ao mesmo tempo em
que interrompem a frase ou sintagma, também o projetam.
Em destaque, nesta
estrofe o verso
“O verde fênix da caatinga”.
Por analogia, considerar-se-ia
uma metáfora.
A metáfora consiste no
transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da
espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia. – p.197 de A
Criação Literária de Massaud Moisés.
A metáfora constrói-se
da junção de duas ideias:
“ideia original” e “ideia tomada de
empréstimo”, “aquilo que está sendo dito ou pensado” e “aquilo com que está
sendo comparado”, “ideia subjacente” e “qualidade imaginada”, “significado e
metáfora”, “ideia e sua imagem”. A intercessão do designatum (ideia original)
Charles Morris – p.198 A Criação Literária de Massaud Moisés. A
interação do designatum e do veículo geraria um novo sentido, diverso daquele
que cada qual apresenta isoladamente; e a unidade de sentido se imporia como
resultante de características comuns a ambos, do contrário, a metáfora não se
constrói (172). De onde o conceito de metáfora: dois pensamentos de diferentes
coisas que atuam juntos e escorados por uma única palavra ou frase, cujo
sentido é consequência de sua interação (173) – Idem, ibidem.
Hedwig Konrad considera
a metáfora “uma transposição fundada na abstração e na semelhança” (177).
Hedwig Konrad, op. cit. p.38.
Além da interação
sugerida por I. A. Richards, temos ainda: confrontação, analogia, justa posição,
parataxe, tensão, bipolaridade, unificação de heterogêneos.
No geral, como se vê,
simbolizam uma única operação da mente, ou a redução à unidade dos vários
processos subtendidos na composição da metáfora.
Como se vê: a caatinga
é cinza, a fênix é uma ave que ressurgiu das cinzas. Porém, aqui, ela (a
caatinga) ressurgiu verde. Houve o confronto de duas ideias: a original e a
ideia subjacente: ‘caatinga cinza’ versus ‘caatinga verde’, gerando um novo
sentido: a metáfora: “O verde fênix da
caatinga”. Não é fantástica, original e bela (a metáfora)?!
A metáfora não é,
propriamente falando, uma substituição de sentido, mas uma modificação de
conteúdo semântico de um termo – o que não é um conceito, mas descrição de um
fato. – I. A. Richards, op. cit., p.127. In: A Criação Literária –
Poesia – Massaud Moisés – p.200.
De inspiração
igualmente histórica e profética são estas outras estrofes:
“Que
haja a torrente de Carit
E
corvos venham e tragam
Pão
e carne...
Que
haja outras viúvas em Sarepta
E
mais milagres de farinha e azeite
Inextinguíveis...”
Faz-se mediata pela palavra
eclesial e teológica a belíssima relação com o sagrado:
“Elias prediz contra
Acabe e é sustentado pelos corvos... Depois, veio a ele a palavra do Senhor,
dizendo: Vai-te daqui, e vira-te para o Oriente, e esconde-te junto ao ribeiro
de Querite, que está diante do Jordão.”
No poema “Serpente
Emplumada” tem-se “Querite” palavra em hebraico que originou em português “Carit”.
É só uma questão de “transliteração”, mudança de fonemas, como acontece em
nossas Bíblias, a exemplo de Jefté e Jeftá ou Jeová, Javé e Yavé, com um único
significado. Explicação dada pelo pastor, teólogo Klauber Maia.
“E há de ser que
beberás do ribeiro; e eu tenho ordenado aos corvos que ali te sustentem. E os
corvos lhe traziam pão e carne pela manhã, como também pão e carne à noite; e
bebia do ribeiro.
“E sucedeu que,
passados dias, o ribeiro se secou, porque não tinha havido chuva na terra.
“Mais uma vez o Senhor
lhe falou (a Elias):
“Levanta-te e vai a
Sarepta, que é de Sidom, e estava uma viúva apanhando lenha. Elias a chamou,
pedindo-lhe um pouco de água para beber e ele pediu-lhe também um bocado de
pão. E a viúva, prontamente lhe disse: Vive o Senhor, teu Deus, que nem um bolo
tenho, senão somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite
numa botija.
“Elias lhe disse: Não
temas, vai e faze conforme a tua palavra; porém faze disso primeiro para mim um
bolo pequeno, depois, farás para ti e para teu filho.
“Porque assim diz o
Senhor, Deus de Israel: A farinha da panela não se acabará, e o azeite da
botija não faltará até ao dia em que o Senhor dê chuva sobre a terra.
“Da panela a farinha se
não acabou, e da botija o azeite não faltou, conforme a palavra do Senhor, que
falara pelo ministério de Elias.”
(Trechos citados do
Primeiro Livros dos Reis, Bíblia Sagrada)
Seja como for, aí
reside um dos principais núcleos de resistência do poema, por si só capaz de
torná-lo atraente no mais refinado leitor moderno de poesia.
De agora em diante, o
milagre continuou, basta para que isto aconteça que “Se escute a voz que diz: / ‘Levanta-te! Come!’...” e não faltará
mais... “pão cozido / E cantil d’água / E
combustível para mais quarenta dias / E quarenta noites / De jornada...”
Mas é no contexto de “Tremor de terra” que o poema adquire
plenitude de significação.
Por fim, cumpre sublinhar
a presença de “Chamas” ... “o sacrifício de Elias / Um fogo do céu”, quando o
poeta confessa a inquietação que o agita, centrado no sentido amoroso: “E pela vida do Senhor / Por quem
me consumo de zelo / Sejam outra vez degolados / Os quatrocentos e
cinquenta / Profetas de Baal!”, no desenlace do poema, quando se dá a
intervenção providencial do anjo:
“O
poeta foi ao cume da montanha. / Pôs a cabeça entre os joelhos / E orou.”
“Tudo
estava consumado”. (grifos
nossos)
CONTINUA...
sexta-feira, 2 de outubro de 2020
Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 8)
Dando continuidade à
análise, tentaremos perseguir o caminho trilhado desde o início, a fim de
desvendar o mistério para a compreensão da significação do poema.
O poeta está fazendo
uma pergunta geral sobre todo o poema que encantou seu mundo de homem-jovem,
expressões que soam estranhas ao ouvido civilizado, mas que revelariam a
essência desse habitante sem raízes que busca no vazio os comprovantes de sua
essência poética:
“Mas
como pode caber
Num
homem tão pequeno
Tanta
poesia
Tanto
sonho e desejo?”
Esses versos mágicos
invocados pelo adulto de hoje, no caso o poeta, revelam um toque de
singularidade no tratamento da temática ubi sunt, uma vez que o poeta
não indaga diretamente pelos seus antepassados, mas procura no tempo a imagem
perdida de si mesmo. – p. 73 - Análise da Obra - Carlos Drumond de
Andrade – Affonso Romano de Sant’Anna.
Finalmente num ímpeto da
alma, ele assim se expressa:
“(Sonho)
Shangri-La
É coração de amigo...”
Nesse poeta, a
reconquista do “paraíso perdido” (“Shangri-La”) obedece a um impulso para
alargar a sua vida, compensando o que as preocupações circunstanciais lhe tomam
cada dia.
Essa volta do passado é
um movimento interno da consciência por abranger todas as direções do tempo
a fim de se conhecer a si mesmo.
O sonho vai justificar
toda a atmosfera do poema, bem como a sua linguagem.
O poeta está empenhado
numa guerra, dentro de si mesmo, para descobrir a sua essência, que toma a
forma de uma preocupação imprevisível, a fim de descobrir o sentido, em sua
mente, das imagens (a sua estrutura profunda).
“Ó
beatitude
Maravilhosa
descoberta:
Todos
os músicos
São
deuses disfarçados!”
O comportamento do
poeta se traduz, neste momento, pelo princípio da IMPREVISIBILIDADE,
ORIGINALIDADE E CRIATIVIDADE. Pois o poeta, surpreendentemente, conseguiu
sentidos novos em relações novas entre as palavras, palavras por sinal bem conhecidas
de todos nós. Mas uma nova construção, uma nova maneira de dizer, produziu novo
sentido, daí o seu caráter de IMPREVISIBILIDADE que ninguém poderia esperar.
CRIATIVIDADE E
ORIGINALIDADE
O poeta soube construir
frases e ideias diferentes, incomuns à maneira de dizer e falar, como por
exemplo:
“Um
canto / Quase inaudível / Veio da ave / Sem nome / Que viu na flor / O mel / Do
seu delírio / Um lírio? / Não tinha nome. / E a beijou? / Qual beija-flor. / Pois
era a cor e / A própria flor / O mel / Do seu delírio. // Voou...”
É nítida a presença do enjabement. O enjabement é, portanto um recurso voluntariamente empregado pelo
poeta a fim de criar uma unidade melódico-emotivo-semântica mais extensa que as
anteriores. – p.185 - A Criação Literária de Massaud Moisés. Veja: “... da ave / Sem nome........ Do seu delírio........
a cor e / A própria flor........ mel / Do seu delírio.”
Isso demonstra um
determinado PROCESSO POÉTICO, A PRÓPRIA POESIA.
Finalmente um momento
ímpar dentro do poema: compreender o mistério que é o da “Serpente Emplumada”
que dá título ao poema.
É um mito asteca: “A Serpente Emplumada”. Os astecas acreditavam que viviam sob o sol de “Quetzalcoatl”, o deus serpente emplumada, deus da criação, da aprendizagem e do vento. O sol se move levado por sua respiração. Quando os guerreiros morrem, suas almas se transformam em raras aves emplumadas e voam para o sol. Quetzalcoatl era o rei da cidade dos deuses. Era totalmente puro, inocente e bom. Muito mais outros fenômenos ele provocava, como fazer chover, por exemplo.
Agora, veja só que
beleza de descrição no poema sobre a serpente emplumada!
“Ondula!
Ondula
Serpente
De
cauda prateada
De
plumas
Enfeitada
Cabeça
Adornada
Como
velhos índios chefes
Banidos
do meu país de nus!”
A colocação das
palavras é tão perfeita que é como se a nossa percepção sensorial visualizasse
o serpear (o andar sinuosamente) da serpente.
Todavia esta é uma
explicação muito superficial do que significa realmente a “Serpente Emplumada”.
Vale a pena lembrar o
que afirma A. Moles (1971) sobre a percepção estética:
“A percepção estética é
o resultado de uma “integração cerebral” que visa obter a unicidade,
procurando um traço de relação na complexidade dos elementos
constituintes. O material dessa percepção (visual ou sonora) é constituído por átomos
de sensação fornecida pela excitação sensorial dos órgãos
envolvidos. Quanto à percepção propriamente dita, ela se identifica com o
reconhecimento de macro signos, conjuntos reconhecidos como totalidades
operantes. A tomada de consciência dos dois canais da percepção do poético,
oral e visual, leva assim a acentuar seu aspecto unitário. (grifos nossos).
A teoria da estética informacional
(A. Moles, 1958), visa também a apreciar e talvez medir (ver os trabalhos de C.
E. Shannon) a ressonância de uma mensagem artística sobre o receptor.
Supomos que o codificador e o descodificador possuíssem os mesmos repertórios
compostos de elementos conhecidos ou facilmente reconhecíveis (regras de
sintaxe, dicionários, sons da língua). Nessa situação, a todos o
artista procura criar uma mensagem composta de tal maneira que traga, àquele
que o receba, certa quantidade de novidade, quantidade que não deve ir além de
determinado limite, a fim de que o receptor possa projetar formas sobre aquilo
que lhe é transmitido.
Nada mais velado (novidade)
do que trabalhar, pelo menos para mim, com o título exótico como o da “Serpente
Emplumada”.
A inquietação inerente a
este estudo volta-se, fundamentalmente, ao desvelamento sistemático do ato de
ler. Verifica-se que esta tarefa exige do inquiridor um trajeto de investigação
que não fuja às características estritamente humanas da leitura. A busca de uma
síntese a partir de diferentes perspectivas ou pontos de vista, discutindo e
“entrelaçando” conceitos iluminados por discursos diversos é que vai garantir a
incisividade e profundidade pretendidas nesta reflexão.
É a teoria da estética
informacional – “a ressonância” – (reforço das vibrações e, portanto, do som),
se confirmando.
Todo o texto enquanto
tal apresenta uma forma ou estrutura e possui, necessariamente, uma essência.
Ao se situar diante de um fenômeno (o texto), na busca de compreender sua
estrutura e essência, o inquiridor coloca entre parênteses sua experiência
anterior e, guiado por sua consciência, designa, nomeia e dinamiza esse
fenômeno no sentido de fazê-lo ganhar maior significação. A palavra não é mais
“ruído e signo sem fundo”. (Barthes, 1953): ela se insere num espaço; e esse
espaço que é comunicado ao mesmo tempo que a palavra, resulta numa geometria
indissociável da sintaxe. (grifo nosso).
A função poética
valoriza os elementos funcionais segundo sua natureza própria. Não apenas
confere “um sentido mais puro às palavras” [N.T.: Mallarmé], mas produz
sentido. O funcionamento sintático não desempenha, necessariamente, um papel
mais importante que os outros; pode até mesmo ser totalmente encoberto por sistemas
recorrenciais, mais poderosos, no plano sonoro ou semântico. – p.106 - Linguística
e Poética - Daniel Delas e Jacques, Filliolet.
Todavia quem se
propuser estabelecer esquemas de funcionamento, por analogia com o
funcionamento poético real, necessariamente conferirá ao funcionamento sintático
um lugar primordial pois este organiza o surgimento do material verbal. (grifo
nosso).
Aqui se observa mais
nitidamente a importância do contexto, ou seja, do elemento sintático. A
palavra isolada é desprovida, por vezes, de significação, justamente porque,
podendo aplicar-se a vários objetos diferentes, impede o estabelecimento da
intencionalidade. Suponhamos o vocábulo “floresta”. Apenas pelo contexto se
define o objeto intencional como fator de fundamental importância na
caracterização da linguagem poética, pois, no caso de figurar num conjunto
frasal: “floresta das almas”, maiores possibilidades oferecerá à experiência
estética.
A expressão “floresta
das almas”, por exemplo, apenas pelo contexto se define o objeto intencional
como um ato militar. Na história lendária da serpente emplumada, quando os
guerreiros morrem, suas almas se transformam em raras aves emplumadas e voam
para o sol. O sol se move levado por sua respiração. Muito mais pode ser lido
sobre a serpente emplumada via Internet, de onde retiramos algumas dessas informações.
CONTINUA...
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 7)
Muito comum é a
reduplicação de uma ideia, quer em palavras repetidas com ligeira modificação,
quer por meio de sinônimos. Já vimos que essa técnica provém, muitas vezes, de
um tratamento lúdico da linguagem, pelo ritmo que dessa maneira se obtém. Mas é
inegável que se trata também de artifício expressivo, principalmente quando a
segunda palavra não tem parentesco morfológico com a primeira. Vejamos os
exemplos:
“A
consciência do meu povo (...) / A alma da minha gente (...) / O
calor e o saber profundo / De todas as coisas. / (...) Do povo (...)
/ Do barro que se pisa” etc.
Além desses recursos
rítmicos, conta também o poeta com a disposição das palavras em movimentos
ordenados, às vezes até regulares demais. Note-se os versos:
“Dói
o poema
Feito
de calmaria e lucidez profunda...
A
capacidade de tocar alguém
Não
está só em quem toca
Mas
ainda no poder daquele que é tocado.”
(grifos nossos).
Aqui merece uma
reflexão: a quem “dói o poema”?
1) A quem toca? Ao poeta?
2) A quem é tocado? Ao leitor?
1) Ao poeta que engendrou o poema, com sua linguagem criativa, dinâmica; que informou o poema com palavras e expressões inusitadas; com seu conhecimento linguístico, filosófico, teológico, histórico, político, psicológico e/ou
2) Ao leitor que, na maioria das vezes, tem que se embrenhar mato a dentro para decifrar o enigma de sua poesia, o mistério que envolve suas imagens e metáforas. Que também precisa de um conhecimento para conseguir fazer sua leitura.
Que mistério!... Que poesia!...
Nossa linguagem
(falada, escrita, compreendida, lida) repousa sobre uma sintaxe cronológica,
uma crono-sintaxe (Edeline, 1972), em que o tempo é o eixo onde as
instruções se inscrevem – Retórica da Poesia – Grupo U: Jacques Dubois e
outros – p.120.
Num processo
retroativo, vejamos:
A fala do poeta que faz
questão de ignorar as limitações impostas pelas regras é de uma riqueza
extraordinária. Sua imaginação é uma máquina incessante, que dá a todas as coisas
uma representação plástica.
Para apreciarmos a
plasticidade do pensamento do poeta Fabiano, consideremos estas passagens:
“A
cada passo / Nasce a esplêndida / Flor / (não veem?) / Que está na água / Branca
e solitária: / A vitória-régia / A iaupê-jaçanã / A que no rio / Soberana reina
/ (Ó verde imenso!) / E de tão bela / De tão bela / Faz meu coração tremer.”
Impressionante é a
descrição d’ “A vitória-régia / A iaupê-jaçanã”. O autor economiza ao máximo as
palavras, construindo períodos em que as expressões nominais são uma sucessão
de quadros:
A vitória-régia (Ó,
verde imenso!)
A iaupê-jaçanã E de
tão bela
A que no rio De
tão bela
Soberana reina Faz
meu coração tremer
(1º quadro) (2º quadro)
Essa plasticidade do
pensamento é que confere ao poema uma feição cinematográfica, em que os cortes
superpõem violentamente cenas diversas umas das outras.
[Fenomenologia da
Obra Literária – p. 228.]
Ao analisarmos um conto
a nossa primeira preocupação é encontrar a ordem das ações (unidade de
sentido).
Na poesia lírica,
porém, ao invés de ações, encontramos palavras. Palavras que se juntam, que se
opõem, que se identificam.
Para se ler um poema é
preciso levar em consideração que as interpretações são muitas e diferentes,
mas o importante é sabermos justificá-las de uma maneira coerente a partir do
discurso da obra. Como a poesia está caracterizada, entre outras coisas, por
uma certa ordenação léxica, é primordial que jamais partamos para a
interpretação sem estarmos atentos ao que o texto diz e ao seu modo de dizer.
A partir disso,
resta-nos compreender como o texto se organiza, se estrutura numa maneira, numa
forma específica, pois a obra é um signo ou sinal que tem uma face aparente e
outra oculta. Não é olhando para o signo, mas para onde ele aponta, que
encontraremos a sua significação. Precisamos ver a obra como um signo,
onde a sua forma vai levar a sua significação.
CONTINUA...