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quinta-feira, 30 de junho de 2011
CASA DE ELIZABETH BISHOP
Fotografias de Antonio Fabiano
Casa em que viveu Elizabeth Bishop nas décadas de 60 e 70 em Ouro Preto, Brasil. A casa pertence a uma figura especialíssima, a Sra. Linda Nemer, amiga e herdeira de Elizabeth Bishop, que tem preservado cuidadosamente não só esse patrimônio, mas a própria memória da escritora e poeta norte-americana.
"One art" – Elizabeth Bishop
The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Elizabeth Bishop
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
Elizabeth Bishop
Elizabeth Bishop: "One art" / "Uma certa arte" (tradução de Nelson Ascher)
A arte da perda é fácil de estudar:
a perda, a tantas coisas, é latente
que perdê-las nem chega a ser azar.
Perde algo a cada dia. Deixa estar:
percam-se a chave, o tempo inutilmente.
A arte da perda é fácil de abarcar.
Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
destino que talvez tinhas em mente
para a viagem. Nem isto é mesmo azar.
Perdi o relógio de mamãe. E um lar
dos três que tive, o (quase) mais recente.
A arte da perda é fácil de apurar.
Duas cidades lindas. Mais: um par
de rios, uns reinos meus, um continente.
Perdi-os, mas não foi um grande azar.
Mesmo perder-te (a voz jocosa, um ar
que eu amo), isso tampouco me desmente.
A arte da perda é fácil, apesar
de parecer (Anota!) um grande azar.
BISHOP, Elizabeth. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
a perda, a tantas coisas, é latente
que perdê-las nem chega a ser azar.
Perde algo a cada dia. Deixa estar:
percam-se a chave, o tempo inutilmente.
A arte da perda é fácil de abarcar.
Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
destino que talvez tinhas em mente
para a viagem. Nem isto é mesmo azar.
Perdi o relógio de mamãe. E um lar
dos três que tive, o (quase) mais recente.
A arte da perda é fácil de apurar.
Duas cidades lindas. Mais: um par
de rios, uns reinos meus, um continente.
Perdi-os, mas não foi um grande azar.
Mesmo perder-te (a voz jocosa, um ar
que eu amo), isso tampouco me desmente.
A arte da perda é fácil, apesar
de parecer (Anota!) um grande azar.
BISHOP, Elizabeth. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
segunda-feira, 27 de junho de 2011
CONFISSÕES DE ANTO (II)
Por um só verso de Homero a estupidez humana se torna perdoável, os homens se dignificam e Deus não se arrepende outra vez de nos ter fatalmente criado!...
Há algum tempo fiz uma grande descoberta: escrever não é luxo, não é vaidade (embora às vezes sirva para isso, visto que alguns gênios desta área ocupam-se em nada mais fazer que narcisicamente porfiar suas próprias glórias, o que também é nada), não é capricho, não é sequer um privilégio. Escrever é uma maldição... ou Bênção, das grandes, se quiser entender por aí! Dá no mesmo! Tem seu preço altíssimo!... Custa a vida! Vale a pena e eu quero!!
Escrever sempre foi difícil para mim. Uma luta, deveras, com a palavra e o seu sentido mais profundo. Mas eu não maldigo esta sorte! Mil vidas daria, para tê-la de novo e de novo... sempre! Não obstante toda a imperfeição que me é imputada. E quando há fracasso, que ao menos nunca seja por falta da mais reta intenção no agir.
É meu dever moral dar o melhor de minhas condições artísticas, se eu me faço publicar. Assim como se eu fosse um jornalista, em primeiro lugar faria luzir meu límpido compromisso ético com a verdade dos fatos.
Quem escreve por vocação, escreve para alguém real, ainda que seja para si mesmo. E a isso se atrela o terrível desejo de ser lido, não por cobiça ou fatuidade, mas pela necessidade de acabar a obra começada, de completar-se. Ora, não me refiro a caducas sublimações freudianas!... Mas em respeito a cada um destes que virão a mim, eu me mato até que surja o “excelente” (im)possível!... Estou sempre morto ao final, para que o mais importante subsista, viva!
Sim, eu dou voz ao que sinto e ao que não sinto. Eu falo pelos que não podem falar, pelos que não sabem falar nestas línguas, mas que as sentem ou as entendem muito bem com o coração. Eu penso naquelas pessoas que lerão meus versos e dirão: isso é meu, foi feito pra mim, é exatamente o que eu sinto.
Sabe aquele nunca poder dizer o que se quer, a delícia dessa burrice de insistir em continuar tentando exprimir o que desde o começo você sabe que não vai conseguir? A palavra, ainda que fechada, sempre vence! Ela nos humilha, a obra se impõe... faz seu próprio rumo! Somos inúteis, felizmente inúteis! Depois de pronta, nenhuma boa obra precisa de nós. Falam por elas mesmas e dizem até o que nunca diríamos, se nos fosse dado escolher... Não era bem isso que eu queria escrever, mas fica assim.
Ah, achei, achei! O dito de Manoel de Barros é este: “Ninguém é pai de um poema sem morrer.” Fim
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 27 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
Há algum tempo fiz uma grande descoberta: escrever não é luxo, não é vaidade (embora às vezes sirva para isso, visto que alguns gênios desta área ocupam-se em nada mais fazer que narcisicamente porfiar suas próprias glórias, o que também é nada), não é capricho, não é sequer um privilégio. Escrever é uma maldição... ou Bênção, das grandes, se quiser entender por aí! Dá no mesmo! Tem seu preço altíssimo!... Custa a vida! Vale a pena e eu quero!!
Escrever sempre foi difícil para mim. Uma luta, deveras, com a palavra e o seu sentido mais profundo. Mas eu não maldigo esta sorte! Mil vidas daria, para tê-la de novo e de novo... sempre! Não obstante toda a imperfeição que me é imputada. E quando há fracasso, que ao menos nunca seja por falta da mais reta intenção no agir.
É meu dever moral dar o melhor de minhas condições artísticas, se eu me faço publicar. Assim como se eu fosse um jornalista, em primeiro lugar faria luzir meu límpido compromisso ético com a verdade dos fatos.
Quem escreve por vocação, escreve para alguém real, ainda que seja para si mesmo. E a isso se atrela o terrível desejo de ser lido, não por cobiça ou fatuidade, mas pela necessidade de acabar a obra começada, de completar-se. Ora, não me refiro a caducas sublimações freudianas!... Mas em respeito a cada um destes que virão a mim, eu me mato até que surja o “excelente” (im)possível!... Estou sempre morto ao final, para que o mais importante subsista, viva!
Sim, eu dou voz ao que sinto e ao que não sinto. Eu falo pelos que não podem falar, pelos que não sabem falar nestas línguas, mas que as sentem ou as entendem muito bem com o coração. Eu penso naquelas pessoas que lerão meus versos e dirão: isso é meu, foi feito pra mim, é exatamente o que eu sinto.
Sabe aquele nunca poder dizer o que se quer, a delícia dessa burrice de insistir em continuar tentando exprimir o que desde o começo você sabe que não vai conseguir? A palavra, ainda que fechada, sempre vence! Ela nos humilha, a obra se impõe... faz seu próprio rumo! Somos inúteis, felizmente inúteis! Depois de pronta, nenhuma boa obra precisa de nós. Falam por elas mesmas e dizem até o que nunca diríamos, se nos fosse dado escolher... Não era bem isso que eu queria escrever, mas fica assim.
Ah, achei, achei! O dito de Manoel de Barros é este: “Ninguém é pai de um poema sem morrer.” Fim
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 27 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
quinta-feira, 23 de junho de 2011
NOITE DE S. JOÃO - poema de Fernando Pessoa
Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.
12-4-1919
Fernando Pessoa
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.
12-4-1919
Fernando Pessoa
segunda-feira, 20 de junho de 2011
CONFISSÕES DE ANTO (I)
De uns tempos pra cá vislumbrei o poder infinito de uma obra que quer nascer e seu pai, parturiente, não pode ou se recusa a abrir as pernas para que isso aconteça. Mas o que digo? São também por coisas assim, extravagantes, que a literatura nossa de cada dia se faz e às vezes dá sinal no cotidiano. Aqui, parece, evoco quase sem querer o velho Sócrates, com a sua duvidosa – dadivosa? – maiêutica.
Eu não tenho a pretensão realmente inútil e pouco humilde de ser entendido por todos. Às vezes só um poeta entende outro (alguns não se entendem nunca!), e talvez aqui resida o pior limite dos que por esse nome são chamados ou se fazem chamar. Não é da natureza da poesia fazer-se entender vulgarmente. E não sei se todos estão aptos a gostar de poemas, se todos nasceram para essa coisa maravilhosa. Só penso que muitos não a amam, porque não foram educados para isso. Também aprende-se a amar o que quer que seja digno de amor. Amar é aprendizado. E poesia existe para ser sentida, profundamente, por todos que a queiram sentir. Ninguém é menos digno de recebê-la.
Eu sou partidário daquilo que disse Bandeira: não há poetas perfeitos, há poemas perfeitos. Quando esbarramos num, é difícil não perceber! Eles têm função epifânica na vida da gente, desinstalam-nos, revolvem-nos...
Do que eu dizia, uma vez dada ao mundo a suposta obra... ah, uma vez dada, ela deixa de ser nossa! Se é que alguma vez foi nossa!... Alguns poemas – porque estamos falando particularmente de poesia – alguns dos que escrevi são tão apreciáveis a meu rude paladar, que não posso deixar de louvar muito qualquer coisa suprema que mos tenha dado! Quando leio o que escrevi, depois de feita a parte que me é cabível, eu não reconheço aquilo como obra minha (ao menos no sentido mais exacerbadamente possessivo do pronome), ainda que me reconheça ali ou ligado àquilo por vínculo autoral. Se a obra já está “pronta”, se ela não precisa de mim pra mais nada, proclama-se ela mesma “livre”. E ao escrever isso penso particularmente num verso de Manoel de Barros que diz que... Bem, revirei sua Poesia Completa, não achei o que eu sei que está lá, escondido; quando o achar, se eu me lembrar, cito-o. Perdoem-me.
Mas, do que intentei dizer, se a obra é imperfeita, faço guerra até que a poesia desça ao poema ou o poema se torne menos indigno da poesia ou haja poesia a encorpar os ossos secos sobre os quais devo poetizar!...
A verdade é que muitas vezes sobra apenas um enorme sentimento de insatisfação, de um “aquém terrível aquém”, de um fracasso meu perante a pretendida lavra. Um escritor de verdade deve ter princípios. E escritores, profissionais ou não, sofrem terríveis derrotas. Eu nunca desisto, enquanto sobra força e ocasião. Por isso refundo mil vezes a mesma coisa, para que se torne outra coisa, melhor, mais digna de quem vai recebê-la e dignificá-la. E embora não me faça refém de interlocutores, há sempre o fantasma do possível leitor... Tenho leitores? O que é um leitor?
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 20 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
Eu não tenho a pretensão realmente inútil e pouco humilde de ser entendido por todos. Às vezes só um poeta entende outro (alguns não se entendem nunca!), e talvez aqui resida o pior limite dos que por esse nome são chamados ou se fazem chamar. Não é da natureza da poesia fazer-se entender vulgarmente. E não sei se todos estão aptos a gostar de poemas, se todos nasceram para essa coisa maravilhosa. Só penso que muitos não a amam, porque não foram educados para isso. Também aprende-se a amar o que quer que seja digno de amor. Amar é aprendizado. E poesia existe para ser sentida, profundamente, por todos que a queiram sentir. Ninguém é menos digno de recebê-la.
Eu sou partidário daquilo que disse Bandeira: não há poetas perfeitos, há poemas perfeitos. Quando esbarramos num, é difícil não perceber! Eles têm função epifânica na vida da gente, desinstalam-nos, revolvem-nos...
Do que eu dizia, uma vez dada ao mundo a suposta obra... ah, uma vez dada, ela deixa de ser nossa! Se é que alguma vez foi nossa!... Alguns poemas – porque estamos falando particularmente de poesia – alguns dos que escrevi são tão apreciáveis a meu rude paladar, que não posso deixar de louvar muito qualquer coisa suprema que mos tenha dado! Quando leio o que escrevi, depois de feita a parte que me é cabível, eu não reconheço aquilo como obra minha (ao menos no sentido mais exacerbadamente possessivo do pronome), ainda que me reconheça ali ou ligado àquilo por vínculo autoral. Se a obra já está “pronta”, se ela não precisa de mim pra mais nada, proclama-se ela mesma “livre”. E ao escrever isso penso particularmente num verso de Manoel de Barros que diz que... Bem, revirei sua Poesia Completa, não achei o que eu sei que está lá, escondido; quando o achar, se eu me lembrar, cito-o. Perdoem-me.
Mas, do que intentei dizer, se a obra é imperfeita, faço guerra até que a poesia desça ao poema ou o poema se torne menos indigno da poesia ou haja poesia a encorpar os ossos secos sobre os quais devo poetizar!...
A verdade é que muitas vezes sobra apenas um enorme sentimento de insatisfação, de um “aquém terrível aquém”, de um fracasso meu perante a pretendida lavra. Um escritor de verdade deve ter princípios. E escritores, profissionais ou não, sofrem terríveis derrotas. Eu nunca desisto, enquanto sobra força e ocasião. Por isso refundo mil vezes a mesma coisa, para que se torne outra coisa, melhor, mais digna de quem vai recebê-la e dignificá-la. E embora não me faça refém de interlocutores, há sempre o fantasma do possível leitor... Tenho leitores? O que é um leitor?
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 20 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
domingo, 19 de junho de 2011
FLORBELA ESPANCA
sábado, 18 de junho de 2011
O TEU OLHAR
[HÁ NOS TEUS OLHOS DE DOMINADOR] – Florbela Espanca
Há nos teus olhos de dominador,
No teu perfil altivo de romano,
No teu riso de graça e de esplendor
Um misterioso ideal divino e humano.
Cruz de Cristo sangrando sobre o pano
Das velas altas, lá vai, sobre o fragor
Dum mar sereno, cristalino e plano,
A tua barca de conquistador!
Eu quero ir contigo a esses distantes
Reinos! Deixa-me erguer as brancas velas,
Ser um dos teus audazes navegantes!
Meus olhos cegos são dois poços fundos...
– Conta-me o céu! Ensina-me as estrelas!
Mostra-me a estrada dos teus Novos Mundos!
Outubro de 1930
Florbela Espanca
Esparsa Seleta (1917-1930)
No teu perfil altivo de romano,
No teu riso de graça e de esplendor
Um misterioso ideal divino e humano.
Cruz de Cristo sangrando sobre o pano
Das velas altas, lá vai, sobre o fragor
Dum mar sereno, cristalino e plano,
A tua barca de conquistador!
Eu quero ir contigo a esses distantes
Reinos! Deixa-me erguer as brancas velas,
Ser um dos teus audazes navegantes!
Meus olhos cegos são dois poços fundos...
– Conta-me o céu! Ensina-me as estrelas!
Mostra-me a estrada dos teus Novos Mundos!
Outubro de 1930
Florbela Espanca
Esparsa Seleta (1917-1930)
À JANELA DE GARCIA DE REZENDE – Florbela Espanca
Janela antiga sobre a rua plana...
Ilumina-a o luar com seu clarão...
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão...
Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez... Quem sabe?... Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão...
Mística dona, em outras primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado...
Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!...
Florbela Espanca
Reliquiae (1931, póstuma)
Ilumina-a o luar com seu clarão...
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão...
Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez... Quem sabe?... Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão...
Mística dona, em outras primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado...
Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!...
Florbela Espanca
Reliquiae (1931, póstuma)
PRIMAVERA – Florbela Espanca
É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!
Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...
Florbela Espanca
Reliquiae (1931, póstuma)
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!
Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...
Florbela Espanca
Reliquiae (1931, póstuma)
LOUCURA – Florbela Espanca
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura de esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da mim!
Florbela Espanca
Reliquiae (1931, póstuma)
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura de esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da mim!
Florbela Espanca
Reliquiae (1931, póstuma)
sexta-feira, 17 de junho de 2011
“He hum não querer mais que bem querer...” CAMÕES
EU – Florbela Espanca
Até agora eu não me conhecia,
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... E não me via!
Andava a procurar-me – pobre louca! –
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... E não me via!
Andava a procurar-me – pobre louca! –
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
NOITINHA – Florbela Espanca
A noite sobre nós se debruçou...
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou...
Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora,
A noite, os olhos brandos, lhes fechou...
Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...
Tranquilidade... calma... anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou...
Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora,
A noite, os olhos brandos, lhes fechou...
Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...
Tranquilidade... calma... anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
SER POETA – Florbela Espanca
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
AMAR! – Florbela Espanca
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca
Charneca em Flor (1931, póstuma)
quinta-feira, 16 de junho de 2011
A FLOR DO SONHO...
SOMBRA
PRINCE CHARMANT...
FANATISMO – Florbela Espanca
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa ...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”
Florbela Espanca
Livro de “Sóror Saudade” (1923)
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa ...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”
Florbela Espanca
Livro de “Sóror Saudade” (1923)
FUMO – Florbela Espanca
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!
Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
Florbela Espanca
Livro de “Sóror Saudade” (1923)
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!
Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
Florbela Espanca
Livro de “Sóror Saudade” (1923)
NOTURNO – Florbela Espanca
Amor! Anda o luar, todo bondade,
Beijando a terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!
E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!
Minh’alma, que eu te dei, cheia de mágoas,
É nesta noite o nenufar dum lago
Estendendo as asas brancas sobre as águas!
Poisa as mãos nos meus olhos, com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...
Florbela Espanca
Livro de “Sóror Saudade” (1923)
Beijando a terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que andam pisando as ruas da cidade!
E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traçaste em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!
Minh’alma, que eu te dei, cheia de mágoas,
É nesta noite o nenufar dum lago
Estendendo as asas brancas sobre as águas!
Poisa as mãos nos meus olhos, com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...
Florbela Espanca
Livro de “Sóror Saudade” (1923)
INCIDÊNCIA
quarta-feira, 15 de junho de 2011
VAIDADE – Florbela Espanca
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
////////////////////E não sou nada!
Florbela Espanca
Livro de Mágoas (1919)
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
////////////////////E não sou nada!
Florbela Espanca
Livro de Mágoas (1919)
LÁGRIMAS OCULTAS – Florbela Espanca
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era qu’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca
Livro de Mágoas (1919)
Em que ri e cantei, em que era qu’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca
Livro de Mágoas (1919)
terça-feira, 14 de junho de 2011
NOIVADO ESTRANHO – Florbela Espanca
O Luar branco, um riso de Jesus,
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz...
O Luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada...
O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co’a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d’amor o pobre monge...
O Luar empalidece de cansado...
E a Noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!...
30/4/1917
Florbela Espanca
Trocando Olhares (1915-1917)
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz...
O Luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada...
O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co’a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d’amor o pobre monge...
O Luar empalidece de cansado...
E a Noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!...
30/4/1917
Florbela Espanca
Trocando Olhares (1915-1917)
segunda-feira, 13 de junho de 2011
ANIVERSÁRIO – Fernando Pessoa
NO TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme
/através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
/dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
/com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra
/debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
15-10-1929
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme
/através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
/dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
/com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra
/debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
15-10-1929
NOVIDADE NO MUSEU
Estive recentemente no Rio de Janeiro. E como nem só de Copacabana e Ipanema vive um homem, aproveitei para ir também à Quinta da Boa Vista, ao Museu Nacional do Brasil, instalado no velho palácio em estilo neoclássico da família imperial brasileira. Vai ao lugar certo quem quer encontrar, não propriamente vestígios da realeza, mas coisas ligadas a Arqueologia, Paleontologia, Antropologia Social etc. São ricos os acervos que testemunham o caprichoso e até exótico gosto do Imperador, inclusive no seu conhecido desejo de estimular o avanço do conhecimento científico no Brasil.
Múmias me mordam, pois o que vi de mais interessante no museu não foi nenhuma de suas raras e até milenares antiguidades!...
A minha passagem por lá coincidiu com um fim-de-semana em que certo programa de popularização da cultura abria, gratuitamente, as portas do museu. Assim, como é de se esperar, pessoas que nunca frequentam esse tipo de diversão podem de repente se sentir motivadas a tanto. Parece que foi mesmo o que aconteceu!...
Ao chegar, deparei-me com uma figura bem interessante... Era uma velhinha, que entrou um pouco à nossa frente, carregada de sacolas e espanto. Visivelmente pobre, parecia estar alarmada com a estranhíssima beleza do lugar. A partir de então eu só tinha olhos para ver esta simpática criatura, que voltara a ser criança diante das enormes réplicas de dinossauros e mais coisas de outros tempos e mundos que ela nunca vira ou sonhara. Sobressaltou-se ao descobrir que aqueles panelões de argila eram, na verdade, urnas funerárias de índios ancestrais. Olhava as múmias egípcias como se elas fossem se levantar a qualquer instante e precisássemos sair correndo dali...
Sala após sala eu a acompanhava, de longe, já indiferente ao acervo que se tornara secundário ante aquela figura tão linda e humana. Eu a julgaria, noutro contexto, mais velha que todas as coisas do museu. E ali não passava de uma criança de belo rosto marcado pelo tempo e inocência rediviva.
Quando findamos a visitação, encontramos na saída alguns atores que com roupas de época interpretavam personagens ligados ao palácio e à antiga realeza. Só então me aproximei da boa velhinha, para saber o que tinha achado da visita. Ela não respondeu, estava muito ocupada em fitar a Carlota Joaquina que alvoroçava as pessoas à entrada do museu, buscando seu Dom Joãzinho e completando o espetáculo cênico daquela manhã. Mas antes de sair, a velhinha confidenciou-me baixinho estas palavras: “Esta senhora aí, eu a conheço. Foi embora há muito tempo!... Ela vive agora em Portugal. Vem aqui de vez em quando. Mas sei muito bem quem ela é!...”
Partiu a senhorinha, depois disso, levando as suas sacolas e me deixando com o espanto deste feliz encontro.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 13 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
Múmias me mordam, pois o que vi de mais interessante no museu não foi nenhuma de suas raras e até milenares antiguidades!...
A minha passagem por lá coincidiu com um fim-de-semana em que certo programa de popularização da cultura abria, gratuitamente, as portas do museu. Assim, como é de se esperar, pessoas que nunca frequentam esse tipo de diversão podem de repente se sentir motivadas a tanto. Parece que foi mesmo o que aconteceu!...
Ao chegar, deparei-me com uma figura bem interessante... Era uma velhinha, que entrou um pouco à nossa frente, carregada de sacolas e espanto. Visivelmente pobre, parecia estar alarmada com a estranhíssima beleza do lugar. A partir de então eu só tinha olhos para ver esta simpática criatura, que voltara a ser criança diante das enormes réplicas de dinossauros e mais coisas de outros tempos e mundos que ela nunca vira ou sonhara. Sobressaltou-se ao descobrir que aqueles panelões de argila eram, na verdade, urnas funerárias de índios ancestrais. Olhava as múmias egípcias como se elas fossem se levantar a qualquer instante e precisássemos sair correndo dali...
Sala após sala eu a acompanhava, de longe, já indiferente ao acervo que se tornara secundário ante aquela figura tão linda e humana. Eu a julgaria, noutro contexto, mais velha que todas as coisas do museu. E ali não passava de uma criança de belo rosto marcado pelo tempo e inocência rediviva.
Quando findamos a visitação, encontramos na saída alguns atores que com roupas de época interpretavam personagens ligados ao palácio e à antiga realeza. Só então me aproximei da boa velhinha, para saber o que tinha achado da visita. Ela não respondeu, estava muito ocupada em fitar a Carlota Joaquina que alvoroçava as pessoas à entrada do museu, buscando seu Dom Joãzinho e completando o espetáculo cênico daquela manhã. Mas antes de sair, a velhinha confidenciou-me baixinho estas palavras: “Esta senhora aí, eu a conheço. Foi embora há muito tempo!... Ela vive agora em Portugal. Vem aqui de vez em quando. Mas sei muito bem quem ela é!...”
Partiu a senhorinha, depois disso, levando as suas sacolas e me deixando com o espanto deste feliz encontro.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 13 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
segunda-feira, 6 de junho de 2011
BEIJA-FLOR
A literatura, a minha literatura!... E pareceu-me de repente tão ousado pensar assim. Eu, versado em puríssimas humildades. Eu, filho da verdade, talhado em pedras de sabão de Minas, cônscio de uma missão deveras exigente. Eu, antes de tudo, comedor de camarão. Rapaz modesto e acanhado, índio se tivesse nascido na floresta e não apenas nu.
Mas por que não dizer, também, eu emissário de um rei desconhecido? Ou eu egocêntrico? Ou eu qualquer coisa esnobe? Ou eu ninguém. Talvez, com menos doçura, perder-me em armadilhas de belezas não tão óbvias!
A verdade triunfará.
Tenho a cabeça nas nuvens, mas os pés bem firmes no chão. Isso de mim faria – se eu o dissesse às gentes que nasceram lírios, príncipes, deuses – um louco e para além gigante. Mas para além gigante ninguém enxergaria. Só louco. E criaturas perfeitas me julgariam, com severas sentenças me condenariam... A mim, outra vez pecador por dizer eu.
Soberba consciência! Eu pecador! Sim, pecador! Mas é falsa esta humildade e aquela outra! Sou um pobre diabo impelido a extremos, atormentado por asas de aves raras que se negam a pousar nas mãos de qualquer um!
Nasci depois de tudo, ou antes de tudo, de uma hora em que qualquer coisa realmente grande vai acontecer. Não conheci exílios, não militei por nenhuma causa nobre, não salvei meu país, não redimi os homens da terra. A ampulheta rompeu-se antes do tempo, e este é o das poucas ou nenhumas expressões, poucas ou nenhumas ousadias. Inventei isso, como inventamos tudo? Não reivindiquei nada, não construí nada, não fui nada além do que assumi. Eu o às vezes também não lúcido, ilógico. Sujeito perdoável, até.
.....................................................................................
Passei horas tocando violino. Até que a minha mão se tornasse outra vez leve. Até que ela virasse um beija-flor em voo, suave, para oscular as notas da minha partitura original. Ninguém sabe o que é ficar tanto tempo sem seu arco. Tantos dias sem o brio das cordas. Meses de castigo, por não sei o quê. Agora tento me reconciliar com o céu que eu toco e me toca. Ah, sem essa oblação, músico e instrumento se desrealizam!...
De repente, bem de repente, a minha mão se torna o beija-flor! Voou... Voou... Tocou os impossíveis recônditos do silêncio. Meu violino agora sou eu. Sou eu. Sou eu. Ele outra vez impávido! Eu. Ressuscitando mortos, coisas muito antigas, esperanças de eternidade. Uma explosão de ondas de abraços. Porque eu sem culpa, na verdade que liberta, na beleza de dizer isto e ser eu. Eis o mistério que a vida inteira não ocultei...
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 06 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
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Para Luana Cristina
Mas por que não dizer, também, eu emissário de um rei desconhecido? Ou eu egocêntrico? Ou eu qualquer coisa esnobe? Ou eu ninguém. Talvez, com menos doçura, perder-me em armadilhas de belezas não tão óbvias!
A verdade triunfará.
Tenho a cabeça nas nuvens, mas os pés bem firmes no chão. Isso de mim faria – se eu o dissesse às gentes que nasceram lírios, príncipes, deuses – um louco e para além gigante. Mas para além gigante ninguém enxergaria. Só louco. E criaturas perfeitas me julgariam, com severas sentenças me condenariam... A mim, outra vez pecador por dizer eu.
Soberba consciência! Eu pecador! Sim, pecador! Mas é falsa esta humildade e aquela outra! Sou um pobre diabo impelido a extremos, atormentado por asas de aves raras que se negam a pousar nas mãos de qualquer um!
Nasci depois de tudo, ou antes de tudo, de uma hora em que qualquer coisa realmente grande vai acontecer. Não conheci exílios, não militei por nenhuma causa nobre, não salvei meu país, não redimi os homens da terra. A ampulheta rompeu-se antes do tempo, e este é o das poucas ou nenhumas expressões, poucas ou nenhumas ousadias. Inventei isso, como inventamos tudo? Não reivindiquei nada, não construí nada, não fui nada além do que assumi. Eu o às vezes também não lúcido, ilógico. Sujeito perdoável, até.
.....................................................................................
Passei horas tocando violino. Até que a minha mão se tornasse outra vez leve. Até que ela virasse um beija-flor em voo, suave, para oscular as notas da minha partitura original. Ninguém sabe o que é ficar tanto tempo sem seu arco. Tantos dias sem o brio das cordas. Meses de castigo, por não sei o quê. Agora tento me reconciliar com o céu que eu toco e me toca. Ah, sem essa oblação, músico e instrumento se desrealizam!...
De repente, bem de repente, a minha mão se torna o beija-flor! Voou... Voou... Tocou os impossíveis recônditos do silêncio. Meu violino agora sou eu. Sou eu. Sou eu. Ele outra vez impávido! Eu. Ressuscitando mortos, coisas muito antigas, esperanças de eternidade. Uma explosão de ondas de abraços. Porque eu sem culpa, na verdade que liberta, na beleza de dizer isto e ser eu. Eis o mistério que a vida inteira não ocultei...
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 06 de junho de 2011.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
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Para Luana Cristina
quinta-feira, 2 de junho de 2011
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