segunda-feira, 20 de setembro de 2010
ADÉLIA PRADO EM ENTREVISTA A ANTONIO FABIANO
Adélia Prado - Fotografia de Antonio Fabiano
ANTONIO FABIANO: Quando li aqueles versos do seu novo livro – “Minha mãe a minutos da morte me ordenou profética: / ‘Vai calçar um trem, / agora mesmo a casa enche de gente’” – fui tomado por um sentimento tal de urgência e ressurreição. Naquela noite me senti como uma represa que, depois de um imenso estampido, estoura e se derrama pelos mundos... Sua palavra poética tem inimaginável força. É neste espírito que começo a entrevista...
(silêncio)
Adélia, o seu legado poético é indisfarçável. Sua obra tornou-se adulta, autônoma, parece não mais precisar de nada. Explico-me... Sua voz – para além de você mesma, a poeta – já é dona de si e pode ir sozinha aos confins do mundo. É como a grande profecia do profeta, que cresce e sobrepuja o seu arauto, sendo inclusive esta a glória do arauto. O tom de Adélia já possui, a meu ver, aquela afinação inconfundível dos bons poetas, dos poetas maduros que podem tudo e já não devem nada a ninguém... Destes anos todos de poesia, como você vê seu próprio itinerário? Como você se vê diante do estarrecedor milagre dessa obra?
ADÉLIA PRADO: Toda vida ‘soube’ que a poesia é maior que o poeta. Crer nisso me descansa. A poesia é mesmo um milagre, epifania, algo terrível na sua beleza que de repente se mostra. Czeslaw Milosz falou disso e usei seus versos como epígrafe geral do livro. Como me sinto? Pequena e imensamente feliz, sou o ‘pobre de blusa nova ganhada’.
ANTONIO FABIANO: Dizem que escrever é muito perigoso. Você concorda com isso? Em sua relação com a palavra, já experimentou alguma vez o fracasso? Se sim, como o transpôs?
ADÉLIA PRADO: É muito perigo se você frauda o trabalho colocando-o a serviço de ideologias, doutrinas filosóficas ou religiosas, quando visa resultados, porque arte é “expressão pura”. Engajá-la é crime de lesa poesia. É perigoso porque conspurca sua natureza, que obedece a leis mais altas que as do seu desejo. Fracassar é não conseguir dizer. Quando acontece, para-se e espera-se que a forma se mostre de maneira perfeita. Uma vez publiquei em um livro uns três poemas, que refiz em nova edição, por causa de uma advertência crítica que acolhi. Uma pedrada no meu orgulho, mas foi ótimo também. Percebi que havia versos sobrando e a poesia não tolera excessos. Pequei por entusiasmo, mas pequei.
ANTONIO FABIANO: Alguns escritores são lidos e respeitados, o que já é muito. Você, além disso, é amada e conta com uma legião de interlocutores que gostam da sua palavra e pessoa, a mulher. O que digo não acontece apenas aqui em Minas, onde os nomes de Adélia Prado e Deus se confundem (risos), mas constato a mesma dileção, o mesmo respeito, em quase todo lugar aonde tenho ido. A que você atribui esse fascínio que exerce, mesmo sem querer, sobre tantas pessoas de boa vontade? E como lida com isso?
ADÉLIA PRADO: Bom, pessoas de boa vontade são para isso mesmo. Para amar tudo, inclusive essa senhora mineira. Espero que não por condescendência – o que não seria amor – mas por causa da poesia, ela sim, de natureza amorosa, fraterna, que a nada e a ninguém exclui, provocando em nós a alegria da comunhão humana. Lido com isso dando graças.
ANTONIO FABIANO: Seu público é eclético, vai de intelectuais de peso a pessoas sem tais pretensões e até analfabetas. Estas e aqueles captam sua poesia sem embargos, relacionam-se com ela da veneração religiosa à crítica mais mordaz. Você é lida na academia e nas cozinhas do povo, concomitância esta que é impressionante e muito rara. Qual o segredo dessa fluência, tão ambicionada pela maioria dos escritores e alcançada, mesmo dentre os melhores, por pouquíssimos?
ADÉLIA PRADO: O segredo só pode estar na poesia. Tenho certeza.
ANTONIO FABIANO: Uma pergunta inevitável... Como se dá a relação de sua obra literária com a mística cristã? Sua espiritualidade pessoal interfere na obra, ou a obra é antes geradora dessa vivência religiosa que nos testemunha?
ADÉLIA PRADO: A arte (a poesia) é religiosa na sua natureza íntima e não por causa do tema, do enredo, da casuística. Não é porque falo em Deus, em religião, ou devoções que um poema é religioso, mas por causa da forma, que não é formato, mas a própria beleza, escopo de toda arte. Experimentar a forma, a beleza é experimentar um centro de significação e sentido que alegra, consola e nos aponta para algo (acredito que Deus), a pessoa divina que nos fala através da obra, coisas como: a vida é eterna, ressurgiremos, a beleza de agora é apenas sinal, pegada da verdadeira beleza, a que nos aguarda ao final de nossa vida. A mística e as obras dos místicos são experiências poéticas e portanto religiosas. Os salmos são poesia. Um poema falando de um homem no seu cavalo ou de ondas do mar pode levar-nos a um sentimento de reverência diante do mistério e isso é religioso.
ANTONIO FABIANO: “Oráculos de Maio” (1999) pareceu-me, desde o advento de sua grande e imbatível “Bagagem” (1976), a obra mais perfeita de todo o conjunto poético. Já lhe disse isso. A crítica mais autorizada não deu, a meu ver, a devida atenção a esse acontecimento que o tempo, sem dúvida, reclamará a lhe [à obra] fazer justiça. Agora nos vem “A Duração do Dia” (2010), a confirmar o passo firme dessa trajetória. A recepção tem sido boa... Em sua opinião de leitora daquilo que escreve, já não tanto como autora ou “mãe” da obra, este livro traz surpresas ou é apenas mais do mesmo velho bom vinho?
ADÉLIA PRADO: Cada autor só tem uma coisa a dizer. É sempre o mesmo mas, a cada vez de um lugar diferente. As paixões boas e más permanecem conosco e serão expressas de maneira mais jovem, mais madura, mais experiente, segundo a vivência do autor naquele momento. Fico pensando num quadro feito por um pintor em décadas, dos dez aos oitenta anos. Será o mesmo vinho e conforme se acredita, melhor.
ANTONIO FABIANO: Uma vez você me disse que “Bagagem” é o livro primevo (eu diria, perfeito) que a sua pena tenta reescrever toda vez que trabalha numa nova obra... Ainda pensa assim? É o que pensa também em relação a “A Duração do Dia”?
ADÉLIA PRADO: Se me lembro bem, disse que todo livro quero escrevê-lo como escrevi Bagagem, numa alegria de descoberta e fundação. Todo poeta sabe disso, porque uma das qualidades da poesia é a sua incorrigível juventude. Não intentei isto com o novo livro, não é preciso, acontece necessariamente e, quando não acontece, não publico, a não ser que me equivoque.
ANTONIO FABIANO: Eu sou mendigo e você é pródiga... (risos) Que verso me daria dos seus muitos, neste momento, para que eu o partilhasse – nunca avaro – com os amigos e leitores do meu Blog?
ADÉLIA PRADO:
NO CÉU
No céu, os militantes,
os padecentes
e os triunfantes
seremos só amantes.
Este é um poema de Oráculos de Maio.
Meu caro Antonio Fabiano, respondi com muito gosto a suas perguntas, que achei muito pertinentes. Foi uma alegria e você é muito gentil. Obrigada por suas boas palavras...
ADÉLIA PRADO & ANTONIO FABIANO
Setembro de 2010
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
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Boa entrevista. Ambos em perfeita sintonia. Perguntas e respostas muito bem colocadas. Parece um poema...
ResponderExcluirIsto, sim, é "formidável parceria". Dois místicos se encontraram! Só quem os conhece sabe...
ResponderExcluirEstá mesmo muito bonita a entrevista! Tem até a inserção de um silêncio! Foi erigida como um grande poema! Parabéns! Pablo
ResponderExcluir...psiu...tem GENTE conversando!
ResponderExcluirA cada dia surpreendo-me com você... como se isso ainda me fosse possível.
ResponderExcluirQue Deus o abençoe.
Abraços potiguares, Rúbia.
Nossa!que entrevista linda, perfeita, amei!!!
ResponderExcluirSurpresa? Nunca! O grande Fabiano de sempre; não me surpreende porque sempre esperei dele, o melhor. Surpresa seria se me decepcionasse. Poema a quatro mãos. Para usar um clichê: a essência da poesia!
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