Ilha. Do quinto bloco do poema.
O
bloco Ilha do grande poema “Serpente Emplumada” opera um desdobramento do
conteúdo significativo espacial do substantivo “Noite”, encabeçando todas as
estrofes que compõem este bloco.
A
palavra “Noite” é mencionada no início da estrofe, onze vezes, sem contabilizar
as noites no interior das estrofes. É, portanto, um espaço muito significativo
para o conteúdo programático do poema.
“Noite
estrelada” – terceiro verso da primeira estrofe do bloco Ilha – é uma pintura
de Vincent Van Gogh que se tornou uma noite maior a partir do seu quadro
pintado em 1889, num asilo do sul da França. É uma obra pós-impressionista que
estimulou (impressionou) os corações que viviam nos hospícios e/ou “coração
humano”.
Todas
as outras noites são um desdobramento com suas respectivas nuances e
características.
Ora a noite é igual como a de lá, a daqui e de “Agora”, que corta a noite, parte a noite
“Em setecentas outras noites...”
Ora a
noite é como o ladrão ou amante que rouba o meu dia (do eu-poético) sem avisar;
Ora a
noite é um sentimento além de “Exílios provençais...”
Ora a
noite ultrapassa a linha do Equador e atinge até o esplendor de uma noite em Xanadu (uma noite esplendorosa, magnífica, suntuosa).
E
mais, ora a noite atinge o âmago da alma como uma noite em Tula (âmago,
íntimo, alma).
Ora a
noite é alta... alta... muito alta! É como se (de cima se pudesse ver tudo que
há no mundo até mesmo “as esperanças /
Acesas. // Ainda mais alta...”
A
repetição do nome “Noite” vinte seis vezes comprova que o discurso ao invés de
se desenvolver linearmente, retorna sempre ao mesmo ponto.
Na
perspectiva lógica, ou a repetição esclarece a mensagem ou é redundante, mas
neste caso, acrescentando uma nova informação.
O
discurso prossegue, recua e se obscurece, resultando imprevisível, original e
ambíguo.
Ao
analisarmos este fragmento, denominado “Noite” do grande poema “Serpente
Emplumada”, poríamos em relevo a preocupação com o “sentimento do mundo” que o
habita. O eu-poético descreve, com olhos de lince, o subjetivismo da cena, com
todos os seus momentos, em que, a par da liricização do seu estilo, obedece a
um ritmo complexo, que depende ao mesmo tempo de agrupamentos lógicos,
de grupos tônicos, do numerismo silábico, de vários efeitos fônicos e rítmicos.
– p 133.
Verifiquemos:
1)
Agrupamento lógico – “Cruzeiro do Sul a luzir / Gigante de braços para o amplexo abertos”.
Há no poema muitos outros agrupamentos lógicos.
2)
Grupos tônicos – “Dos pobres e mendigos / Dos moradores de rua / Das crianças pedintes /
Em todos os semáforos do mundo”.
3)
Do numerismo silábico – “Em face da violência / Em face da impunidade”. “Em face
de um céu tão grande”.
4)
Vários efeitos tônicos e rítmicos – “Da corrupção do meu país / De políticos /
De milhares / De cristão indiferentes”.
...............................
...............................
“Indiferente ou
Talvez – quem sabe –
De algum misterioso modo
A redimir o mundo
A redimir-nos da loucura
Dos hospitais e hospícios
Das favelas
Das intermináveis filas do SUS
Da miséria”...
O eu-poético pintou um
quadro, não como quadro estrelado pintado por Van Gogh. Este pontilhado de
brilho intenso como o das estrelas; aquele também pontilhado de uma realidade
de aspectos e nuances (momentos e espaços) que se des-realizaram,
transformando-se num real poético.
Se a poesia é a linguagem do sentimento, conforme o que preconiza Croce, que acolheu a postulação aristotélica e repudiava a distinção formal, poder-se-ia confirmar que este bloco é a percepção do “sentimento do mundo”, não como meramente emoção, mas percepção de emoções, impressões e sensações (sentimentos). – p. 121.
A poesia deve dar-nos a
impressão (ainda que sua impressão possa ser enganosa) de que, através de meras
palavras, nos comunica um conhecimento de índole muito especial: o conhecimento
de um conteúdo psíquico tal como é na vida real. Ou seja, de um conteúdo
psíquico que, na vida real se oferece como algo individual, como um todo
particular, síntese intuitiva, única da conceptual – sensorial – afetiva. Cf. Carlos
Bousoño, Op. cit. vol. I pp. 19-20.
O poeta comunica ao
leitor o seu conhecimento das coisas.
O que afeta a essência do poético não é, pelo visto, que haja comunicação, mas que pareça que haja, que se nos produza a ilusão de que haja. – p.122
Neste bloco, o poeta
procurou com efeito, comunicar de verdade a alguém, por meio de simples
palavras, um conteúdo anímico e imaginário, mas real, muito real; parece-me até
que estamos diante deste quadro (o mundo com todas as suas especificações) para
se evidenciar o que, na realidade acontece.
À guisa de comprovação,
vejamos:
.....................................................
“Dos
meninos e meninas
Abusados
na infância
Da
fome
Em
minha nação de ricos
Da
dor de existir pequeno
Em
face de um céu tão grande
E
surdo”
Se a ilusão de haver-se
dado comunicação entre o poeta e o leitor é persistente, o problema continua de
pé. A partir de então, verifica-se que outras perplexidades se erguem à nossa
frente.
O eu poético faz uma
pergunta:
“É carnaval?”
Não se sente uma
resposta plausível, mas por tudo que acontece e vejo neste poema, é lícito
inferir que sim. Um carnaval, sim, mas do real estético.
Porém, nas entrelinhas pressente-se muito sutilmente um significado que se pode atribuir ao termo “Carnaval”. Diante do que se esboçou anteriormente, poder-se-ia dizer, metamorfoseando-se em: isto é um carnaval!!!
São conjecturas, que não sei se verdadeiras, exatas, reais e se caberiam neste contexto.
Num autêntico jogo de
espelhos, o eu do poeta contempla-se num texto que, apesar de edificado com a
sua matéria orgânica, parece fruto de um demiurgo, cuja exclusiva missão fosse revelar
o “eu do poeta” a si próprio.
Portanto, o “eu do
poeta” se confessa por meio do “eu lírico”, cuja natureza vale à pena examinar
de perto:
“Quando
desceu a noite / Cobrindo os mundos / Para além de nossa terra e mar
antigo” (grifos nossos)
Ainda mais
verossímil, pode-se constatar:
(“A noite mais linda
É a que se pode ver
Em plenilúnios
Da lagoa da Pampulha).”
A obra da recriação (o poema) estaria para a obra da criação (o mundo) assim como o poeta estaria para o demiurgo (poeta) ou o criador do Universo (Deus). – p. 106 A Criação Literária – Poesia de Massaud Moisés.
Quando lemos “Serpente
Emplumada” pela primeira vez, confrontamo-nos com um acúmulo de imagens e
precisamos lê-lo, muitas vezes, a fim de encontrarmos elementos que, pela sua
constância, possam nos indicar uma categoria de leitura.
CONTINUA...
Nenhum comentário:
Postar um comentário