Como introdução ao segundo bloco poético do grande poema “Serpente Emplumada”, o poeta em análise trabalha a frase (o verso) como quem quer dar voz e tom justos a uma experiência em contraste com a convenção dominante. Ele reatualizou a sintaxe oral e deu um novo travo de sinceridade pungente ou irônico. Quer mais comovente e estranho do que:
“Quem decifrará o grão poema? / Grão de
areia / Das praias do mar... / Poeira de aquáticas estrelas... / Gota de
orvalho transportada / Da rosa / À imensidão do oceano”
“Pacífico”
Esta
estrofe constitui-se num “estranhamento” conforme os formalistas russos.
A
quase falta de pontuação ou simplesmente as reticências e a interrogação
imprimem, na estrofe, um ritmo próprio que vai de encontro com a sintaxe
tradicional. Daí porque a reatualização da sintaxe oral.
Poder-se-ia
comparar o poema, este poema denso, profundo, com uma imaginação indizível, com
o “grão poema? / Grão de areia (...) / Gota
de orvalho transportada / Da rosa / À imensidão do oceano // Pacífico”.
Estes
versos são formas poéticas corporificadas com suas qualidades visíveis que se
transformaram em ações (objetos próprios da poesia).
Em
suma, interessa-nos conhecer o poético realizado no texto, o poético entendido
como o signo ou categoria que designa uma experiência ou aquilo que aparece à
consciência – ou um modo de ser da inteligência e sensibilidade (de um criador
de arte: o poeta), como se encontra materializado nas páginas escritas.
Do
final do primeiro bloco – “Ofídia Verdade” – para o segundo bloco, há uma
introdução para dar início ao segundo, com uma pergunta. Quem? Em suspense. À
cata de uma resposta. Quem teria a ousadia de respondê-la?
Com o
verso “Terra”, tem início o segundo bloco do poema. Antes, porém há uma definição
de terra: décima segunda estrofe:
“Terra
/ Pupila azul / Que gira, gira... /
.......................... /........................../..........................
“Gira”.
Nas
décima segunda, décima terceira e décima quarta estabelece-se um paralelo entre
a Terra e seus movimentos: rotação e translação.
Tudo gira – “Como girassóis do dia” / Gira
................................/.................................
“Como
girassóis da noite”
.....................................................
“Como
em verso lusitano / Este outrora dito comboio de cordas / Que se chama
coração”.
O poeta faz menção aos dois últimos versos do poema Autopsicografia de Fernando Pessoa. “O coração é descrito como um comboio (trem) de cordas, que gira e que tem a função de distrair ou divertir a razão: “E assim nas calhas das cordas / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de cordas / Que se chama coração”. (Fernando Pessoa)
Coração – o centro de toda emoção, o ventre do intelecto e da razão, que define o entendimento e a percepção.
E finalmente continua o girar
como os movimentos da Terra: rotação e translação já citados anteriormente.
Gira
“Como
os ponteiros de um relógio” /......................
“Como
o pião da infância” /................................
“Como
um carrossel de sonhos” /.........................
“Gira”
“Como
o gargalo da sábia coruja”.
Seguindo o curso normal da leitura do poema “Serpente Emplumada” do livro Girassóis Noturnos, ainda no segundo bloco, privilegiando o conceito de ritmo que afirma que o ritmo é produzido pela repetição de um mesmo elemento sonoro (acento tônico, consoante, vogal, sílaba, etc.) a intervalos regulares, ou ainda o conceito básico de ritmo que é o movimento de um objeto no curso do tempo, eu diria que o bloco poético em pauta é rico em sugestões rítmicas. Não só pela repetição das palavras “gira, gira”... sete vezes e “Giram”... duas vezes – elo entre as estrofes do 2º bloco, mas também pela repetição da palavra: “Como” – sete vezes.
Não há
apenas o parentesco sonoro, mas ainda o da construção:
1) Sintaticamente: a
pontuação (quase inexistente), um ponto final no fim do bloco, cuja leitura se
faz de uma só vez, num só fôlego, produzindo um canto sonoro ritmado.
2) Semanticamente:
a comparação (o “como”) aproxima as estrofes, estabelecendo a relação do
movimento da terra com os objetos e as ações do poema, exemplificando: a terra
gira / gira / Como as crianças quando brincam. Gira como girassóis do dia.......
Como girassóis da noite.
Além
das massas sonoras em que se constitui cada poema, o ritmo se caracteriza por
ser um verso emotivo e semântico autônomo. Veja, por exemplo, a última estrofe
do segundo bloco; em que a fusão entre a emotividade, a musicalidade e a carga
semântica particulariza os versos desta última estrofe. É tão perfeito o gira
gira do gargalo da sábia coruja – “este alado ser” – que se pode inferir.
De
onde a ilação de que o ritmo poético consiste na sucessão de unidades
melódico-emotivo-semânticas, movendo-se na linha do tempo, numa continuidade que
gera a expectativa na sensibilidade e na inteligência do leitor.
A descrição deste alado ser (coruja) é algo de fantástico e surpreendente porque perfeita, gerando a dita expectativa no leitor já anunciada. Só quem já conseguiu visualizar e acompanhar noturnamente a coruja pode confirmar tais características do bicho.
CONTINUA...
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