Mostrando postagens com marcador Apreciação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Apreciação. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

PREFÁCIO de CANCIONEIRO DA TERRA por Wilson Azevedo

 PREFÁCIO

Por qué los árboles esconden
el esplendor de sus raíces?
Pablo Neruda
                                                                                                                       


Cancioneiro da terra é o terceiro livro de poesia que Antonio Fabiano traz a lume, depois de Sazonadas e de Girassóis noturnos, publicados no Rio de Janeiro, em 2012, pela editora Taba Cultural. E seriam muito mais, não fosse o próprio autor seu crítico mais impiedoso, rasgando e lançando à fogueira centenas de poemas que só poderiam ser de fato avaliados por uma visão exterior. [1]
Esse Cancioneiro escapou às chamas, para o enlevo daqueles que apreciam poesia e, especialmente, de quem conhece seu autor. E, certamente, o poeta o salvou por ser este um inventário de seus mais caros afetos: o canto telúrico à terra da qual teve de se ausentar.
Dividido em sete segmentos (da língua dos anjos até as línguas avoengas), Cancioneiro da terra revela um poeta em pleno domínio do verso, pois o primeiro desses segmentos é composto por quatorze sonetos metrificados em decassílabos. E a primeira impressão que se tem desse processo metrificador é que o poeta quer provar o domínio de uma técnica de versificação, qual aqueles modernistas que, depois de cometer “desvarios” como os conhecidos “Sapos” de Bandeira, voltaram a escrever poemas rimados e comportadamente metrificados; sonetos, inclusive.
Mas essa impressão se desfaz no conjunto do livro. Não por aqueles poemas em versos livres, mas exatamente por outro de forma fixa: o canto real [2] em que o poeta fixa a tradição, para dizer que ela morreu e ficou circunscrita àquela forma antiga de fazer poema.
Antonio Fabiano não precisa provar nada, pois se assim quisesse, já o teria feito em Sazonadas com o soneto “Infinito”, digno de figurar entre o que de melhor se produziu no gênero. E mesmo um poema longo como “Serpente emplumada”, de Girassóis noturnos (em versos livres que se estendem por mais de vinte páginas), impressiona pela contenção do verso.
A forma fixa, então, se explica por uma necessidade da estrutura do livro. A primeira parte, composta de sonetos, tem como fim: a) a fixação do sujeito poético: primeiramente, na terra em que nasceu, a Paraíba; depois, na qual foi transplantado ainda criança, o “Rio Grande”; b) a descrição da terra que, afinal, é indivisa: “Nordeste é o mundo inteiro!” (Poema para Francisco J. C. Dantas); c) o inventário das tradições de sua terra (religiosas, culturais...).
Já o canto real (de tradição antiga) é a forma pela qual o poeta evoca os seus (nossos) antepassados. É um modo de expressar a tradição das fórmulas mortas. E é a partir daí que o sujeito é desterrado do seu chão: “Minh’alma deslizou por sobre os mares”.
Esse deslocar errante em tudo contrasta com a primeira parte (Em línguas de anjos) onde estão fincadas as raízes do sujeito poético (por nascimento ou transplante), e reforça toda uma instabilidade do ser já explorada nos poemas em verso livre (em línguas de rios e em línguas de asas, principalmente).
E aqui vale uma observação sobre o tempo do livro. Do conjunto dos quatorze sonetos do segmento “em línguas de anjos”, apenas os sete poemas iniciais expressam-se no presente, predominando o passado, a partir do oitavo, e assim no restante do telúrico Cancioneiro.
E é exatamente em decorrência da predominância do tempo passado, que dizer de Cancioneiro da terra que ele é um livro telúrico seria apenas uma tautologia, pois é esse passado que lhe empresta uma sombra de melancolia. Assim, o Cancioneiro não é apenas telúrico, mas de um telúrico melancólico, pois esse livro vai muito além de um canto de exaltação ao solo: “Em chãos da Paraíba eu nasci, / Mas cedo vim morar no Rio Grande.” Ele não é telúrico apenas no sentido de que é um poema enraizado na terra das lembranças do poeta: “Lancei raízes nesta terra Norte... / Daqui sou filho — alma e coração!”
Isso porque ao inventariar as tradições ancestrais, na busca de suas raízes, o sujeito poético dá-se conta de que é ele próprio um desterrado: “Expatriado é o que eu sou” [...] “Folha de árvore que se soltou” (Talvez os mortos voltem). Assim como em todo o segmento “em línguas de asas”, em que ser degredado não é atributo apenas do sujeito poético, mas do sujeito moderno, embora sem menção explícita a ele, que perdeu suas referências, suas raízes; que não é mais capaz de fincá-las em lugar algum: “São as filhas degredadas do universo” (A chegada).
Dessa forma, telúrico (no sentido do livro) significa uma comunhão com a terra; não a prometida, mas a perdida, onde as raízes que de fato importam são as dos ancestrais (avoengas), pois, diferente dos versos de Neruda, esse Cancioneiro não esconde suas raízes. Elas continuam lá; as árvores é que feneceram, como em “Talvez os mortos voltem”:

“Talvez os mortos voltem
Com suas ilusões de vivos
E eu os ouço à noite
Em seus gemidos.
Nada sobrou dos bens antigos
[...]
Bem inventariados em papel
Que agora as traças comem”.

Outro poema que expressa bem esse telúrico melancólico é “Perfeição”:

“[...]
O que sei e guardo
É o frescor da manhã
O canto das rolinhas
O cheiro do curral
Leite quentinho
E meu indizível avô
Ainda vivo.
Mas outro nome pra isso é perfeição!
[...]”

Isto é, a “perfeição” ficou no passado, perdeu-se no tempo da infância, de quando o avô ainda estava vivo.
E ao circunscrever seu Cancioneiro (no caso desse poema, a “perfeição!”) no passado, o poeta também se insere em uma outra tradição (a que mais importa agora): a tradição poética. Pois é também nesse poema no qual se percebe aquilo que se convencionou chamar de intertextualidade, explícita no primeiro verso, numa clara referência a Drummond: “A lembrança de minha terra dói”; ou ao rio que passa na aldeia de Pessoa: “E agora eu sei que o sol das outras terras / Não é / Como o daqui”.
Parafraseando nosso poeta maior, qualquer leitor (desterritorializado ou não) pode ler este Cancioneiro e dizer: “minha terra é apenas uma fotografia na parede mas como dói”.

Wilson Azevedo *


[1] Refere-se ao episódio de julho de 2012, o qual narrou-se em bem-humorada crônica, aqui mesmo no blog, sob o título de “Julho em Chamas”: http://antoniofabiano.blogspot.com.br/2012/07/julho-em-chamas.html

[2] Canto real (chant royal) é uma complexa e rara forma fixa de origem francesa, composta geralmente de cinco estrofes de onze versos com o mesmo bordão final e um remate (envio ou oferta), além de rigorosa metrificação e rimas determinadas. Surgiu no século XIV e foi bastante cultivado até o século XVI. É uma espécie de variação da balada e absolutamente incomum em nossos dias. (N. do B.)

* Wilson Azevedo é intelectual potiguar e crítico literário.

sábado, 4 de dezembro de 2010

EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010) - Livro de Ferreira Gullar sob Apreciação de Antonio Fabiano



EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010), a mais recente poesia de Ferreira Gullar, não é um livro qualquer e não pode ser lido de qualquer jeito, displicentemente. A boa crítica – e não me incluo aqui, sequer no que tange a crítica sem mais atributos – tem o dever moral de notá-lo como um dos grandes acontecimentos literários do ano de 2010, e anotá-lo, sem qualquer favor ao poeta, no cânon da nossa bem sucedida poesia deste início de século. Anais.
Valeu a espera de onze anos, sob o dito silêncio poético de Gullar desde a poesia de “Muitas Vozes”, para que recebêssemos, oportunamente, este “Em alguma parte alguma”, que mais parece a poesia de um poeta que de repente acontece, numa imprevista explo(implo)são. Gullar nos toma de assalto.
É comprovada por demais a competência do poeta, ele já não precisa explicar-se ou impor-se de algum modo. Sua obra caminha de mãos dadas com duas forças poderosas: 1) a consagração por parte de uma “elite intelectual” e da crítica mais autorizada – onde incluímos tudo o que se disse de sua obra, por especialistas e demais competências, em mais de meio século de produção literária e vida artística, além do reconhecimento que lhe é outorgado pelos muitos prêmios recebidos ao longo de sua ventura histórica no cenário cultural brasileiro; 2) e, o mais importante, a consagração junto ao povo, o qual incorpora sua poesia e adere de tal modo à arte do poeta e seu sentimento/razão do mundo, que finda por impregnar-se disso todo o imaginário comum (popular), erigindo a partir deste Gullar, que sem dúvida é mais modesto, uma espécie de ícone da poesia brasileira, fazendo-se a partir daí um “outro” que é mais Gullar do que ele mesmo.
A junção dessas duas partes, o resultado de uma fórmula tal que une o reconhecimento dos doutos e o amor dos mais simples que se enxergam em seu poeta maior e tomam para si o que ele diz em sua/nossa poesia (porque se veem retratados nela e ao povo o poeta empresta sua possante voz), resulta na melhor de todas as coisas que pode suceder a um artista: ele “flutua”, reveste-se daquela imortalidade que nem mesmo a Academia pode dar.
Gullar chegou aí, aonde só poucos chegam. Consegue fazer uma feliz passagem no tempo das gerações, com as quais dialoga, ultrapassando-as. Querendo ou não, seu nome é inscrito no cânon dos nossos vultos sagrados.
O livro “Em alguma parte alguma” vem nos dizer, sem arrogância ou mínima pretensão, que a escrita de Ferreira Gullar é o que há e é mais viva do que nunca. Sinaliza algo mais: diz-nos que literatura de verdade é possível no Brasil de agora, como antes, para além dos nossos poetas bons cujas Obras já se encerraram em Completas. Equivocam-se os que acreditam que poeta bom é só poeta morto. Como também erram os pessimistas que propagam não haver grande poesia nas novas gerações, além Gullar e outros poucos já consolidados desde o século XX e que ainda vivem. Decerto são diferentes os tempos e modos de ser poeta e se pensar a poesia. Complexo é o momento histórico cultural que atravessamos. Mas negar toda poesia, em meio à celeuma de vozes desentoadas ou coros de sapos que banalizam a sagrada arte, isso não nos convém. Poesia há. Como sempre houve. E o prova Gullar, que atravessa impávido esse mar revolto, nos ensinando a não desesperar.
“Em alguma parte alguma” parece já bem resolvido, maduro sem pudores. Extraordinária é a força de seus versos e a beleza nem um pouco ingênua com que se vê, ali, a vida desdobrada em surpresas. Um espanto! Mas não nos traz apenas a sucessão de alumbramentos que dá vazão à criação do poeta, criação esta realizada em cônscio gozo “extático”, o mesmo da poesia que dura o eterno tempo de um poema. Traz-nos ainda o sair-se de aflitivos silêncios (a mesma luta corporal com a palavra), por meio dos imperativos que nem mesmo o poeta sabe explicar, mas aos quais nunca diz não, sendo só sim e sim. E assim torna-se possível o impossível, que é alguma vez deixar dito – plenamente – o não dito. Ora, estamos diante de um silêncio gritado, próprio dos que se assombram, absurdamente elucidados, com a vida, ou com a morte, que também é coisa da vida, em qualquer parte qualquer. A morte neste livro espreita o poeta. Ou talvez seja só ele mesmo a espreitar a morte. Esquecendo-se, depois, um do outro. Ela não será mais que “a paz”, ainda que “a paz do nada”.
O poeta não erra em parte alguma de “Em alguma parte alguma”. Os mais severos hão de lê-lo buscando sempre na página seguinte um defeitinho para não lhe conferir o mérito patente dessa perfeição cabível só a raros e ninguéns. Constatarão, ao final, que o poeta logrou tocar nos pés de Deus, esse Deus do qual Gullar nunca se ocupa, em agnóstica posição. Paradoxo? Não. O maior elogio que se possa fazer ao artista!
O livro vai além do que poderíamos esperar. E nos toma de assalto, no melhor dos sentidos. Nele Gullar escreve-se renovado, sem, contudo, abandonar velhos temas sempre novos. Ousa. Manda para os escarcéus toda estreita medida que queira ditar seu livro e unidade rígida. Reinventa-se. Há de fato um novo tom, matizes. Dá-nos um verdadeiro panorama do seu estado de espírito e da liberdade que goza aos 80 anos, bem redondos, bem vividos. Mescla, sem peias, bananas podres e a mais alta luz dos espaços siderais, de estrelas vivas ou mortas; uma nostalgia às vezes irônica, a ponto de trazer à baila fêmures seus e alheios, na serenada constatação da senhora dona morte, esta que está aí, de mãos dadas com a vida, e não assusta mais que a própria vida; traços de pintura, alheia e sua, tudo retocado ou só tocado por sua mão de artista; as curvas de outra arte e toda arte, seja qual for, desde que verdadeira e fiel aos seus princípios; a linguagem levada ao seu limite, em extremos; o cheiro do jasmim, mais que tudo a flor do jasmineiro, sim, o jasmim e seu olor, este outro raio que fulmina...
O livro comove pelo que tem de transparente e lírico, originalmente lírico. Faz pensar, filosofal. Pedra no centro de um caminho, existencialmente aturdido, gozosamente abraçado. A vida como ela é, em seus paradoxos, a vida insuficiente, por isso mesmo a reclamar poesia, na beleza possível e impossível, em alguma parte alguma, em qualquer lugar qualquer, desta infinita graça que se dá aos que a querem receber.

Antonio Fabiano (2010)
Belo Horizonte-MG
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com





EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010)
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 – 3º andar – São Cristóvão
20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – República Federativa do Brasil
Tel.: (21) 2585-2060

Atendimento e venda direta ao leitor:
mdireto@record.com.br
Tel.: (21) 2585-2002

Capa: VICTOR BURTON
Reprodução neste blog com licença de Ferreira Gullar

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

MOACYR SCLIAR: NOSSO HUMANÍSSIMO IMORTAL...


Moacyr Scliar, gigante das palavras. Fotografia de seu Site Oficial. Divulgação autorizada pelo Autor.

Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre - RS, em 23 de março de 1937. Filho de José e Sara Scliar, imigrantes provenientes da Bessarábia, Rússia, viveu no Bom Fim, bairro que ainda hoje reúne a comunidade judaica. Esta condição marcará notavelmente a sua vida e obra. Nesta, os temas mais recorrentes são a realidade da classe média urbana brasileira, a medicina e o judaísmo.
No ano de 1943 começou seus estudos na Escola de Educação e Cultura, Colégio Iídiche, onde inclusive sua mãe lecionara. Em 48 transferiu-se para uma escola católica, Colégio Rosário. É aprovado no vestibular de Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1955, vindo a formar-se em 62.
Casa-se em 1965, com Judith Vivien Olivien. Deste enlace matrimonial nascerá Roberto, em 79.
O primeiro livro que se publicou de Moacyr foi “Histórias de Médico em Formação” (1962). Eram contos inspirados em sua experiência de estudante. Em 1968 saiu “O Carnaval dos Animais”, também de contos. O autor considera, a rigor, este segundo livro a sua primeira obra. Daí em diante, não parou mais de escrever... Profusamente, diga-se.
Médico, especialista em Saúde Pública e Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, torna-se também membro da Academia Brasileira de Letras, a partir de 2003, onde ocupará a Cadeira n.º 31.
Deu aulas na Brown University (Department of Portuguese and Brazilian Studies) e na Universidade do Texas (Austin), nos Estados Unidos.
Moacyr Scliar é autor de uma das obras mais prolíficas da literatura brasileira, no tocante ao número de publicações e variedade de gênero: romance, conto, ensaio, crônica, ficção infanto-juvenil etc. É colunista de alguns jornais nacionais e colabora ainda com vários outros órgãos da imprensa do Brasil e do exterior. Scliar é conferencista aclamado, nacional e internacionalmente. Com frequência é convidado para participar de encontros literários em várias partes do mundo.
Seus livros já foram publicados em mais de vinte países, com notável repercussão crítica. Não por acaso é detentor de um invejável número de prêmios. Textos seus já foram adaptados com sucesso para o teatro, o cinema e a televisão.
Cada leitor de Moacyr Scliar pode inclinar-se mais para este ou aquele gênero de sua escolha, sem prejuízo, tal é a versatilidade do escritor e capacidade de dialogar com diferentes públicos em alto nível de qualidade. Todos, no entanto, hão de se encontrar em seu admirável estilo humanista. Aí se reflete uma gama de valores universais, a genialidade deste gigante do nosso tempo, o bom coração de um humaníssimo imortal...

--------------------------------------------------

Moacyr Scliar tem sítio oficial na Web: www.moacyrscliar.com
ALGUNS DE SEUS LIVROS ALTAMENTE RECOMENDÁVEIS:
“Ciumento de Carteirinha”, “O Ataque do Comando P.Q.”, “O Tio que Flutuava”, “O Mistério da Casa Verde”, todos da Ática e todos dirigidos a público juvenil. “O Centauro no Jardim”, “A Majestade do Xingu”, “Manual da Paixão Solitária” (prêmio Jabuti), “Contos Reunidos” e “Eu vos abraço, Milhões” (o mais recente), todos da Companhia das Letras. “O Exército de um Homem Só”, L&PM.

Excelente sugestão de leitura e dica de presente para o ano todo. Afinal, dar ou ganhar bons livros é coisa das mais sublimes.
Faça-se feliz!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

“MAGMA” de JOÃO GUIMARÃES ROSA: um livro de poesia!


Máquina datilográfica de Guimarães Rosa.
Em sua casa museu, Cordisburgo - MG.
Fotografia de Antonio Fabiano


Poemas – Definição
O cigarro de fumaça impalpável e brasa colorida,
que se fuma a si mesmo num cinzeiro,
será um poeta?...
(Guimarães Rosa – “Magma”)

JOÃO GUIMARÃES ROSA escreveu um livro intitulado “Magma”. Seria um livro de estréia, obra poética do escritor de prosa hoje louvado entre os maiores da literatura de nossa língua e universal. O livro recebeu, em 1936, um prêmio de poesia concedido pela Academia Brasileira de Letras (Concursos Literários de 1936). Isto seria bastante, a confirmar-lhe o valor e a autonomia nele existentes. Mas há quem diga que o seu subtítulo poderia ser este: começo e fim do poeta Guimarães Rosa. Este mineiro, como sabemos, não se consagrou por versos... No discurso de agradecimento pelo prêmio, o “poeta” mostrava-se já não muito afinado com o trabalho: “O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração [referindo-se aos imortais da ABL] me força a respeitar” (Revista da Academia Brasileira de Letras, Anais de 1937, ano 29, vol. 53, p. 261 a 263). Curiosamente, o livro permaneceu inédito, tornou-se uma espécie de lenda. Veio a ser publicado somente na década de noventa (portanto, postumamente), mais de meio século depois daquela alvorada! Não faltou quem temesse que algo assim “mediano” desestabilizasse a monumental reputação do escritor. Ora, “Magma” não é tão pequeno ou médio como temiam, estão – isto, sim! – outros livros do autor para além de grandes! Aquele não foi o único livro de sua autoria que o nosso Rosa, mineiro desconfiado, desejou não publicar... Felizmente desobedeceram-lhe, pelo que muito agradecemos. “Magma” está aí, luminoso, em seu lugar modestíssimo, se o compararmos com um grande “Grande sertão: veredas” e outros tantos livros deste imortal monstro sagrado. Mas quem disse que tudo deve ser igual?

Poemas – Riqueza
Veio ao meu quarto um besouro
de asas verdes e ouro,
e fez do meu quarto uma joalharia...

Reportagem
O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...

Magma / João Guimarães Rosa. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

Interessados podem adquirir o livro “MAGMA” pela EDITORA NOVA FRONTEIRA.

Para Iris Gomes da Costa, com carinho.

sábado, 30 de outubro de 2010

José Gonçalves de Medeiros e o poema “Despedida do pássaro morto”...

Olá, amigos! Na minha crônica da segunda-feira passada eu falei de um poeta acariense, José Gonçalves, e de seu célebre poema, “Despedida do pássaro morto”. Interessaram-se pelo assunto, sobretudo pelo poema, raríssimo; alguém, inclusive, postou um comentário pedindo sua divulgação em nosso blog. Contatei o amigo WILSON AZEVEDO, crítico literário de competência e especialista nesta matéria. Com sua orientação, e licença dos detentores de direito, publicamos agora o texto mais original do poema (apenas a grafia foi atualizada, o que é lícito e mais do que viável neste contexto); também incluem-se aí uns dados sobre o poeta, os quais estão disponíveis em uma comunidade de arte e entretenimento criada pelo mesmo Wilson Azevedo. Este, junto à família do poeta, tem outros trabalhos de José Gonçalves, que não podem ser publicados agora, mas que oportunamente virão a público em edição crítica.
Segue-se o principal... Espero que gostem! Há grandeza neste poema, para além do mito...

DESPEDIDA DO PÁSSARO MORTO

O voo também é sensu-
alidade
Estremeço e vibração de pássaro
Que possui e penetra o
espaço.
E era como se possuísse
e penetrasse a alma
do tempo.
Se eu morrer como
um pássaro
Deixo aos que me ama-
ram, aos que
me quiseram e me
gostaram, como eu
era, o meu sempre
displicente adeus.
Estou compreendendo
que se morrer num voo
antes de tocar a terra
do mundo, serei como
a pena do pássaro
ferido de morte.
Serei um pássaro de
fogo que vem do
céu para repousar
no seu ninho de areia.
Chorem, bebam, dancem,
riam, passeiem, pela
alma do amigo que
não foi pássaro mas
morreu como eles.

José Gonçalves
27-6-45

Segundo Wilson Azevedo, este poema aparece em 16 publicações, entre jornais, livros e revistas. Porém, em todas, o texto apresenta modificações. Esta é a versão original, de acordo com o manuscrito. Só a grafia foi cuidadosamente atualizada.

JOSÉ GONÇALVES é o filho mais velho de uma família de 12 irmãos. Seus pais: o telegrafista Mário Gonçalves e Porfíria Pires Galvão. Nasceu em 18 de dezembro de 1919, em Acari (RN). Faleceu aos 31 anos de idade, a 12 de julho de 1951, em Sergipe, no acidente aéreo que vitimou o Governador do RN, Dix-Sept Rosado, de quem era Secretário de Imprensa do seu governo.
Aos 11 anos, José Gonçalves foi admitido no Seminário de São Pedro, em Natal. Porém, a trajetória como seminarista foi curta. Pouco tempo depois foi transferido para o Colégio Ateneu, onde iniciou suas atividades literárias, escrevendo para o jornal da Academia de Letras da instituição.
Do Ateneu foi para João Pessoa e depois para Recife, onde exerceu suas duas principais atividades: a política e a literatura. Na primeira, foi ativo combatente da ditadura Vargas. Na segunda, deixou poemas, crônicas e contos publicados nos jornais daquela capital.
Dos poemas, o mais conhecido é o "Despedida do pássaro morto" e dos contos, "Menino em dezembro".

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

ADÉLIA PRADO, IGUAL A ELA MESMA.


Adélia Prado em imagem do Programa Sempre um Papo disponível na Web

ADÉLIA PRADO nasceu em Divinópolis - MG, em 13 de dezembro de 1935. Filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa. Perdeu a mãe em 1950 e, a partir de então, escreveu versos. Fez o curso de Magistério, de 1951 a 1953, dando aulas logo em seguida. Em 1958 casou-se com José Assunção de Freitas. Na década de 1960 começou a estudar filosofia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis. Em 1972 perdeu o pai. Formou-se em 1973. Por essa época enviou originais dos seus poemas a Affonso Romano de Sant’Anna, que os fez chegar ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Este último, por sua vez, os recebeu com grande entusiasmo e reclamou urgente publicação. O resultado dessa ventura é a grande obra inaugural de Adélia, “Bagagem” (1976), que começa com estes versos de impacto:

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Lança-se Adélia Prado, madura, já mãe de cinco filhos e consciente do fazer poético. “Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia, / sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.” (Bagagem, ‘Grande desejo’). O livro “Bagagem” foi publicado no Rio de Janeiro, e em seu lançamento estiveram presentes, dentre outras pessoas, Antônio Houaiss, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Raquel Jardim, Nélida Piñon, Juscelino Kubitscheck, Affonso Romano de Sant'Anna, Alphonsus de Guimaraens Filho.
Em 1978 lançou “O coração disparado”, ganhador do Prêmio Jabuti de melhor livro de poesia. Não parou mais de escrever, poesia e prosa. Outros livros de POESIA: “Terra de Santa Cruz” (1981). “O pelicano” (1987). “A faca no peito” (1988). “Poesia reunida” (1991). “Oráculos de maio” (1999). “A duração do dia” (2010). Em PROSA: “Solte os cachorros” (1979). “Cacos para um vitral” (1980). “Os componentes da banda” (1984). “O homem da mão seca” (1994). Manuscritos de Felipa (1999). “Prosa reunida” (1999). “Filandras” (2001). “Quero minha mãe” (2005). “Quando eu era pequena” [infantil] (2006). Os livros de Adélia Prado estão sendo agora editados ou reeditados pela Record. Alguns de seus trabalhos foram traduzidos para outras línguas, além de seu nome constar em várias antologias. O espetáculo “Dona doida: um interlúdio”, baseado em textos de Adélia Prado, foi encenado por Fernanda Montenegro, com grande sucesso no Brasil e no exterior, em 1987. Em 2000, Adélia gravou “O tom de Adélia Prado”, CD no qual recita poemas de “Oráculos de maio”. Em 2003, “O sempre amor”. Ambos pelo selo Karmim.
Profundamente religiosa (cristã católica), sua poesia é marcada pelo sagrado. Deus é personagem maioral em sua obra. Mas equivoca-se quem pensa que esta é panfleto de ideologias ou via de proselitismo à fé que a autora em nível pessoal professa convictamente. Leituras pouco profundas, nesse sentido, foram feitas até por bons críticos, mas são por si mesmas insustentáveis.
Também o cotidiano adquire relevância em sua criação: “Eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele. Não sei de alguém que tenha mais.”, diz com frequência. Antes de ressurgir com o livro “O homem da mão seca” (1994), Adélia passou por um difícil tempo de “desolação”, um longo silêncio, período em que ficou sem publicar nada: “você quer, mas não pode. Contudo, a poesia é maior que o poeta, e, quando ela vem, se você não a recebe, este segundo inferno é maior que o primeiro, o da aridez.”
Críticas, toda pessoa importante as sofre, tão mais quanto seja exposta às vistas alheias no muito grande que faz. Há quem não entenda que alguns fazem a arte que podem, outros a que querem, porque podem e sobra talento. Adélia pertence a este grupo de abastados. Delineou cedo seu rumo poético, muniu-se de bagagem própria (não alheia), é coerente naquilo que faz e não desvirtuou sua opção para agradar a quem quer que fosse. É precário dizer que ela se fez “refém” das influências primeiras que jamais negou. Drummond? Guimarães Rosa? Quem dentre vós (maiores e melhores do meu país) nunca tiver devido algo a eles, que atire a primeira pedra! Mas, antes de tudo e como eles, Adélia é mineira! Nasceu sabida dessa “mineirice” inimitável. Ela só é igual a ela mesma. Reside talvez aí a dificuldade de enquadrá-la no cânon previsível de qualquer das escrituras cristalizadas. E isso é insuportável para alguns que não sabem o que fazer com a poesia desta mulher. Se avexem não, nós não críticos sabemos! (Antonio Fabiano)

[Algumas informações biográfica e as "falas" da autora foram coletadas dos seus livros editados pela Record].

Antonio Fabiano
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

“A DURAÇÃO DO DIA” (2010) – ADÉLIA PRADO.


Adélia Prado (Foto Divulgação)

“Sem avisos se mostra / a duração perfeita, / forma que de si mesma se acrescenta / e na mesma medida permanece.” (O vivente, p. 81).

“A duração do dia” (2010) é o mais recente livro de versos de Adélia Prado. Uma boa surpresa! Pelo título somos imediatamente levados a crer que, como nas obras anteriores, aí também se privilegiará a temática do cotidiano. E é o que acontece. Ao lado disso vem com acentuada força o seu outro bordão predileto, de teor religioso: a experiência de Deus. Esta, em “A duração do dia”, parece dramaticamente intensificar-se. É curioso o sofrível latente, na gozosa relação entre Deus e sua criatura (amada). O livro é dividido em grupos de poemas que se separam por citações em sua maioria bíblicas. Tais blocos não possuem títulos como nos livros anteriores. É uno o dia, transcorre ininterrupto. Letras santas ou falas norteiam-no, sutilmente, sem qualquer ruptura ou ideia de capitulação.
O poema de abertura já nos coloca diante de um “eu” que se esconde “no porão / para melhor aproveitar o dia”, “pra rezar, / agradecer a Deus este conforto gigante.” (Tão bom aqui, p. 9). O enfoque recai sobre o mínimo: “Eu só quero saber do microcosmo, / o de tanta realidade que nem há. / Na partícula visível de poeira / em onda invisível dança a luz.” (idem). Este paralelo “visível - invisível” atravessará “A duração do dia”, é um problema de fundo e moção na obra. Não se busca no entanto uma solução, frui-se o problema. Nisto, de fato, vemos que, se a predileção recai sobre o pequeno (mínimo), este é paradoxalmente potência motora do “dia” e tem matiz evangélico: “minha fortaleza é a da mostarda. / Um grão.” (O noviço e a abstinência de preceito, p. 44).
No primeiro momento desta obra, “As matemáticas suplantam as teologias / com enorme lucro para minha fé.” (Uma janela e sua serventia, p. 10). Ou, “Como oráculos bíblicos, / os paradoxos da física me confortam.” (Pensamentos à janela, p. 19). Visão romanesca da ciência quântica. Alternam-se luzes e lágrimas, reminiscências nostálgicas ou muito boas da explicitada mulher, a sombra de Deus aterradora e aprazível, as contradições do amor. Este livro não se exime de trazer-nos sobejados ecos de outros tantos da autora, diga-se de passagem. Tudo, porém, revestido de uma “coisa” nova (original), certo entretom em sua voz poética, algo sutilizado na maioria dos versos, mas bem perceptível ao leitor iniciado de Adélia Prado. Pode causar algum estranhamento, isso, mas é bom.
“Deus há! E pode que haja o diabo, / o que não tem é morte.” (Como um parente meu, um Riobaldo, p. 17). A presença da morte, pela sua aproximação ou memória dos que já se foram (ancestrais revivem), é reincidente no conjunto desta obra, mas nem de longe tem aí seu triunfo. Exceto em fala irônica (cf. Rua do Comércio, p. 48) ou de tentação (cf. Anjo mau, p. 71). A morte é “a que não existe.” (Epigráfico, p. 33). Ou, “Só morrem os muito velhinhos / que pedem pra descansar.” (Aqui, tão longe, p. 21). Ela é uma insistente sombra no “dia”, sem dúvida, mas tanto como o tempo é relativizada: “não se tem certeza de que vamos morrer, / (...) / São os relógios / o mais obsoleto dos inventos.” (Dádivas, p. 42). Todo o mais é cotidiano poetizado, metamorfoseado pelo maravilhoso de uma “memória dourada” que traz “mentira meio existida, / verdade meio inventada.” (Aqui, tão longe, p. 21). Não importa se faz noite neste “dia” de Adélia Prado: “Estrelas na escuridão são ícones potentes.” (Pensamentos à janela, p. 19). Importa “que amanhã seja outro dia, / igual a este dia, igual, / igual a este dia, igual.” (Aqui, tão longe, p. 22).
No livro aparece ainda o drama em palavras da palavra que não (?) acontece. Em face da luz eterna “Quis dizê-la e não pude, / ingurgitada de palavras / minha língua se confundia. / (...) / Aquiesci gozosa, / a língua muda, / a folha branca, / a mão pousada” [o poema “termina” sem ponto final] (Divinópolis, p. 13-14). Esse drama é a luta da “escrivã” (poeta) pelo sentido mais profundo das coisas. “A beleza transfixa, / as palavras cansam porque não alcançam, / e preciso de muitas pra dizer uma só.” (A escrivã na cozinha, p. 25). Sabe-se desde sempre que “as palavras são dúbias” (O clérigo, p. 50). Luta-se com elas, como Jacó lutou com Deus (se me permitem essa imagem bíblica). Diz-se: “Perdi a conta das vezes / que retomei esta escritura / sem avançar de sítios pantanosos, / (...) / Foi ontem e já tem cem anos, / faz um minuto só, / foi agora e foi nunca, / jamais aconteceu, / não há, não houve,” porque, para além de brincar com a atemporalidade das melhores letras, no “dia” de Adélia Prado “o que não tem palavras não existe.” (Nem parece amor, p. 92). Note-se ainda o problema da palavra, complexificado, em “(...) língua / para todas as línguas traduzível / sem prejuízo” (cf. Querido louco, p. 93).
Se nos deparamos com certa insuficiência das línguas ante o inefável, é natural que até as matemáticas do primeiro momento não mais possam dar conta do milagre em evolução: “Neurônios não explicam nada.” (A escrivã na cozinha, p. 25). E o que dizer de versos como estes: “Como o cão, minha língua ladrava / à aterradora beleza.” (Constelação, p. 87)? O drama da palavra, em face do indizível, é vivido em modulações de gozosa agonia, como todo o mais deste “dia”. Tal ira aplaca-se, no entanto: “E só Vos dei palavras, ó Deus santo. / Quando achei que exigíeis / cabeças sanguinolentas, / um punhado de versos aplacou-nos.” (O penitente, p. 65). A conclusão não poderia ser outra: “Toda compreensão é poesia, / clarão inaugural que névoa densa / faz parecer velados diamantes.” (Esplendores, p. 88). Sobrevive-se.
O sofrimento é também lugar comum no “dia” duradouro deste livro: “Avia-te para sofrer – conselho pra distraídos –, / cristãos já sabem ao nascer / que este vale é de lágrimas.” (A escrivã na cozinha, p. 26). Esta agonia – sempre gozosa – de ser ou existir no mundo é, inclusive, partilhada por solidário Deus. O sofrimento não parece ser anômalo ao “dia” adeliano, é parte de seu mistério. Como o medo: “Ter medo é saber do inaudito, / ninguém até hoje explica / por que batem as pálpebras.” (Epigráfico, p. 33). Em todo o contraste vivido na obra, confessa-se sem pejo: “estou feliz e dói.” (Olhos, p. 29). Dói, mas nunca em sentido totalmente negativo. Dói dor saudável e previsível, como a dor de um parto.
É, pois, a consciência ou suspeição de um “plus” divino, o que dinamiza esta obra, movimentando personagens e demais coisas. Isso transubstancia toda a realidade habitual, deifica o mundo das rotinas e chega, com similar naturalidade ou estático espanto, aos sacrários e às cozinhas da existência humana. Igual.
O mundo com todos os seus desvãos é a passarela basilar das múltiplas formas de “cotidianização” deste “eu” lírico, na obra de Adélia Prado. Inclusive o divino é “cotidianizado”. Assim, Deus muitas vezes é feito à imagem e semelhança do homem, ou talvez devamos admitir que o humano é mesmo divino e feito de Deus. As duas leituras são possíveis na obra, não há aí qualquer incompatibilidade. Não obstante alguma coisa, este mundo/tudo (em seu viés original) é assentido: “que bom estar no mundo / a esta hora do dia! / De maneira perfeita tudo é bom” (Dádivas, p. 42).
No “dia” põe-se então holofotes sobre o que já está aí. Nada de grande se inventa, maravilha-se do que há. É a trama das coisas que se enfoca, quase sempre a partir da ótica da mulher, seja a perspectiva feminina ou virilizada. Esse mundo é, portanto, palco da ação de Deus (às vezes “deus”), que se apresenta ora amoroso, terno, ora terrível em seu poder e rigor antigos. Aqui a experiência de Deus é a experiência do sentido radical da existência/vida, sem qualquer divórcio entre sagrado e profano. Se o Deus da obra é onipotente em suas epifanias, cuja glória até chega a doer, ele também é um Deus carente: “É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor / como se fora eu Sua mãe e O rejeitasse.” (Consanguíneos, p. 99). Há aí sobejante cumplicidade: “Jungidos como estamos em formidável parelha, / enquanto Ele não dorme eu não descanso.” (idem).
O corpo tem neste livro a mesma visibilidade nunca preterida na vasta obra adeliana: “Este é meu corpo, / corpo que me foi dado / para Deus saciar sua natureza onívora. / Tomai e comei sem medo, / na fímbria do amor mais tosco / meu pobre corpo / é feito corpo de Deus.” (A necessidade do corpo, p. 28). Dir-se-ia, em jargão tomista, que este corpo é transubstanciado, torna-se corpo de Deus, hóstia viva (não por acaso aí também figuram as palavras evangélicas da ceia eucarística, ditas em cada missa: “tomai e comei”). O corpo é sacralizado pela presença/ação de Deus. A carne (visível) dá sentido ao mais sagrado (invisível), e o que não alcança isso é vão: “Contra o que se sente / toda filosofia é mesmo vã, / o livro é sagrado / quando o que apregoa / é revelado na carne” (Epigráfico, p. 33). A carne não é prescindida pelo esplendor epifânico. O ápice deste é, mais que tudo, encarnação!
“A duração do dia” sugere ainda reclusão: fala-se a partir do porão, de dentro da casa, de dentro de si, de trás das vidraças, das não poucas janelas etc. Porém nunca se insinua aprisionamento, tudo se reveste de serenidade e até resignações heróicas. Quando há sentimento diverso, este participa do que chamei de “agônico gozoso”. É o bom multifacetado nas contradições de um mesmo “dia”.
A condição humana é exposta de modo desconcertante em toda a obra de Adélia Prado. A grande extensão do mistério humano se mostra em dramático teor psicológico igualmente profundo aqui. Bastam estes versos para ilustrar o que se diz: “Quem me dera os lobos fossem fora de mim, / bastava um pau e os afugentaria. / Mas seus fantasmas é que uivam inalcançáveis.” (Alcateia, p. 73). Dentro. E fundo.
Alvíssaras chegam na hora boa. Neste livro como em outros da autora, a misericórdia se mostrará intacta e a salvação vaza para todos os lados, ainda que custe a suspensão do “dia” no sono do Cordeiro/pastor e esquecimento dos pecados: “A salvação, mais que viável, / é certa para santos e réprobos.” (A suspensão do dia, 78).
Pode não agradar a todos (o que é normal), mas este é um livro maduro, bom, de quem está muito segura do que faz e sabe o que quer. Alguns de seus poemas erigem-se tão acima da média, que podem figurar em qualquer antologia. Adélia escreveu a poesia dela (nossa), como ela mesma (a poesia) pediu para ser escrita. Sem artifícios. Sem enfeites. Só poesia. Nuinha. Três versos do mesmo livro, aplicados aqui a nosso propósito, serviriam para sintetizar em clímax “A duração do dia”: “a lâmpada de repente partindo-se / com estrondo e multiplicado clarão, / tudo sequencial, tudo no mesmo dia!” (Credo, p. 31).
Dancemos com essa luz. Amém.

(Bibliografia das citações: PRADO, Adélia. “A duração do dia”. Rio de Janeiro: Record, 2010.)

Antonio Fabiano
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

domingo, 12 de setembro de 2010

WILMAR SILVA


Wilmar Silva - Fotografia de Paulo Lacerda

Wilmar Silva (1965) está longe de ser um poeta previsível, tipo convencional. Entre gênio e louco, até podem ser divididas algumas das opiniões mais superficiais a seu respeito! De fato ele faz questão de fugir dos gastos padrões vigentes. Mas isto é natural nele, nunca artificial! Espontâneo. E, gostem ou não de sua poesia, admitam ou não seu ambicioso projeto de “desconstrução da língua” etc. etc., ele (Wilmar Silva) e ela (a poesia dele) estão aí como uma surpresa a cada aparição, como um delicado insulto aos mais puristas! Uma coisa é certa: Wilmar Silva sabe o que faz, quer fazer exatamente como está fazendo, e o faz sempre com extravagante inteligência e aquilo que também podemos chamar mais brandamente de saber/sabor genuíno, artístico!
Em alguma de suas apresentações performáticas, você pode se surpreender vendo-o comer um buquê de rosas vermelhas... Ou, no meio de uma entrevista, assisti-lo a rasgar um de seus livros – que, aliás, têm admirável projeto gráfico de edição. Você pode também não entender nada da “poesis biosonors” ao ouvir em seu programa “Tropofonia”, pela Rádio Educativa UFMG, na frequência 104,5, às noites de segunda-feira. Mas o que você ou ninguém pode é negar que o poeta é poeta! Do jeito dele! Poeta!
De origem bem simples – zona rural de Rio Parnaíba (MG) –, Wilmar Silva é filho de campesinos semianalfabetos. Com eles, certamente, teve sua primeira e melhor escola, de vida. Mas só aprendeu as primeiras letras quando se mudou com a família para a cidade. Aí cresceu, em todos os sentidos. E da cidade Wilmar Silva ganhou o mundo, promovendo a poesia (não simplesmente promovendo-se com a poesia) na América Latina, África e Europa, por exemplo. Um de seus livros – “Estilhaços no Lago de Púrpura” – saiu em edição quadrilíngue (português, espanhol, francês e inglês). Ele é curador do projeto “Terças Poéticas”, levou a cabo recentemente o “Portuguesia”, obra de inaudita ousadia, com artistas lusófonos de várias partes do mundo. E tem fôlego para mais, muito mais! Seu recente trabalho é o NEONÃO, de experimentação sonora (ou, como ele diz, de poesia “biosonora”). Divide-o com Francesco Napoli, também poeta, compositor, exímio guitarrista e professor de filosofia e história da arte.
Segundo o escritor português Fernando Aguiar, “Neonão” poderá soar para muitos – inclusive poetas – como “Neonada”. É ouvir, sem preconceito, pra decidir! A sonoridade dos poemas é quase integralmente patenteada pela voz do poeta, sem muitos recursos técnicos para além da guitarra falante do Napoli, que (re)cria ambientes sonoros – a componente acústica – para o dicção de Wilmar Silva.
Neonão? Poesia, sim!

Poeta Wilmar Silva, livros: “Cachaprego” (Anome Livros, 2004); “Estilhaços no Lago de Púrpura” (Anome, 2006); “Anu” (Confraria do Vento, 2008); “Yguarani” (Cosmorama Edições, 2009); “Astillas en el lago de púrpura” (Angeles de Fierro, 2010). Performances: “O sétimo corpo”, “Ee tu mao”, “Eusmaranhados”. Além de videopoemas, dentre os quais um exibido no Museu da Língua Portuguesa de São Paulo.

Antonio Fabiano
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

domingo, 29 de agosto de 2010

DAVID DE MEDEIROS LEITE É POETA!!!

O amigo David, natural de Mossoró-RN, é advogado e professor da UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Sempre estamos em contato! Da Espanha, às voltas com o seu doutoramento em Direito Administrativo pela Universidade de Salamanca, até já me obrigou a ir visitar sua família em terras potiguares e ver os escombros de um convento que há séculos pertenceu aos carmelitas. Fui. Sua gente é acolhedora! Já li muita coisa dele (tem diversos livros publicados), até seus polêmicos artigos sobre história de Mossoró... Mas, nunca me disse que era poeta! Eis que me chega há pouco um sedex de Natal (a capital), com seu INCERTO CAMINHAR. Ou será que devo decir... INCIERTO CAMINAR? O livro foi publicado pela editora Sarau das Letras, em 2009. Sua edição é bilíngue (português e espanhol), e conta com ilustrações de Brito e Silva. A obra foi premiada pela USAL – Universidade de Salamanca e Escola Oficial de Idiomas de Salamanca, Espanha, em 2008.
E isto não me tinhas dito, sô!
Abraços, David! Vou te perdoar! Parabéns! E obrigado pela boa surpresa!!!

“A estrada é esta vontade de chegar...
E é o passo que transforma a todo instante
a vida num incerto caminhar.”

(David de Medeiros Leite – Incerto caminhar)

“El día avanza,
con la libertad de un cóndor,
sabiendo que otra vez morirá.”

(David de Medeiros Leite – Púrpuras tardes)

sábado, 7 de agosto de 2010

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA

Affonso Romano de Sant’Anna, 1937, é um dos maiores nomes das letras do nosso país. Do nosso país e do mundo. Esse mineiro de Belo Horizonte, que reside oficialmente no Rio de Janeiro, mas que pode estar a qualquer momento em qualquer lugar, é incansável arauto da poesia. Só da poesia? Não. Embora, em seu caso, ser só poeta já nos bastasse. Ele é jornalista. Foi considerado um dos dez que mais influenciam a opinião pública. Exímio cronista, teve a árdua tarefa – mais que honra, grandíssima responsabilidade! – de substituir o amigo Carlos Drummond de Andrade, em 1984, no Jornal do Brasil. Professor em várias universidades nacionais, trabalhou também em outras do exterior. Na ditadura militar, fora proibido de sair do país. Mas saiu. Lecionando nos Estados Unidos aumentava a nota de muitos dos seus alunos, para impedir que estes fossem mandados à guerra do Vietnã. É conferencista, mundial, de altíssimo nível. Escritor versátil, ensaísta e crítico de reconhecida cultura. Aliás, é admirável esta sua capacidade extraordinária de dialogar com as mais diversas culturas e gerações. Homem que fala e é entendido pelo povo, mesmo quando tem sob perfeito domínio as línguas de fogo quase ininteligíveis da academia. Recebeu incontáveis prêmios. Sua tese de doutoramento, transformada em livro – Carlos Drummond de Andrade, o poeta ‘gauche’ no tempo – mereceu nada menos de quatro prêmios nacionais. Quem já leu essa obra intuirá que dificilmente alguma coisa pode ter sido escrita sobre o poeta de Itabira, naquela ocasião, em mais alto nível e tão perfeita qualidade. Affonso fez e continua a fazer muito pela cultura do Brasil. Ele já presidiu a Biblioteca Nacional – a oitava maior do mundo – e foi, entre os anos de 1990/1996, o mentor da modernização tecnológica dessa instituição. Nesse período lançou programas de projeção nacional e internacional. Por isso, quando ele hoje critica ou insiste em determinados aspectos dos métodos de Educação (leitura, por exemplo), ele o faz com a autoridade de quem sabe o que diz, porque já experimentou meios bem sucedidos aí, tanto quanto na sua vasta experiência profissional em diversas partes do mundo.
Mas fixemo-nos um pouco mais no poeta, porque isso ele o é em tempo integral. Além de marido da Marina Colasanti, também escritora, e pai de duas lindas filhas. Seu primeiro livro de poesia é de 1965, "Canto e Palavra". Seu nome, entretanto, já era conhecido em publicações culturais do país desde 1956. Participou dos movimentos de vanguarda que agitaram a poesia brasileira dos anos 1960. Só a poesia? Não, embora em seu caso bastasse. Ele quis atuar, também, nos movimentos políticos e sociais de então. Foi, por exemplo, em perigosos tempos de ditadura que veio a lume o desconcertante “Que País É Este?” (1980). Com poesia fez revolução, seus versos invadiram jornais e lugares até então pouco usuais a coisas de poeta. Nas barbas do ditador, todo mundo ousou não apenas perguntar, mas também responder, com a lira feérica do Affonso.
Outros livros de poesia: “Poesia Sobre Poesia” (1975), “A Grande Fala Do Índio Guarani” (1978), “Política E Paixão” (1984), “A Catedral De Colônia” (1985), “O Lado Esquerdo Do Meu Peito” (1992), “Textamentos” (1999). Quis aqui apenas ressaltar o poeta, mas não nos esqueçamos que é bem mais ampla a sua bibliografia em prosa: ensaios, livros de crônica, etc.
Affonso foi amigo de pessoas muito especiais, como Clarice Lispector. Sempre esteve próximo das maiores expressões literárias do seu tempo, do seu país e de todo o mundo (como Octavio Paz, Elizabeth Bishop, Saramago e muitos outros). Trouxe, inclusive, o filósofo francês Michel Foucault ao Brasil. Mas nunca perdeu a simplicidade, não se distanciou daqueles que o admiram e veneram. Sendo tão grande, faz-se às vezes pequeno para estar mais próximo dos que dele muito aprendem. E não é apenas um grande poeta, mas uma grande pessoa. Está aí um homem que se deixou seduzir pela palavra, e pela mesma palavra nos seduz. Quis ser poeta e não sossegou enquanto a poesia não baixou de vez, para além dos lençóis adolescentes, nos seus versos todos. Explico. Quando ele era adolescente, uma vez procurou Manuel Bandeira. Este era considerado então o maior poeta do país. O rapazinho mineiro não se intimidou, juntou seus versos e foi levá-los pessoalmente ao “poetão” nacional. Bandeira o recebeu, prometeu que leria e escreveria dizendo o que achou. Um dia chegou a carta, que começava assim: “Achei muito ruins os teus versos”... Mas logo Manuel citou três poemas “melhores” e os derradeiros versos do Poema aos poemas que ainda não foram escritos. Affonso, que sempre amou a verdade, ficou feliz com a crítica sincera. Concluiu, nesse dia, que a poesia era possível. E, como já sabemos, ela aconteceu.

Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 07 de agosto de 2010.
Blog: http://www.antoniofabiano.blogspot.com/
E-mail: seridoano@gmail.com