quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 10 - FINAL)

Como se não bastasse, outros aspectos enigmáticos favorecem o poema. O primeiro deles diz respeito a “Uma nuvenzinha / Apareceu no céu / Sobre o mar. / Escureceu. / Ouviu-se grande estrondo / Luz / E ventos”.

São indícios de uma grande tempestade.

Trata-se da história do profeta Elias e o rei Acabe.

Depois de ir e vir, o encontro acirrou-se entre os dois. Após tudo isto, Elias disse a Acabe: sobe, corre, etc.

Esta história se encontra em Primeiro Reis, cap. 18 (Bíblia Sagrada).

Por analogia, pode-se estabelecer uma ligação deste fenômeno poético com a história de Elias e o rei Acabe. Elias apresentou-se a Acabe e a palavra do Senhor veio a ele dizendo: Vai e mostra-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra. Elias, prontamente, obedeceu, quando de repente, cai a chuva.

O espaço da cena do poema estabelece uma relação com a história acima mencionada. Vejamos:

 

         “A chuva caiu

         Indizível.

        

         A chuva

         Caiu.

        

         A chuva.

        

         A...

        

         Chove.”

 

         ................................

         ................................

         ................................

 

 

O bloco poemático continua até os versos: “E ainda chove / Chove”.

Este bloco está inscrito num espaço, que constrói o traço peculiar de um poema concreto.

Poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade ritmo-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. Daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico, realismo total, contra uma poesia de expressão subjetiva e hedonística. – p. 270-271 - Didática da Literatura - José Maria de Souza Dantas.

Observe a forma que o poema assume: o cair de uma chuva, de mais intensa para menos intensa, terminando, visualmente falando, como uma estrutura espácio-temporal, qualificado. É tão perfeita a comparação do espaço que nos dá a ideia de um ideograma: a chuva se despencando do céu, como uma cascata de luz e som.

 

“Na montanha / Chove / Quedas d’água / Chove / Sibila aquática a água / E ainda chove / Chove”. (grifo nosso).

 

Este poema “Serpente Emplumada” é tão complexo, profundo, completo que o poeta explorou nada mais nada menos que Literatura, Teoria da Literatura, Poesia em toda a sua extensão, além de Língua Portuguesa, Língua Asteca (explicação do título do poema), e outras, Teologia, Filosofia e Poesia Concreta. É demais para o meu pouco conhecimento.

Cada poema, pelo tom confessional, pela experiência do que se reveste, pela emoção que o anima, é como se fora uma parte do próprio poeta a se desprender e a se projetar, a se difundir e a perpetuar o seu criador. É o que aconteceu com o poeta Fabiano. Fenomenologia da Obra Literária. – p.209.

Como consequência dessa “nuvenzinha” que derramou chuva, tem-se outro bloco, dando continuidade a mesma temática.

É um bloco rico de imagens como a chuva que desce do céu, “Escorre a sabedoria / Caudalosa”. É preciso sabedoria para compreender o mundo com tudo que há nele, mas principalmente entender os desígnios de Deus. 

Como resultado da chuva caída tem-se: “O serpear dos rios / Por entre encostas / A timidez (obscuridade) / Dos barrancos”. Olhe só o paralelo entre “O olhar miúdo / Das miúdas fontes”, é uma figura de construção: Anadiplose – é o emprego da mesma palavra ou expressão no final de uma frase ou verso e no início da seguinte ou do seguinte, por exemplo: “Daquele céu de safira / Que se mira, / Que se mira nos cristais!” (Casimiro de Abreu).

A seguir outra imagem muito sugestiva:

 

“Aquele arisco emaranhado

De torrentes

Diluvianas poças

De ilusão”.

 

Quando a chuva cai no chão, mistura-se tudo: barro, mato e água, por isso “emaranhado / De torrentes / Diluvianas poças”, mas “De ilusão”. As poças não são d’água são sim de ilusão. A cena aqui descrita focaliza o ambiente interno onde se encontra o sujeito do enunciado, figura central sobre a qual incide o foco descritivo. Sim, porque a ilusão é um sentimento que recai sobre o sujeito da enunciação e/ou do sujeito do enunciado.

O poeta abandona o casulo do lirismo egotista e entrega-se à contemplação do espaço cósmico e à respiração de amplos temas:

 

“Chove / E tudo chora / De gratidão / De gratidão e medo / De alegria e medo / De alegria / Por haver água / E ser de água marejada / A esfera azul / Que chora”.

 

É digno de nota a gratidão. Gratidão pela água marejada = (leve agitação das ondas do mar).

O espaço da cena que, afinal é o espaço do discurso, é articulado por uma coreografia feita de:

 

“O silêncio / De quando Deus refez o mundo / Pelas águas / Atravessou a epopeia. / E no bater de asas / De uma pomba / (Como num piscar de olhos...) / Calou todas as mágoas / Levou tudo / Lavou tudo... // Tudo.”

 

Este incidente revela o dilúvio. Percebe-se e confirma-se pelo espaço, claramente delineado pela figura da pomba.

Mas vejamos ainda outros aspectos de interesse nesse final em que a palavra assume importância cada vez maior, como:

“Cada poema se caracteriza por ser um universo emotivo e semântico autônomo, a fusão entre a emotividade, a musicalidade e a carga semântica particulariza cada texto poético” (p.219) na medida em que o poeta vai esgotando o seu tema. Observe a emotividade, a musicalidade e a carga semântica dos versos a seguir:

 

Ouviu-se por último / O ruído de uma leve brisa / (– leve... leve...) / E no tênue sussurro / O perguntar: / Que aqui fazes?” (grifos nossos)

 

E a resposta vem logo em seguida:

 

                      “Ardo”.

 

A problemática da existência parece presidir, portanto, à estrutura desse poema de Fabiano, que nos faz considerar por um momento o mistério da vida e de sua peculiar forma de eternidade. (p.213) É só conferir os versos:

 

“E da argila do poema / Haverá novo homem... / Sobre os ossos ressequidos / Do poema / Nova carne / E vida”.

 

Mais uma imagem se nos revela, num paralelo estabelecido, quando da criação do homem e do mundo: Deus foi quem criou o primeiro homem com um sopro, numa porção de barro.

Se há nele (o poeta) alguma abertura para o mundo exterior, essa se concentra para o seu mundo interior na reflexão do seu Eu-poético, para o próprio Deus:

 

“Depois disso o Senhor / Por quem meu ardente zelo / Arde e zela / Soprará / E da argila do poema / Haverá novo homem...”

 

Surge então esse novo homem dos “ossos ressequidos / Do poema / Nova carne / E vida”.

O poeta se identifica com o próprio poema. Ele está sofrido porque debruçou-se “Sobre os ossos ressequidos / Do poema”... porém, “Nova carne / E vida” ressurgiu.

Depois disto tudo está consumado, porque “Deus não pedirá mais / Isaac em sacrifício / Nem sacrifício algum”.

Enfim:

 

“Descansaremos

Eu e Deus

Deus que viu que tudo era bom”.

 

Note-se que a tendência para intelectualizar o tema da Criação, conforme revelam os derradeiros versos, respeitou os acidentes formais que fazem deste poema uma epopeia. – p.285 - Massaud Moisés - A Criação Literária - Poesia.

Para o leitor, este poema é um momento absoluto de poesia, embora para o artista ele represente a angústia da criação.

Todo esse enigma que agora se clarifica é a Poesia como chave e caminho, como mapa e código. O código que afinal se resolve por um detalhe mínimo, e tudo se liberta, tudo se ilumina, tudo é epifania. A epifania que se concretizou com o confronto entre o deus mitológico da criação – “A deidade... Ofídia verdade” ó que equivale ao deus serpente emplumada, o deus da criação dos astecas que acreditavam no sol de Quetzalcoatl e o Deus da Criação (tradição judaico-cristã), “que viu que tudo era bom”.

Com essa epifania completa-se o ciclo em torno de si mesmo. O eu se reintegra depois de ter se apartado na procura de si mesmo através do tempo. A travessia do tempo pela poesia. Onde não havia Nada, senão aparência. Agora existe uma obra, um Ser, uma consciência. O poeta poematizou o tempo e a si mesmo; salvou-se da destruição e erigiu uma fundação porque “a poesia é a fundação do ser pela palavra” – Affonso Romano de Sant’Anna – Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra – 2ª edição. Editora Documentário – Rio de Janeiro.

   

Natal, 22 de julho de 2020.

   

  Elizabeth de Souza Araújo

 

 

 

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RELAÇÃO DE LIVROS UTILIZADOS NESTA LEITURA

 

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Editora da Universidade de São Paulo. Editora Cultrix.

DANTAS, José Maria de Souza. Didática da Literatura. Ed. Forense Universitária, 1982.

DELAS, Daniel e FILLIOLET, Jacques. Linguística e Poética. Editora da Universidade de São Paulo. Editora Cultrix Ltda.

DUBOIS, Jacques. Retórica da Poesia. Editora da Universidade de São Paulo. Editora Cultrix.

EIKHENBAUM et alii. Teoria da Literatura. Formalistas Russos – Tradução de Ana Mariza Ribeiro Filipouski, e outros. Editora Globo.

TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Editora Itatiaia Ltda. Belo Horizonte – Brasil.

____________ Técnica de Leitura e Redação. Coleção Didática Moderna 23. Livraria Cultura Brasileira Ltda. Belo Horizonte.

MOISÉS, Massaud. A Criação Literária-Poesia. 10ª edição rev. – São Paulo: Cultrix, 1987.

PORTELLA, Eduardo e outros. Teoria Literária. Biblioteca Tempo Universitário 42. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro - RJ - 1976.

RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da Obra Literária. Forense Universitária – Rio de Janeiro.

REIS, Carlos. Técnicas de Análise Textual - 3ª edição. Livraria Almedina - Coimbra - 1981.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra. Editora Documentário – RJ.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Biblioteca Tempo Universitário. Coleção dirigida por Eduardo Portella. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

TAHIM, Jacirema (Organização). Estudos de Literatura. Introdução à Literatura através da Análise e da Interpretação de seu Discurso. Natal; Fundação José Augusto, UFRN. Ed. Universitária, 1988.

TELES, Gilberto Mendonça.  A Estilística da Repetição – Drummond. 2ª edição rev. aum. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976.

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 9)

A dinâmica interior/exterior e toda a área do poema se organizam, também, sintaticamente. A pontuação exerce função fundamental na marcação do ritmo. As reticências não indicam a interrupção abrupta e conclusiva da sequência frasal como ocorre com o sinal de ponto. São pausas cheias de sugestões que não indicam o fim, mas o prolongamento do sentido ou dos sentidos do verso.

O discurso lírico resulta, muitas vezes, de uma livre expressão de estados emotivos justamente por imagens, e o poema não se deixa espartilhar por uma organização sintática muito complexa, optando pela parataxe cuja formulação se ajusta a esse fluir.

 

“O poema ficou calado.

O poema parou.

                    (...)

Ou... deverá o poeta

                    (...) ”

 

De agora em diante, o movimento, neste momento, se instaura, com os versos: ... “Sem pressa / Como e quando bem quiser... / Implorar / Com humildade e paciência / Que a poesia venha / Torrencial / (Como chuva milagrosa / Em terra árida

                   

Fazendo explodir do nada cinzento

O verde fênix da caatinga)

Sobre o poema...”

 

Estes versos possuem uma cadência de ir e de voltar que as reticências complementam. Estas, enquanto estabelecem uma pausa entre as estrofes dos versos acima mencionados, nada concluem, antes dão continuidade ao movimento, mantendo o tempo do verso. A pausa das reticências não é propriamente uma parada, mas um alongamento, uma duração. No verso “O verde fênix da caatinga”... não só o fonema /e/ de verde e /ê/ de fênix se perpetua fônica e semanticamente, o segmento posterior também é aguardado, “Sobre o poema...”, criando assim uma expectativa em torno de um depois, de uma sequência: “Que haja a torrente de Carit”...

Estas últimas reticências indicam a repetição do processo que não se conclui nunca. As reticências fazem o ritmo e o sentido ultrapassarem a linha do verso. Enquanto o primeiro segmento do verso anterior é prolongado, o segundo é já sugerido, formando-se assim uma cadeia, tendo as reticências como ligação. Estas, ao mesmo tempo em que interrompem a frase ou sintagma, também o projetam.

Em destaque, nesta estrofe o verso

      

  “O verde fênix da caatinga”.

 

Por analogia, considerar-se-ia uma metáfora.

A metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia. – p.197 de A Criação Literária de Massaud Moisés.

A metáfora constrói-se da junção de duas ideias:

“ideia original” e “ideia tomada de empréstimo”, “aquilo que está sendo dito ou pensado” e “aquilo com que está sendo comparado”, “ideia subjacente” e “qualidade imaginada”, “significado e metáfora”, “ideia e sua imagem”. A intercessão do designatum (ideia original) Charles Morris – p.198 A Criação Literária de Massaud Moisés. A interação do designatum e do veículo geraria um novo sentido, diverso daquele que cada qual apresenta isoladamente; e a unidade de sentido se imporia como resultante de características comuns a ambos, do contrário, a metáfora não se constrói (172). De onde o conceito de metáfora: dois pensamentos de diferentes coisas que atuam juntos e escorados por uma única palavra ou frase, cujo sentido é consequência de sua interação (173) – Idem, ibidem.

Hedwig Konrad considera a metáfora “uma transposição fundada na abstração e na semelhança” (177). Hedwig Konrad, op. cit. p.38.

Além da interação sugerida por I. A. Richards, temos ainda: confrontação, analogia, justa posição, parataxe, tensão, bipolaridade, unificação de heterogêneos.

No geral, como se vê, simbolizam uma única operação da mente, ou a redução à unidade dos vários processos subtendidos na composição da metáfora.

Como se vê: a caatinga é cinza, a fênix é uma ave que ressurgiu das cinzas. Porém, aqui, ela (a caatinga) ressurgiu verde. Houve o confronto de duas ideias: a original e a ideia subjacente: ‘caatinga cinza’ versus ‘caatinga verde’, gerando um novo sentido: a metáfora: “O verde fênix da caatinga”. Não é fantástica, original e bela (a metáfora)?!

A metáfora não é, propriamente falando, uma substituição de sentido, mas uma modificação de conteúdo semântico de um termo – o que não é um conceito, mas descrição de um fato. – I. A. Richards, op. cit., p.127. In: A Criação Literária – Poesia – Massaud Moisés – p.200.

De inspiração igualmente histórica e profética são estas outras estrofes:

 

“Que haja a torrente de Carit

E corvos venham e tragam

Pão e carne...

 

Que haja outras viúvas em Sarepta

E mais milagres de farinha e azeite

Inextinguíveis...”

 

Faz-se mediata pela palavra eclesial e teológica a belíssima relação com o sagrado:

 

“Elias prediz contra Acabe e é sustentado pelos corvos... Depois, veio a ele a palavra do Senhor, dizendo: Vai-te daqui, e vira-te para o Oriente, e esconde-te junto ao ribeiro de Querite, que está diante do Jordão.”

No poema “Serpente Emplumada” tem-se “Querite” palavra em hebraico que originou em português “Carit”. É só uma questão de “transliteração”, mudança de fonemas, como acontece em nossas Bíblias, a exemplo de Jefté e Jeftá ou Jeová, Javé e Yavé, com um único significado. Explicação dada pelo pastor, teólogo Klauber Maia.

“E há de ser que beberás do ribeiro; e eu tenho ordenado aos corvos que ali te sustentem. E os corvos lhe traziam pão e carne pela manhã, como também pão e carne à noite; e bebia do ribeiro.

“E sucedeu que, passados dias, o ribeiro se secou, porque não tinha havido chuva na terra.

“Mais uma vez o Senhor lhe falou (a Elias):

“Levanta-te e vai a Sarepta, que é de Sidom, e estava uma viúva apanhando lenha. Elias a chamou, pedindo-lhe um pouco de água para beber e ele pediu-lhe também um bocado de pão. E a viúva, prontamente lhe disse: Vive o Senhor, teu Deus, que nem um bolo tenho, senão somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite numa botija.

“Elias lhe disse: Não temas, vai e faze conforme a tua palavra; porém faze disso primeiro para mim um bolo pequeno, depois, farás para ti e para teu filho.

“Porque assim diz o Senhor, Deus de Israel: A farinha da panela não se acabará, e o azeite da botija não faltará até ao dia em que o Senhor dê chuva sobre a terra.

“Da panela a farinha se não acabou, e da botija o azeite não faltou, conforme a palavra do Senhor, que falara pelo ministério de Elias.”

(Trechos citados do Primeiro Livros dos Reis, Bíblia Sagrada)

 

Seja como for, aí reside um dos principais núcleos de resistência do poema, por si só capaz de torná-lo atraente no mais refinado leitor moderno de poesia.

De agora em diante, o milagre continuou, basta para que isto aconteça que “Se escute a voz que diz: / ‘Levanta-te! Come!’...” e não faltará mais... “pão cozido / E cantil d’água / E combustível para mais quarenta dias / E quarenta noites / De jornada...”

Mas é no contexto de “Tremor de terra” que o poema adquire plenitude de significação.

Por fim, cumpre sublinhar a presença de “Chamas” ... “o sacrifício de Elias / Um fogo do céu”, quando o poeta confessa a inquietação que o agita, centrado no sentido amoroso: E pela vida do Senhor / Por quem me consumo de zelo / Sejam outra vez degolados / Os quatrocentos e cinquenta / Profetas de Baal!”, no desenlace do poema, quando se dá a intervenção providencial do anjo:

 

“O poeta foi ao cume da montanha. / Pôs a cabeça entre os joelhos / E orou.”

 

“Tudo estava consumado”.  (grifos nossos)

 

 

CONTINUA...


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 8)

Dando continuidade à análise, tentaremos perseguir o caminho trilhado desde o início, a fim de desvendar o mistério para a compreensão da significação do poema.

O poeta está fazendo uma pergunta geral sobre todo o poema que encantou seu mundo de homem-jovem, expressões que soam estranhas ao ouvido civilizado, mas que revelariam a essência desse habitante sem raízes que busca no vazio os comprovantes de sua essência poética:

 

“Mas como pode caber

Num homem tão pequeno

Tanta poesia

Tanto sonho e desejo?”

 

Esses versos mágicos invocados pelo adulto de hoje, no caso o poeta, revelam um toque de singularidade no tratamento da temática ubi sunt, uma vez que o poeta não indaga diretamente pelos seus antepassados, mas procura no tempo a imagem perdida de si mesmo. – p. 73 - Análise da Obra - Carlos Drumond de Andrade – Affonso Romano de Sant’Anna.

Finalmente num ímpeto da alma, ele assim se expressa:

 

                   “(Sonho)

 

                   Shangri-La

                   É coração de amigo...”

 

Nesse poeta, a reconquista do “paraíso perdido” (“Shangri-La”) obedece a um impulso para alargar a sua vida, compensando o que as preocupações circunstanciais lhe tomam cada dia.

Essa volta do passado é um movimento interno da consciência por abranger todas as direções do tempo a fim de se conhecer a si mesmo.

O sonho vai justificar toda a atmosfera do poema, bem como a sua linguagem.

O poeta está empenhado numa guerra, dentro de si mesmo, para descobrir a sua essência, que toma a forma de uma preocupação imprevisível, a fim de descobrir o sentido, em sua mente, das imagens (a sua estrutura profunda).

 

         “Ó beatitude

         Maravilhosa descoberta:

         Todos os músicos

         São deuses disfarçados!”

 

O comportamento do poeta se traduz, neste momento, pelo princípio da IMPREVISIBILIDADE, ORIGINALIDADE E CRIATIVIDADE. Pois o poeta, surpreendentemente, conseguiu sentidos novos em relações novas entre as palavras, palavras por sinal bem conhecidas de todos nós. Mas uma nova construção, uma nova maneira de dizer, produziu novo sentido, daí o seu caráter de IMPREVISIBILIDADE que ninguém poderia esperar.

CRIATIVIDADE E ORIGINALIDADE

O poeta soube construir frases e ideias diferentes, incomuns à maneira de dizer e falar, como por exemplo:

 

“Um canto / Quase inaudível / Veio da ave / Sem nome / Que viu na flor / O mel / Do seu delírio / Um lírio? / Não tinha nome. / E a beijou? / Qual beija-flor. / Pois era a cor e / A própria flor / O mel / Do seu delírio. // Voou...”

 

É nítida a presença do enjabement. O enjabement é, portanto um recurso voluntariamente empregado pelo poeta a fim de criar uma unidade melódico-emotivo-semântica mais extensa que as anteriores. – p.185 - A Criação Literária de Massaud Moisés. Veja: “... da ave / Sem nome........ Do seu delírio........ a cor e / A própria flor........ mel / Do seu delírio.”

Isso demonstra um determinado PROCESSO POÉTICO, A PRÓPRIA POESIA.

 

Finalmente um momento ímpar dentro do poema: compreender o mistério que é o da “Serpente Emplumada” que dá título ao poema.

É um mito asteca: “A Serpente Emplumada”. Os astecas acreditavam que viviam sob o sol de “Quetzalcoatl”, o deus serpente emplumada, deus da criação, da aprendizagem e do vento. O sol se move levado por sua respiração. Quando os guerreiros morrem, suas almas se transformam em raras aves emplumadas e voam para o sol. Quetzalcoatl era o rei da cidade dos deuses. Era totalmente puro, inocente e bom. Muito mais outros fenômenos ele provocava, como fazer chover, por exemplo.

Agora, veja só que beleza de descrição no poema sobre a serpente emplumada!

 

“Ondula! Ondula

Serpente

De cauda prateada

De plumas

Enfeitada

Cabeça

Adornada

Como velhos índios chefes

Banidos do meu país de nus!”

 

A colocação das palavras é tão perfeita que é como se a nossa percepção sensorial visualizasse o serpear (o andar sinuosamente) da serpente.

Todavia esta é uma explicação muito superficial do que significa realmente a “Serpente Emplumada”.

Vale a pena lembrar o que afirma A. Moles (1971) sobre a percepção estética:

“A percepção estética é o resultado de uma “integração cerebral” que visa obter a unicidade, procurando um traço de relação na complexidade dos elementos constituintes. O material dessa percepção (visual ou sonora) é constituído por átomos de sensação fornecida pela excitação sensorial dos órgãos envolvidos. Quanto à percepção propriamente dita, ela se identifica com o reconhecimento de macro signos, conjuntos reconhecidos como totalidades operantes. A tomada de consciência dos dois canais da percepção do poético, oral e visual, leva assim a acentuar seu aspecto unitário. (grifos nossos).

A teoria da estética informacional (A. Moles, 1958), visa também a apreciar e talvez medir (ver os trabalhos de C. E. Shannon) a ressonância de uma mensagem artística sobre o receptor. Supomos que o codificador e o descodificador possuíssem os mesmos repertórios compostos de elementos conhecidos ou facilmente reconhecíveis (regras de sintaxe, dicionários, sons da língua). Nessa situação, a todos o artista procura criar uma mensagem composta de tal maneira que traga, àquele que o receba, certa quantidade de novidade, quantidade que não deve ir além de determinado limite, a fim de que o receptor possa projetar formas sobre aquilo que lhe é transmitido.

Nada mais velado (novidade) do que trabalhar, pelo menos para mim, com o título exótico como o da “Serpente Emplumada”.

A inquietação inerente a este estudo volta-se, fundamentalmente, ao desvelamento sistemático do ato de ler. Verifica-se que esta tarefa exige do inquiridor um trajeto de investigação que não fuja às características estritamente humanas da leitura. A busca de uma síntese a partir de diferentes perspectivas ou pontos de vista, discutindo e “entrelaçando” conceitos iluminados por discursos diversos é que vai garantir a incisividade e profundidade pretendidas nesta reflexão.

É a teoria da estética informacional – “a ressonância”  (reforço das vibrações e, portanto, do som), se confirmando.

Todo o texto enquanto tal apresenta uma forma ou estrutura e possui, necessariamente, uma essência. Ao se situar diante de um fenômeno (o texto), na busca de compreender sua estrutura e essência, o inquiridor coloca entre parênteses sua experiência anterior e, guiado por sua consciência, designa, nomeia e dinamiza esse fenômeno no sentido de fazê-lo ganhar maior significação. A palavra não é mais “ruído e signo sem fundo”. (Barthes, 1953): ela se insere num espaço; e esse espaço que é comunicado ao mesmo tempo que a palavra, resulta numa geometria indissociável da sintaxe. (grifo nosso).

A função poética valoriza os elementos funcionais segundo sua natureza própria. Não apenas confere “um sentido mais puro às palavras” [N.T.: Mallarmé], mas produz sentido. O funcionamento sintático não desempenha, necessariamente, um papel mais importante que os outros; pode até mesmo ser totalmente encoberto por sistemas recorrenciais, mais poderosos, no plano sonoro ou semântico. – p.106 - Linguística e Poética - Daniel Delas e Jacques, Filliolet.

Todavia quem se propuser estabelecer esquemas de funcionamento, por analogia com o funcionamento poético real, necessariamente conferirá ao funcionamento sintático um lugar primordial pois este organiza o surgimento do material verbal. (grifo nosso).

Aqui se observa mais nitidamente a importância do contexto, ou seja, do elemento sintático. A palavra isolada é desprovida, por vezes, de significação, justamente porque, podendo aplicar-se a vários objetos diferentes, impede o estabelecimento da intencionalidade. Suponhamos o vocábulo “floresta”. Apenas pelo contexto se define o objeto intencional como fator de fundamental importância na caracterização da linguagem poética, pois, no caso de figurar num conjunto frasal: “floresta das almas”, maiores possibilidades oferecerá à experiência estética.

A expressão “floresta das almas”, por exemplo, apenas pelo contexto se define o objeto intencional como um ato militar. Na história lendária da serpente emplumada, quando os guerreiros morrem, suas almas se transformam em raras aves emplumadas e voam para o sol. O sol se move levado por sua respiração. Muito mais pode ser lido sobre a serpente emplumada via Internet, de onde retiramos algumas dessas informações.

 

CONTINUA...

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 7)

Muito comum é a reduplicação de uma ideia, quer em palavras repetidas com ligeira modificação, quer por meio de sinônimos. Já vimos que essa técnica provém, muitas vezes, de um tratamento lúdico da linguagem, pelo ritmo que dessa maneira se obtém. Mas é inegável que se trata também de artifício expressivo, principalmente quando a segunda palavra não tem parentesco morfológico com a primeira. Vejamos os exemplos:

 

“A consciência do meu povo (...) / A alma da minha gente (...) / O calor e o saber profundo / De todas as coisas. / (...) Do povo (...) / Do barro que se pisa” etc.

 

Além desses recursos rítmicos, conta também o poeta com a disposição das palavras em movimentos ordenados, às vezes até regulares demais. Note-se os versos:

 

“Dói o poema

Feito de calmaria e lucidez profunda...

         

A capacidade de tocar alguém

Não está só em quem toca

Mas ainda no poder daquele que é tocado.”

(grifos nossos).

 

Aqui merece uma reflexão: a quem “dói o poema”?


1)       A quem toca? Ao poeta?

2)       A quem é tocado? Ao leitor?


1)   Ao poeta que engendrou o poema, com sua linguagem criativa, dinâmica; que informou o poema com palavras e expressões inusitadas; com seu conhecimento linguístico, filosófico, teológico, histórico, político, psicológico e/ou

2)    Ao leitor que, na maioria das vezes, tem que se embrenhar mato a dentro para decifrar o enigma de sua poesia, o mistério que envolve suas imagens e metáforas. Que também precisa de um conhecimento para conseguir fazer sua leitura.

Que mistério!... Que poesia!...

 

Nossa linguagem (falada, escrita, compreendida, lida) repousa sobre uma sintaxe cronológica, uma crono-sintaxe (Edeline, 1972), em que o tempo é o eixo onde as instruções se inscrevem – Retórica da Poesia – Grupo U: Jacques Dubois e outros – p.120.

Num processo retroativo, vejamos:

A fala do poeta que faz questão de ignorar as limitações impostas pelas regras é de uma riqueza extraordinária. Sua imaginação é uma máquina incessante, que dá a todas as coisas uma representação plástica.

Para apreciarmos a plasticidade do pensamento do poeta Fabiano, consideremos estas passagens:

 

“A cada passo / Nasce a esplêndida / Flor / (não veem?) / Que está na água / Branca e solitária: / A vitória-régia / A iaupê-jaçanã / A que no rio / Soberana reina / (Ó verde imenso!) / E de tão bela / De tão bela / Faz meu coração tremer.”

 

Impressionante é a descrição d’ “A vitória-régia / A iaupê-jaçanã”. O autor economiza ao máximo as palavras, construindo períodos em que as expressões nominais são uma sucessão de quadros:

 

A vitória-régia         (Ó, verde imenso!)

A iaupê-jaçanã        E de tão bela

A que no rio             De tão bela

Soberana reina        Faz meu coração tremer

          

(1º quadro)               (2º quadro)

 

Essa plasticidade do pensamento é que confere ao poema uma feição cinematográfica, em que os cortes superpõem violentamente cenas diversas umas das outras.

[Fenomenologia da Obra Literária – p. 228.]

Ao analisarmos um conto a nossa primeira preocupação é encontrar a ordem das ações (unidade de sentido).

Na poesia lírica, porém, ao invés de ações, encontramos palavras. Palavras que se juntam, que se opõem, que se identificam.

Para se ler um poema é preciso levar em consideração que as interpretações são muitas e diferentes, mas o importante é sabermos justificá-las de uma maneira coerente a partir do discurso da obra. Como a poesia está caracterizada, entre outras coisas, por uma certa ordenação léxica, é primordial que jamais partamos para a interpretação sem estarmos atentos ao que o texto diz e ao seu modo de dizer.

A partir disso, resta-nos compreender como o texto se organiza, se estrutura numa maneira, numa forma específica, pois a obra é um signo ou sinal que tem uma face aparente e outra oculta. Não é olhando para o signo, mas para onde ele aponta, que encontraremos a sua significação. Precisamos ver a obra como um signo, onde a sua forma vai levar a sua significação.

  

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