sábado, 27 de agosto de 2022

ZILA MAMEDE (1928-1985) - Seleção de poemas de Navegos / A Herança

 

Zila Mamede em foto de Carlos Lyra



Do livro Rosa de Pedra (1953):

 

 

SONETO PARA O MOMENTÂNEO REENCONTRO DA PERDIDA INFÂNCIA

 

Não. Esse não, porque esse quadro encerra

os seus limites infantis de outrora

quando plantava as mãos de medo e terra

nos flocos de algodão sujos de aurora.

 

Não esse quadro antigo em que se aferra,

surda, uma dor que uma antes criança chora

perdida no caminho que a desterra

e no pranto que então seus anos mora.

 

Esse não: que ainda busca o procurado

abismo de onde os traços seus, feridos,

surpreendam voz pedindo claros sons.

 

Não essa inútil forma em céu crestado

descolorindo os ecos ressurgidos

nos dedos que inventaram lírio e tons.

 

(p. 219)

 

 

SONETO TRISTE PARA MINHA INFÂNCIA

 

De silêncios me fiz, e de agonia

vi, crescente, meu rosto saturado.

Tudo de mágoa e dor, tudo jazia

nos meus braços de infante degredado.

 

Culpa não tinha a voz que em mim nascia

pedindo esses desejos – sonho ousado

por onde o meu olhar navegaria

de cores e de anseios penetrado.

 

Buscava uma beleza antecipada

– a condição mais pura de harmonia

nessa infância de medos tatuada,

 

querendo-me embeber de inacabada

procura que, em meu ser, superaria

a minha triste infância renegada.

 

(p. 224)

 

 

CANÇÃO DA MINHA RUA

 

Rua triste

rua feia

rua velha

sem calçadas

rua fria

tão distante...

 

Sim, és triste

feia e velha

és distante

mas não importa.

 

Mesmo assim

és minha rua

onde vivo os meus sonhares

onde sofro os meus pesares

onde sinto os meus amores.

 

Para mim

tu tens belezas

que não há

nas outras ruas.

 

Se alguém

te tem desprezo

deixa

que eu te quero bem.

 

Eu conheço a tua história

tu me contas teus sonhares

tu me contas teus pesares

tu me dizes

bem baixinho

teus segredos

teus amores.

 

(p. 236-237)

 

 

 

Do livro Salinas (1958):

 

 

POEMA DE VIAGEM

 

Na estrada cinzenta e desigual

o automóvel se abisma.

 

Onde, o sono da mulher

carregando uma criança nos olhos?

A fala da criança

ficou dependurada lá fora

no tempo

a vestiu as árvores magras,

as árvores nuas,

os cactos tristes dos caminhos.

 

De tudo,

durou apenas

na memória

a última estrela

do ante-amanhecer.

 

(p. 155)

 

 

CANTO INÚTIL

 

Na penumbra do quarto me distingo

frase morta, que as grandes mãos do tempo destruíram

sem ecos,

sem remorsos,

sem furor.

 

Somente nesse nada se restringe

a condição recôndita do medo

que na memória dorme.

Se em mim fonte já não chora

retesam-se meus olhos.

 

Em palavra existi:

agora,

em sombras permaneço decomposta.

 

Frias letras indicam-me

sem nome,

explicam-me

sem vida,

sem lugar.

 

Fendeu-se-me o caminho.

Meu nome,

há muito não se faz chamar.

 

(p. 161)

 

 

 

Do livro O Arado (1959):

 

 

ANTECOLHEITA

 

Ah te saber distante, embora a chuva

amareleça em frutos e a colheita

não tarde. Já meus dedos se presentam

como instrumento* à terra matinal.

 

Ausentes os teus braços, a charrua

nega-se à lida, caminhança e bois;

o cata-vento remudece as hastes

que calentavam cedo anoitecer.

 

Não sei que faça dos celeiros. Vem:

setembro amadurece nos folhados

deixando-se nascentes para o estio.

 

Vem que me espanta o apascentar das ramas

e minhas mãos, de frágeis, agonizam

nessa visão de lavras, de eira e sol.

 

(p. 136)

 

A edição “Navegos/A Herança” (2003) traz essa palavra no plural (aqui omitido), diferentemente da edição “Navegos” de 1978, organizada pela própria Zila. Infelizmente não pude cotejar com a edição original de “O Arado”, 1959. O plural pareceu-me pretensa correção ou lapso da nova edição, pois além de mudar o sentido do poema, muda também sua cadência, destruindo a possibilidade de elisão, quebrando – num amadorismo de escansão que Zila dificilmente incorreria – a metrificação, antes gramatical e poeticamente perfeita, do verso. (Opinião do autor deste Blog)  

 

 

UM PÁSSARO ME HÁS DE DAR

 

Em manhã de pastoreio

ovelhas apriscando

largarás de tuas cismas

e cajado

que um pássaro me hás de dar

quando me amares.

 

Leve levemente mo trarás

das fontes dos teus olhos

sem nenhum pensamento

sem gesto liberto

a mansidão do teu silêncio

apenas.

 

À minha face matutina

descerá uma carícia

de pássaro

pousado.

 

(p. 148)

 

 

 

Do livro Exercício da Palavra (1975):

 

 

A PONTE

 

Salto esculpido

sobre o vão

do espaço

em chão

de pedra e de aço

onde não

permaneço

                     – p a s s o.

 

(p. 69)

 

 

AEROPORTO

 

Do pássaro invoado

– o antipássaro –

vibram sons de turbinas de emoção e sangue

 

Onde o pouso-cantar do pensamento?

Onde as artérias – medo em combustão?

Desce o pássaro

toca o chão

toma posse da pista asfaltoamor

 

Há o impacto da espera

permanência na esfera

          nos espaços

          nos ritmos de aço

          de astronave novopartindo

                                            chegando

                                            pairando

                                                        sem aportar

                                                                alterar

                                                              alunizar

 

Propulsão que te

                     (nos)

          perde em

          plataformas do nada.

 

(p. 97)

 

 

 

Do livro Corpo a Corpo (1978):

 

 

PROCISSÃO

 

Quando vem a procissão

no seu passo de perdão,

 

Alcaide, comendador

dominam o povo e andor

 

Cada grupo de irmandade

empunhando uma verdade:

 

A das Filhas-de-Maria

virgindade em romaria

 

Do SS. Sacramento

vermelha de emproamento

 

Do Senhor Jesus dos Passos

roxo em santos e devassos

 

Irmãs da Ordem Terceira

terço em mãos de camareiras

 

Os meninos da Cruzada

fome na barriga inchada

 

A Banda da Prefeitura

solo e soldo de amargura

 

Estandartes, confrarias

escondem velhacarias

 

O Santo vai carregado

pelos donos do mercado

 

E o povo segue inocente

descalço, nu, paciente:

 

– A compacta multidão

carente de Deus e pão.

 

(p. 51-52)

 

 

CAIEIRAS

 

Memórias há (vão e vêm)

das queimadas de caieiras:

a vida deslembra a gente

da vida que não se tem.

Fumaça assobe na frente

labareda vem depois.

Tijolo e telha cobrindo

a querência de nós dois.

 

Viola bem assentada

no florir dos cajueiros,

alpercatas batucando

o chão do chão do barreiro,

as mulatas ressurgindo

com seus dengues noveneiros,

as comadres se benzendo

frente ao santo milagreiro.

 

Aluás somem dos potes,

fogem em risos de tropeiros,

nas prendas dos namorados,

no aboio dos vaqueiros,

na presença do Senhor

da Casa-Grande – o festeiro,

no fogaral projetando

seu calor pelo terreiro.

 

Caieiras milavoengas,

tijolos: encantação

de caminhos não batidos,

de telha embicada vã,

dos pedregais dos açudes

(sem água), de solidão:

o tempo resumiu tudo

em vida-palavra-chã.

 

(p. 57-58)

 

 

 

Do livro A Herança (1984):

 

 

CHICO DOIDO

 

a José Bezerra Gomes, em memória

 

Chico Doido, doido e Chico

cavaleiro de Roldão,

de dia catando esmolas;

 

de noite: fiel seguidor

da fantástica milícia

do “Padim Frei Damião”.

 

As baladeiras nos bolsos

do dólmã sem forma e cor.

A espingarda (brinquedo),

 

no velho saco-de-estopa.

No roto chapéu-de-massa,

casa e abrigo. Na canção

 

tirada no realejo

de sopro, fabulação

de arcanjo. Da rustiquez

 

do capote inseparável,

o reaquecer nas sessões,

nos catarros, nas insônias.

 

No cinturão de soldado

ajaezado nos quadris,

imaginário punhal.

 

Na curva da orelha, as pontas:

piúbas secas, entrepalhas,

cuspe de fumo em chão, no ar.

 

No fiapo da fita fosca

do deslavado chapéu,

marca de outra devoção:

 

Relíquia milmuito amada

na fome, na dor, na fé

– “meu Padim Ciço Romão”.

 

Sem tantos dentes sãos: sujos;

unhas de luto tão garras,

punhos de tão frágeis; ferro.

 

Toda a alma era um passarinho

sorrindo no inconsciente

do insano Chico, do Doido

 

cavaleiro de Roldão

na luta por um cruzado

para lamparina e gás.

 

p. 276-277 

 

 

_____________

MAMEDE, Zila. NAVEGOS / A HERANÇA. EDUFRN – Editora da UFRN. Natal (RN), 2003.



Veja também:

https://antoniofabiano.blogspot.com/2014/10/selecao-de-poemas-de-zila-mamede.html