terça-feira, 29 de dezembro de 2015

AUTORES & LIVROS

Nhesu Ha
Nhesu, tendotá Guarani, oñorãiróva pe i hente, hekó
ha ijyvy rehe hápe, petei tenondeté ojokó vaekue pytã kuera pe
pe ymã XVII Sa pe, ko ágã pea Ojapova kuera rendá - RS
_______________

Autores & Livros
Inês Hoffmann e Nelson Hoffmann

Antonio Fabiano é uma revelação. Poética. Para nós. Recebemos Cancioneiro da terra, poemas. Lemos, guardamos, tornamos a ler. Pouco depois, ainda degustando o livro, recebemos Nas pontas dos pés, novos poemas. Este com o aval de Ferreira Gullar. Da leitura de ambos, ficamos com uma estranha inquietude de ligação Terra-Céu, num mundo estranho de calcinação e sofrimento. Até William Blake, com seu The marriage of heaven and hell, nos passou pela cabeça. Antonio Fabiano é poeta de essência, o acidente é invólucro. Atente-se, de verdade, para esse nome. Quem tiver um mínimo de chance de ler algum poema dele, não perca a chance, leia, medite, releia.

Nhesu Ha / O Nheçuano

Ano 6 - Número 27 - Roque Golzales, RS - Agosto/Setembro 2015  

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

BURILADA LIRA

"Da poesia de Antonio Fabiano, dedilhei versos esparsos. E me parece, pelo que espreitei, poeta senhor do ofício, de uma talhada, burilada lira. Ou melhor, de uma “lira luminar de três mil sóis” [no poema “Lira e toada”]. Que coisa bela!"
Dércio Braúna
Jornal O Mossoroense
22 de Fevereiro de 2015

terça-feira, 17 de novembro de 2015

MANUSCRITADO...


Fac-símile publicado na revista da Academia Brasileira de Letras.
Revista Brasileira - Fase VIII - Julho-Agosto-Setembro 2015 - Ano IV - Nº 84 


O CORPO

O corpo nasce
E se expande
Em sua natureza física
E psíquica.
Pelas ruas de suas veias
Trafegam carros de sangue.
Nos pés põe meias.
O corpo ama
E brinca de se esconder.
Veste-se de beleza
E despe-se
Com igual destreza.
Finge que é eterno
– e talvez seja.
Deitado
Dorme e sonha
O que deseja. 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O GADO RUMINA... O VAQUEIRO RUMINA...

ABOIO

Na hora crepuscular
do retorno,
quando o tangedor
nos encaminha
para o resguardo
de mais uma noite
que se avizinha,
seu aboio plangente
nos conduz numa espécie
de levitação.

E ao identificarmos
nosso nome
pronunciado na
melódica e arrastada
condução,
somos tomados
por um sentimento
que transpõe
a estremeção.


CONTRASTE

Festa no alpendre
dança e alegria
colóquio e cantoria.

Bebidas, aluares e refrescos,
leitãozinho e frango assados.

Em meio a tanta algaravia,
olho para o estábulo
e tudo é calmaria...


David de Medeiros Leite
In: RUMINAR (2015)
Sarau das Letras Editora Ltda.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Olívia e o Oceano | Wescley J Gama | Campos Grandes Reunidos



Clipe feito com trecho do filme "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Composição: Wescley J. Gama e Iara Maria Carvalho. Músicos: Alan Kleiber (bateria); Tiago Felipe (guitarra solo); Wescley (violão de aço e voz); Márcio Pinheiro (baixo); Saulo (teclados, guitarra Lap Steel). Disco "Campos Grandes Reunidos" (2016).

Olívia e o oceano
ao seu sono fluvial retorna
uma sereia desativada
para peixes e homens

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

SARAIVADA: poesia de Iara Maria Carvalho

Capa: João Antônio de Medeiros Neto

Quem resistirá à sedução, ao canto e encanto desta poesia de Iara Maria Carvalho? A mão que a escreve é resoluta. Ou, talvez, devamos dizer: a voz que aí canta sabe o que canta e como cantar. Iara, esta pessoa linda, encanta pela afinação de sua lírica; seduz, porque toda poesia verdadeira traz em seu bojo uma irresistível sedução. Que voem os mundos, a beleza triunfa nesta obra, ainda quando o poema é dor e dói até transfigurar! Eis uma mulher desfeita em versos, a brindar-nos com seu timbre afiado, a fazer vibrar as cordas de seu poderoso instrumento com o que há de melhor. Afinadíssima está Iara. Erótica, selvática, santa... Não é apenas a “ursa bipolar” que aí urra, é uma mulher infinita, ou todas as mulheres que cabem dentro de uma só e revela-se mistério, para nosso enlevo e perplexidade. É a graça de Maria, a cultuada milenar teimosia do carvalho, o que espoca nestes versos. Ninguém mais que Iara merece o nome que tem, do começo ao fim. Parece-me ser este o seu mais belo livro, de todas as coisas inéditas e publicadas que dela eu li, em quase duas décadas de amizade e interlocução literária.

Antonio Fabiano 
[texto publicado no livro]


URSA BIPOLAR

já fui mais intensa
mais humana
nem saudade tenho de ser aquela outra
que pulula nas lembranças.

– hiberno porque ouso –
nem todos entendem a beleza de ocultar-se
e saber-se desaparecida
entre os moídos do dia
e as coisas miúdas das gentes.

um dia,
tive um sonho de escrever,
mas os oceanos me roubaram o ócio e o desejo
e, mesmo que meus ainda fossem,
eu só estaria viva pra contar
que está vazia metade do meu coração
e, a metade cheia que dizem me caber,
desconheço:

embora, mesmo sem querer,
procure.

Iara Maria Carvalho
Saraivada, Sarau das Letras, 2015.



Foto Divulgação


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

MONTE FUJI 富士山

Capa © 2015 Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil


MONTE FUJI  富士山 

Vou a Fuji-san
Mas então detenho o passo.
Fuji-san vem ao meu encontro
Por sobre as águas do lago Kawaguchi.
Eu não me movo
Nem ele se move.
Estamos sentados
Sentados como flor de lótus
A olhar um para o outro.
Fuji-san branco e azul
Em seu quimono de festa
Me conta um segredo antigo.
Flutuamos no silêncio.
Quantas flores de cerejeira
Eu levaria a Fuji-san!

Antonio Fabiano
アントニオファビア

BIBLIOGRAFIA: Revista Brasil Nikkei Bungaku, nº 50. Edição bilíngue: português/japonês. São Paulo: Associação Cultural e Literária Nikkei Bungaku do Brasil, 2015, p. 06.

NOTAS (não presentes à edição):

Fuji-san é como em japonês podemos nos referir ao Monte Fuji.
Kawaguchi é um dos Cinco Lagos de Fuji, ao redor da vertente norte do monte.
Flor de lótus no oriente significa pureza espiritual; sentar-se na posição que recebe este nome indica meditação. Não se pode ignorar, todavia, que um dos nomes em desuso e de origem poética, utilizado para referir-se ao Fuji, é Pico de lótus.
As cores branca e azul que no poema vestem Fuji-san são a neve e o céu que o adornam. A ideia de transitoriedade e estabilidade, esta paradoxal oscilação, perpassa todo o poema. É transitório ou possui caráter de movimento: vou, vem, olhar, branco (neve), festa, contar, flutuar etc. Sugere estabilização: detenho o passo, não me movo, não se move, sentados, azul (límpido céu), segredo antigo, silêncio etc. As cores citadas têm forte conotação na cultura tradicional japonesa. A cor branca possui desde a antiguidade uma natureza sagrada e auspiciosa, dentre outras coisas é vista como abençoada, símbolo de pureza. O azul, além de pureza e limpidez, traduz estabilidade e calma, lembra não apenas o céu, como no poema, mas, consequentemente, o Mar do Japão, que quase não tem ondas, e o Oceano Pacífico.
A flor de cerejeira simboliza, dentre outras coisas: amor, felicidade, renovação, esperança. É a flor nacional do Japão. A floração das cerejeiras caracteriza o fim do inverno e o começo da primavera. Há festas no Japão para a contemplação deste espetáculo da natureza: hanami. A flor de cerejeira foi também apreciada pelos samurais e associada ao seu código, o bushido; ligava-se a sua existência efêmera à fugacidade da vida e ao lema dos antigos guerreiros japoneses, de viver o presente, de modo intenso e com absoluta coragem.
Eu levaria... Ao término do poema, o poeta decide não escalar o Monte Fuji. Isto se deduz pelo tempo verbal do último verso. Fuji-san, em seu encanto supremo, foi considerado belo e sagrado demais para que ele o pisasse. 


Capa Divulgação

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

CONVIVÊNCIA CRÍTICA - Hildeberto Barbosa Filho

Foto Divulgação

CONVIVÊNCIA CRÍTICA
Hildeberto Barbosa Filho [*]
De olho na estante (7)

Segundo Ferreira Gullar, “Nas pontas dos pés” (Mossoró: Sarau das Letras, 2015), de Antonio Fabiano, possui “linguagem fluente, sem ênfase”, alçando-se, portanto, “acima da banalidade da vida”. Antonio Carlos Secchin, por sua vez, em breve texto de apresentação, releva o tom recatado e delicado de sua dicção lírica, “despojada de toda pompa, e, por isso mesmo, cúmplice das pequenas maravilhas de que se tece o cotidiano”.
Temos, assim, ressaltados pelos poetas/críticos elementos de forma e fundo peculiares à poética desse paraibano de Patos, que cresceu e viveu em Cerro Corá (RN) até 2004, ano em que ingressou na Ordem do Carmelo Descalço.
À sutileza e à limpidez da linguagem corresponde uma temática voltada para as experiências do dia a dia, aquilo que poderíamos denominar de o complexo da “vida simples”, para lembrar uma expressão de Jurandy Moura, transfigurado, no entanto, pelo poder das palavras, em suas possibilidades imagéticas, rítmicas e ideativas.
Frei Antonio Fabiano não teme o apelo silencioso, mas urgente, das coisas comuns e das circunstâncias banais que o circundam no plano existencial, para, com os utensílios idiomáticos, utilizados com parcimônia e sabedoria poéticas, transcender o imediatismo pragmático das vivências que a realidade nos impõe, desvelando seus aspectos essenciais e imperceptíveis.
Em “O bailarino”, diz que “voava / Por sobre a copa das árvores / Enchia de nada a noite”; em “A luz bruxuleante”, acerca-se de sua “nudez / Tangida pelo dedo de um demônio”, assegurando, mais à frente do poema, que “Por entre bicicletas / Moinhos e tímidos sorrisos / Existimos”; em “Grão milagre”, descobre que “não se pode interromper / Com as mãos a dança de um rio... / A gente é e para isso nasce. / O pulso às vezes dói mas é sublime e /  mesmo que eu não quisesse – / Morava e ainda mora e há de morar / Nas veias como em ostra o grão milagre!...”.
Motivos como a casa, o pai, a infância, o corpo, a poesia, o palhaço, a velhice, entre tantos outros, são contemplados pelo olhar lírico desse poeta que, como poucos, sabe unir a dimensão lúdica do texto (ver, sobretudo, “Poema nuvem”, à página 31) a seu viés reflexivo, onde, em particular, impõe-se a força do pensamento poético. Um poema como “Estridência” ilustra bem o que quero dizer. Vejamos: “Há dias de sagrado ócio / Em que a vontade é de / Não fazer mais nada // Só beber a estridência de estar aqui / Como quem bebe o canto / De cigarras e grilos // Brindar sua canção / Às vezes tão incômoda / Como a vida // Esta vidinha / Que não trocamos por nenhuma / Das eternidades”.
O mesmo se pode afirmar de “Isto não é um haicai”, em seu recorte autoirônico: “Um dia não haverá / Lembrança disto que fomos / (Por mais belos que sejamos)”. 
Além dessa coletânea, o autor publicou, em 2012, “Sazonadas” e “Girassóis noturnos”, e, em 2014,”Cancioneiro da terra”. Sua poesia tem sido reconhecida, em seu valor intrínseco, por professores e poetas, como Maria Lúcia Dal Farra e Paulo de Tarso Correia de Melo.

***

[*] – Hildeberto Barbosa Filho é professor universitário, escritor, crítico literário, poeta e jornalista. Ocupa a Cadeira nº 06 da ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS. 


Bibliografia atualizada deste artigo: Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Nº 45. Natal, outubro-dezembro de 2015 (páginas 14-15).

terça-feira, 21 de julho de 2015

NOS BICOS DOS PÉS por António Salvado


NOS BICOS DOS PÉS [*] se viabiliza um título de livro, substancia, por outro lado, toda uma ‘arte poética’ materializada, nos seus enunciados, ao longo dos textos que o formam. Mas mais ainda: a... ‘posição corporal’, sugerida pela expressão, acentua propósito, intenção, que o poeta estratifica nos seus versos – visionar o mais além, atmosferas longínquas ou próximas, horizontes nítidos e palpáveis ou desvanecidos: ao alcance da ‘vista interior’. Aliás, nesse propósito se inscreve também a consciência do ‘ilimitado’ que é tecer um poema. E que poema? “Um poema que tivesse toda a poesia do mundo”, mesmo que esse poema fosse afinal sinal de aniquilamento: “o poema me consome. Mija no poeta”.
“Vestido de lua e vento”, e eis o poeta-criador a aclarar, pela palavra, o seu itinerário de vivências e de experiências, guiado por uma “luz (embora) bruxuleante” mas que poderá iluminar a sua solidão: “um ser estranho a mim / é o que sou”. Curiosa duplicidade: porque se “escrever doi”, a firmeza de uma vontade perante o acto de escrever (de comunicar) articula-se amplamente como força de determinado (e pessoal) destino – esse de ser poeta.
E daí, então que os próprios sonhos familiares (“papai queria que eu fosse Doutor / me fiz poeta”; que as ‘realezas’ em vivências da infância; que o “ser-se palhaço” no percurso do quotidiano; que a atenção a pertinentes situações sociais (“o meu Brasil é lindo”, mas é lugar de corrupção; que este plurívoco registo de afloramentos se direccione, enfim, para uma certeza redentora: “É santa toda obra de amor”. E o “galo canta na noite”, como no admirável hino de Prudência.

António Salvado
Castelo Branco
Portugal
Julho de 2015


[*] Tradução em Portugal de NAS PONTAS DOS PÉS
O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001) regista em duas formas: «em/nos bicos dos pés» (assim como o Dicionário Estrutural Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Porto, Lello & Irmão, de Énio Ramalho) e «em bicos de pés», significando «sem assentar os calcanhares no chão, apoiando-se nos dedos, na ponta do pé», «sem ruído, sem que se ouçam os passos».

ANTÓNIO SALVADO – poeta e escritor português
Natural de Castelo Branco, nasceu em 20 de fevereiro de 1936. Licenciou-se em Filologia Românica na Universidade de Lisboa. Em Coimbra e em Paris frequentou outros cursos superiores. Além de museólogo e de poeta, tem-se dedicado a outras tarefas, tais como tradução, ensaio, ensino e direção de publicações. Está traduzido para o francês, inglês, italiano e castelhano. Foi premiado várias vezes em seu país e no exterior. Em 1980 ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia de Personalidade Cultural, da União Brasileira de Escritores. Em 1986 foi galardoado com a Medalha de Mérito da Universidade Pontifícia de Salamanca. Em 06 de Fevereiro de 2010 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Santiago da Espada. Autor de uma extensa e respeitada obra literária, sobretudo poética, seu nome figura no panteão das grandes letras ibéricas e é um dos poetas mais originais da contemporaneidade. 

* * *



Afirma AUGUSTO PAIVA, artista brasileiro responsável pelo projeto gráfico e capa do livro:
“(...) estive observando a parte tipográfica da capa.
Numa observação semiótica, fiz duas associações interpretativas.
1 - NA DOS (NADAR, VIAJAR COM A FORÇA DOS BRAÇOS) por conta da uniformidade da cor rósea;
2 - PONTAS PÉS ([PONTAPÉS], RISPIDEZ, RUDEZA OU UM DESPERTAR) do padrão preto [das letras sobrepostas].
Eu pretendi [na capa] expor razoalidade interativa entre esses dois vértices.”


sábado, 4 de julho de 2015

quinta-feira, 2 de julho de 2015

CEREJEIRA FLORIDA

quantas memórias
me trazem à mente
cerejeiras em flor
Matsuo Bashô (1644-1694)





  Fotografias de Antonio Fabiano

quinta-feira, 4 de junho de 2015

NAS VEIAS COMO EM OSTRA O GRÃO MILAGRE...

by Norman Rockwell 


TRANSGRESSÕES

Papai queria que eu fosse Doutor.
Me fiz poeta...
Foi tão constrangedor!
Mas disfarçaram.

Depois pediram um neto.
Eu disse: Padre.
Mamãe levou três dias só chorando
E quase um ano pra se recompor.

A minha vida foi a um só tempo
Pequena e grande
Em suas transgressões...

O que direi nesta altura
Aos que pedirem conta da minh’alma?

Antonio Fabiano
Nas Pontas dos Pés, Sarau das Letras, 2015
________________
Seleção de Emanuel 

terça-feira, 19 de maio de 2015

SELEÇÃO DE POEMAS de Antonio Fabiano


O BAILARINO

Com as pontas dos pés
O bailarino tocava as copas das árvores.
O bailarino girava
Vestido de lua e vento
Sob o céu noturno
De milhões de olhos acesos.
Deslizava como dedos
Ao piano
Em sonata de Chopin.
O bailarino bailava
Sob a luz
Da esbugalhada lua
Sob o riso
De um asteroide
– risco –
Astros vivos e morrentes
Lume luz.
Vestido de desalento
O bailarino voava
Por sobre as copas das árvores
Enchia de nada a noite
Cortava o espaço dormente...
E a sua solidão
Sabida só pela boca
Tangida só pelas cordas
De um trágico anfitrião
Desafinava no tempo
Caía em folhas ao vento
Por sob as copas das árvores
Ainda que fora disso
Muito acima de seus pés
Este hábil bailarino
Bailasse mais que a soberba
Roda gigante da vida
Que roda e gira possante
Na vetusta e estonteante
Velocidade da luz.


A LUZ BRUXULEANTE

A luz bruxuleante dança
Dentro do meu peito
Enquanto arde e queima
Minha nudez
Tangida pelo dedo de um demônio.

Baila a chama
Bêbada e corcunda
Dentro de mim e neste quarto
Em que estou dentro
– Ó palco de humanos desejos! –
Onde sinistras sombras movem-se
A dançar
Tomadas pela mão da luz.

Com dedos de carícia vem o outono
Todas as folhas caem
Uma a uma...
Dançam com o vento
Em infinitos tons de amarelo
As amarelas bailarinas.

Por entre bicicletas
Moinhos e tímidos sorrisos
Existimos.
É de outono a vida
Que chora sua beleza
Rara e austera.

Só um medo me exaspera:
O lago que vai congelar
O frio que – se estou sozinho – apaga
A luz embriagada
Que dentro do meu peito treme
Enquanto arde e queima
Minha nudez
Tangida pelo dedo de um demônio.

Despe-se a árvore de ferro.
Não a toca vento algum
Como às páginas das árvores de Handel.

Eu danço com as folhas
Estou feliz de uma felicidade que espera
De uma felicidade que se não é será.

O outono vem.
Que dentro dele venha o meu amor
Com seu fruto maduro e doce.

E assim arda e queime
No fogo efêmero da vida
Minha nudez
Tangida pelo dedo de um demônio.
  
Países Baixos, outono de 2013


TRANSGRESSÕES

Papai queria que eu fosse Doutor.
Me fiz poeta...
Foi tão constrangedor!
Mas disfarçaram.

Depois pediram um neto.
Eu disse: Padre.
Mamãe levou três dias só chorando
E quase um ano pra se recompor.

A minha vida foi a um só tempo
Pequena e grande
Em suas transgressões...

O que direi nesta altura
Aos que pedirem conta da minh’alma?


BALA

Não direi que o poema
Acordou ou adormeceu.
Ele ficou doce
Como a água de um rio
Ou como frutas sazonadas na estação.
Tão natural ao poema
Acontecer...
Como se o campo
Chorasse ou festejasse
A sorte da semente
E depois ela crescesse
Indiferentemente.
Um poeta não acerta sempre.
O poema quando acerta
Atinge o alvo como seta
Ou como bala de canhão.
É pura sorte que estes dois se encontrem – digo
O poema e seu poeta.
Coisa que não acontece tanto
Em tantas vidas
Nem tantas vezes
Sob a rota
Combalida
De uma vida.
É como bala vil
Perdida
Um poema que acerta
O peito ou o crânio do poeta
E vira fato de notícia
Ou de perícia.


O CORPO

O corpo nasce
E se expande
Em sua natureza física
E psíquica.
Pelas ruas de suas veias
Trafegam carros de sangue.
Nos pés põe meias.
O corpo ama
E brinca de se esconder.
Veste-se de beleza
E despe-se
Com igual destreza.
Finge que é eterno
– e talvez seja.
Deitado
Dorme e sonha
O que deseja. 


ZUMBIS

Depois da chuva
Vieram os zumbis.
Como esconder meu constrangimento
De abordar esse horror cinematográfico
Em poesia?
Eles vieram em bandos
Saídos da lama
Maltrapilhos e podres
A perambular sobre o que era cidade
E virou picadeiro de fantasmas.
Alguns milhões de reais custou
Aos cofres públicos
O nascimento deste poema feio.
A verdade estava ali
Justa ou vingativa
A lembrar que
Os mortos voltam.


TUCUMÃ

No meu braço dorme a noite
Qual criança bem pequena
Aquecida em meu abraço
Puro aço.

Dorme a noite negra e tímida
Alheia a dor que sufoca
Surda à lâmina e aos pulsos
Pus e ácido.

Tucumã não se partiu?
Por que não parte esta dor?
Por que não desperta a noite
O amor?

Dos meus olhos assustados
Disparam sete cavalos
Têm crinas de fogo e vento
Morre o tempo.

O chão está encharcado
Do vermelho numinoso
Sangue espesso das estrelas
Derramado.

Tucumã não se partiu?
Por que não parte esta dor?
Por que não desperta a noite
O amor?


CONVERSA AFIADA
  Para Leonam

Se a navalha no peito
Dói mais que nos pulsos,
Não sei.
Sei que os seios
Não foram feitos para a lâmina,
Nem as mãos
Para o que de escarlate as quer tingir.
Palavras são aldeias.
Um tango em Buenos Aires me incendeia.
Só a solidão faz nevar dentro de mim.


O GALO

O galo canta na noite
Não porque cantou antes em algum poema
Mas porque quis cantar no meu quintal
E canta no mundo
Desde o início dos tempos
Passando pela negação de Pedro
Até chegar aqui.

O galo canta
E rasga a noite
Como eu rasgo o rascunho de um poema.

Frei Antônio comprou galinhas.
Um acontecimento banal
Como a vida às vezes quer ser.
Para o galo
Foi excepcional.
Ficou contente.
Até cantou mais vezes!
Metido a machão
Quis se exibir pras novas namoradas.

Ora (direis) ouvir o galo!...

Sobressaltado estou
Dentro da madrugada!

Abro a janela e pergunto
Contido e alucinado
Às gotas de rocio sobre o campo:

Vem da garganta
Do canto rouco do galo
O brilho da aurora feito espada?
Ou vem de mim
Que subverto a lógica banalíssima da vida
Em coisa de impossível só sonhada?

O canto do galo exorciza
Os últimos espíritos da noite e
Corta com o fio de ouro da alvorada
A cabeça das trevas na calçada.

Ave Maria cheia de graça...

A vida segue banalíssima
Para além do galinheiro e do quintal.
O galo tem suas penas e eu as minhas.
O galo tem o seu canto e eu também.
O galo não canta no meu poema.
Apenas canta no quintal.


SONHO PENDULAR

Quero Petrópolis em meu poema
Mas o que vem é Londres
E minha calma espedaçada em suas ruas.
Dorme a rainha de neve
Enquanto eu sonho estranho sonho pendular.
Minha irmã desperta em outro canto de Inglaterra
Diz qualquer coisa e sai
Vai passear...
Adeus, minha irmã!
A matemática é tão perfeita
Que até me dá vontade de chorar!
Dirijo em mão inversa
Enquanto ousadas são as serras de Petrópolis
Que vestidas como noivas
Não querem se casar...


CÃO DE ESTIMA


I

Com que cansaço chegarei
Ao meio deste século
Se chegar.

Com que tédio.

‘Mas era tão jovem e forte
Na virada do milênio’.

Tinha certezas
Que não reconheço mais
Na face do espelho –
Aquele estranho eu
Que eu não sou.

O tempo é crudelíssimo
Com os filhos de Adão.

Melhor é ter morrido jovem
Depois de fazer tudo que convinha.

‘Foi tão esbelto’ – dirão – e
‘Fez-se tapera o que
Na carne era mansão’.


II

O poeta só se eterniza no poema.
Fora dele envelhece e morre.

Morrer é sublime.
Envelhecer é bonito.
Eu sempre achei.

Melhor idade é eufemismo?

Melhor
Era não ter escrito nada
E ter vivido a vida possível
A aventura possível
O amor impossível
A alegria (moderada)
Quando impossível é não querer
Não desejar
Não amar
O que se ama.


III

O poeta virou uma fotografia.
Foto e grafia.

Saberão que ele foi tantos?

Alguém fecha o livro.
Cala o poeta
Dentro do livro.

Dentro do livro
Seu coração ainda pulsa
Mas as palavras ficaram cansadas
Caíram em desuso.

O livro ficou velho.
Só a emoção antiga
Porque demasiado humana
Voltará molhada
Como beijo apaixonado de amante.

Outra vez acontecerá a chuva
Da noite em que se escreveu o poema.
O poeta se levantará ressurreto.
No coração de alguém haverá riso e festa.
Haverá vinho e vida.
Haverá brinde e lágrima.
Haverá valsa e canto.
Haverá...


IV

Refeito
– não mais refém –
a quem direi
no ano dois mil e cem
o que vi e vivi
no começo deste que é apenas um
de meus dois séculos?
em que língua das tantas que falei
em que português direi
o que aconteceu
uma noite em Manaus
quando voltávamos de um jantar
e o carro da frente
displicente
mais que veloz
feroz
atropelou
um cão
– cãozinho –
e passou
passamos e
não (ninguém) paramos
e o pobre cão
– cãozinho –
ficou
por cerca ou mais
de cinquenta anos
agonizando
dentro de mim
para ser libertado
ainda que tardio
em Minas Gerais
na asa de um poema...
a quem direi?


V

Esperaria o meio deste século
E até sonharia
Seu excedente fim
Se não morresse jovem
Se não morresse
Tantas vezes
Como um cão de estima
Na rua abandonado
Atropelado pela vida.

Oh ter sido
Para sempre
Aquele
O de outrora
A parar com a mão o tempo
No espelho
Onde hoje vejo e não me vejo

Claro e lúcido.


ESTAÇÃO DA LUZ

Aguda é a chuva
Que cai sobre a cidade e a Estação da Luz.
Vazio o pátio é palco
Para os pingos que na poça
Tamborilam e dançam doidos
Alucinada dança tribal.
Agulhas pluviais tecem infinitas
Roupa nova para o mendigo.
Gotas brilham no asfalto
(Como atrizes em cena
Sob os holofotes)
No segundo em que atravessam os faróis.


A CASA

A casa respira
A casa pulsa
Como um coração...
Está viva!
Suas paredes falam
Sentem.
Pelas artérias
Da casa
Corre um fluido
Mais precioso
Que sangue
Na veia de homem.
Bomba a casa
Em seu cansaço de
Existir tão viva
Em seu desejo de
Explosão.
Como um animal gigante
Respira
Fundo
Respira...
Desperta que está
Nesta hora da noite
Em que todos
Dormem.
Palpita
A casa
Como um relógio
Como se fantasmas
Ali vivessem. Mas
Fantasmas não há
Nem dentro nem fora.
Há apenas algo
Em suas paredes cimentadas
A mover-se
– indiscreto enigma –
Supondo-se
(como os que dentro da casa dormem)
Qualquer coisa mais que líquida ou onírica:
Delirante.
Lá fora
Sente a casa
– sem sentir –
O vento a bater
E a rir...
Não vai ruir
Edificada que está sobre a rocha
Enquanto folhas caem
E o tempo passa.
A casa
Guarda os que respiram
Dentro de seu pulmão imaginário
Dentro de seu pulmão
Que também respira
Audível
Mais friamente sonoro
Mais terrivelmente agonizante
Que um doente terminal.
Por invisível caminho
Corre dentro da casa
Um rio secreto
E sua fala oblíqua...
Segue a nau plantada
– noite afora –
Levando
Corpos dormentes
E mentes
Igualmente adormecidas
Blindadas de calefação
E carinho
De pesadelo e sonho
De toda a contradição da vida.


GATOS NO CIO

Os gatos no cio
Fazem barulho no telhado.
Não. Fazem barulho
Debaixo da janela...
Fica melhor dizer
Que é no telhado.
Os gatos no telhado
Fazem barulho no cio.
Pardos a noite engole-os um a um...
Grande é o silêncio que se segue.


NAVALHA

Não sabem que o amor fala por si?
Que os olhos dos que amam são bem mais
Acesos, eloquentes e jamais
Se cansam de brilhar e de exibirem-se?

São como preciosos diamantes
Ainda que na dança perigosa
Navalha corte o rosto de quem goza
Amor delicioso de amantes!

Direis que nunca soube o que é amar
Quem tendo olhos deixa-os fechados
Para os prazeres desta vida e mar

De rosas que ao primeiro amor nos vêm!
Pois o amor na vida põe seus fados
Mas têm mais vida aqueles que o têm!


FABIANO, Antonio. NAS PONTAS DOS PÉS. Mossoró-RN: Sarau das Letras Editora, 2015.