sexta-feira, 22 de março de 2013

O poema SERPENTE EMPLUMADA de Antonio Fabiano




SERPENTE EMPLUMADA
(Para Emanuel)

Pórtico. Pórtico.

Solidão.

Sibilava a noite
Entre partos de estrelas
Quando a flor do poema
Com escamas e plumas
Se abriu.

Porto.

Estrela aqui
É muito mais que
Bailarina
– menina
Um corpo celeste
Massa luminosa
A boiar no espaço
Facho de luz
Clarão da ribalta
É muito mais!

É mais até
Que mulher do cinema
Garota de Ipanema
Chilrear de pássaro
Cantiga de mãe...

Mas
Grama azul é pouco
Tanto quanto nuvens
Para dizer
Sobre o que rastejava
A deidade.

Ofídia verdade.

Quem decifrará o grão poema?
Grão de areia
Das praias do mar...
Poeira de aquáticas estrelas...
Gota de orvalho transportada
Da rosa
À imensidão do oceano

Pacífico

– o maior de todos os oceanos
do planeta Terra.

Quem?

Terra.
Pupila azul
Que gira gira
Como as crianças quando brincam
Ou místicos sufis em danças extáticas
Negras baianas de São Salvador
Capoeira

Gira

Como girassóis do dia
Que mirando o sol
Avessos a tudo que é estático
Giram

Gira

Como girassóis da noite
Que mirando a lua
Se enamoram e
Giram

Gira

Como em verso lusitano
Este outrora dito comboio de cordas
Que se chama coração

Gira

Como os ponteiros de um relógio
De pulso ou catedral

Como o pião da infância

Como um carrossel de sonhos

Gira

Como o gargalo da sábia coruja.

É possível que ninguém saiba dizer
De tão alado ser
A luminosidade
O fulgor que sai da brecha
De um de seus olhos
Frestas de luz
Festa
Incendida
Em feéricas ilusões.

Amor...
Palavra até então adormecida no poema.

Mas por que dizer ‘poema’ tantas vezes?
Para avultá-lo?
Agigantá-lo aos olhos do interlocutor?

Pedra.
Lugar em que outrora
Falavam os deuses.
Pedra.
Dura pedra.
Ingrata
Pedra
Pedra
Grata.
Pedra.
Broca.
Pedra.
E a desfaçatez de um poema
(Uivo)
Que se contorce
Para nascer.

Dobra-se a rocha.
Fecha-se a porta.
O que ficou ficou.
O que se sabe
É já antigo
Apenas lembra-se
Como algo novo.
Mas algo novo há
No estar a saber
Do que ainda não se sabe
Do que ainda não se disse
Da pedra.

Penetra o poema
Como uma nau.
Negra pantera.
Amor é coisa abissal
Mais que espanto!
É perder todas as palavras
E não saber dizer
De A a Z
O que se sente
E entrementes sentir
Definitivamente
(Que se tentar dizer não pudesse
Morreria).

Conversa comprida é o amor!

Constelação.

Edifício difícil
De escalar...

Depois calar
O segredo
Gritado
Pelas imensidões cósmicas
Do mar do céu
Admirado por Kant
(– ah, o céu estrelado sobre mim
e a lei moral em mim!...)
Imensidão escura
De luz
Que perturbava o coração
A inteligência
De Blaise Pascal
(– o silêncio eternal
destes espaços infinitos!...)
E de milhares de outros gênios
Apagados pelo tempo
Como as noites que ninguém viu.

Ó sabedoria dos pequenos
Maior que a dos filósofos
A olhar o céu
Silentes
E não dizer nada
Rendidos à beleza sem nome.

Céu degredo.
Céu
A duelar com o céu
Da alma dos homens
Que se dizem degredados
Filhos de Eva
Adão.

Céu
Encharcado de cintilações
E soluços
Lágrimas
Acesas
Nuvens
Que duram bem menos

Ilha.

Noite
Talvez
Noite estrelada
Como em Van Gogh
Noite maior a se esboçar
– ainda maior
A partir de uma noite qualquer
De 1889
Em um asilo do sul da França
E outra noite
E outra noite

Noite
Que poderia ser noite
Em qualquer parte do mundo
Em qualquer abrigo
Em qualquer loucura
Hospício
Ou coração humano

Mas que foi noite exatamente lá
E é noite aqui
Agora
Enquanto parte o trem
E passa
Cortando a noite
(Fumaça...)
Partindo a noite
Em setecentas outras noites...

Noite
Enquanto a onda do som
– inesperada visita –
Como ladrão ou amante
Avança pelo muro
Bate na minha janela
Faz tremer meu dia
Escuro.

Noite
Como em 05 de julho de 1979
Ou noite
Como em 11 de fevereiro de 1989
Em algum lugar
Do mundo ou sudeste
Do Brasil
Em alguma parte
Do hemisfério sul
De qualquer ocaso
Na América Latina
– noite.

Noite
Cem anos depois daquela outra noite
Em que se pintou
A Noite Estrelada
E que todas as noites de depois
Sentiriam inveja
Por não ser ela
Por não ser dela
Ao menos uma estrela ou
A mais humilde e pequena
Casa da aldeia
Cipreste verde e ardente
Sarça
O azul da tela
A treva
Uma orelha partida de artista.

Noite maior
Moinhos
E um sentimento
Que vai para além de
Exílios provençais...
Vai...
Arrabaldes da galáxia!

Noite a escorrer dos trópicos.
Noite mais tênue e fina
Que a linha do Equador.
Noite na China.
Noite até em Xanadu.

Noite.

Noite em Tula.

Alta...
Alta...
Muito alta!

Como se se pudesse ver o mundo de cima
Com todas as luzes de todas as casas
De todas as esperanças
Acesas.

Ainda mais alta...

Noite.

Cruzeiro do Sul a luzir
Gigante de braços para o amplexo abertos
Gigante
Como o Cristo Redentor
Do Rio de Janeiro
Impassível
Em face da violência
Em face da impunidade
Da corrupção do meu país
De políticos
De milhares
De cristãos indiferentes
Como o Redentor de pedra e maravilha
Indiferente ou
Talvez – quem sabe –
De algum misterioso modo
A redimir o mundo
A redimir-nos da loucura
Dos hospitais e hospícios
Das favelas
Das intermináveis filas do SUS
Da miséria
Dos pobres e mendigos
Dos moradores de rua
Das crianças pedintes
Em todos os semáforos do mundo
Dos meninos e meninas
Abusados na infância
Da fome
Em minha nação de ricos
Da dor de existir pequeno
Em face de um céu tão grande
E surdo.

É carnaval?

Quando desceu a noite
Cobrindo os mundos
Para além de nossa terra e mar antigo
Com três véus de sombra
E sedução
Surgiu a lua
Luna...

Os filhos da grande mãe se ajuntaram
Para acender o fogo
E ascender graças.

Sete cavalos em pastos
... a pastar.

Então o tempo para.
A senhora dona lua
Volta
– redonda
Atravessa cheia o orbe
Desce
Vai passear
Pela lagoa da Pampulha.

(A noite mais linda
É a que se pode ver
Em plenilúnios
Da lagoa da Pampulha).

Depois
Sopra nos montes
O vento nômade
Com cheiro verde de mato
E mistério...

Ah! vem dos longes inavidos!...
Vem duma terra estranha!
Oigalê!...

Sibila o vento...
A minha alma se levanta já cigana
e dança!
A minha alma indômita
– felina –
Ergue-se
Inda mais singular:
Universal.

O vento varreu
Todas as folhas secas
Do meu quintal
Mais que o vento que beija
A bandeira nacional
Na Praça dos Três Poderes
Em Brasília
Mais que o vento da crítica
Literária do meu país
Mais que qualquer coisa
Menos intangível
Que o brilho
Desta grande noite.

Escuto
Com o coração de poeta
Que cresceu dentro de mim
A voz destas paragens
O grito deste chão.

Acorda o tempo para esta lembrança...

Por um instante a humana tribo habita
Aquele chão
Aquele...
Finca na terra a estaca
Erguem-se as tendas!

Torna-se sedentária.

Nova bandeira é erguida...
Derribam-se as tendas.

Põe-se em fuga
Outra vez.

O pó da estrada fica
Para além

Parte disso é mistério.

Mas baila com o fogo a gente
A gente que é sombra e dança
A gente que é nômade e sonho
A gente que não sabe sono
A gente que é sopro e vida
A gente que é triste e samba.

O povo
Acolhe os dons da eleição.
Parte
Em duas partes
O deserto
O mundo.
Pisa
Chãos inteiros...
Pisa
A flor.
Faz perfume.
Alarga a tenda
A cada passo
E passa...

Dói o poema
Feito de calmaria e lucidez profunda...

A capacidade de tocar alguém
Não está só em quem toca
Mas ainda no poder daquele que é tocado.

Num dado momento
A consciência do meu povo se abrirá...
Dilatada
A alma da minha gente
Abarcará a luz
O calor e o saber profundo
De todas as coisas.

Porque vai sob os pés
Do povo
A alma que
Está na lama
Do barro que se pisa.
Por sob os pés
A cada passo
Nasce a esplêndida
Flor
(não veem?)
Que está na água
Branca e solitária:
A vitória-régia
A iaupê-jaçanã
A que no rio
Soberana reina
(Ó verde imenso!)
E de tão bela
De tão bela
Faz meu coração tremer.

Sim sob os pés descalços
Da minha raça
Se abrirão canteiros
De obras inauditas...
Bocas dirão “ah”
De miradas
Com surpresa se abrirão
Mais e verão
O jamais visto
Pelos olhos
E mirantes
Da nação.

Mitos
Construímos nós
Gente de efêmeros
E desamparados.

Sublime é não saber voltar
Quando em perder-se está a salvação.

Um fruto
Caiu verdinho
Da árvore.
Não amadureceu.
Permaneceu igual
Para sempre
No espaço
E no tempo
Do poema
(Já que muitas coisas
Acontecem
Dentro e fora
Do poema).
A média estação...

Todos os dias
Em pelos
De pernas e braços
Unhas
E células mortas
Vamo-nos aos poucos
Para o nada.

Isso é morrer?

Mas como pode caber
Num homem tão pequeno
Tanta poesia
Tanto sonho e desejo?

(Sonho)

Shangri-La
É coração de amigo...

Ó beatitude
Maravilhosa descoberta:
Todos os músicos
São deuses disfarçados!

Um canto
Quase inaudível
Veio da ave
Sem nome
Que viu na flor
O mel
Do seu delírio.
Um lírio?
Não tinha nome.
E a beijou?
Qual beija-flor.
Pois era a cor e
A própria flor
O mel
Do seu delírio.

Voou...

Ondula! Ondula
Serpente
De cauda prateada
De plumas
Enfeitada
Cabeça
Adornada
Como velhos índios chefes
Banidos do meu país de nus!

Ondula
Na floresta das almas
Ó ser
De confabulações
Antigas
Pente
De cabelos d’ouro
Do desejo
De uma passada inteira
Civilização
Adormecida!

Ondula!

Pausa.

O poema ficou calado.
O poema parou.
Mas é preciso acabá-lo
Juntar mais uma
Ou duas frases de efeito
E encerrá-lo.

Ou... deverá o poeta
Em seu cuidado
Implorar
Que ele aconteça
Inteiro e sem pejo
Sem pressa
Como e quando bem quiser...

Implorar
Com humildade e paciência
Que a poesia venha
Torrencial
(Como chuva milagrosa
Em terra árida
Fazendo explodir do nada cinzento
O verde fênix da caatinga)
Sobre o poema...

Que haja a torrente de Carit
E corvos venham e tragam
Pão e carne...

Que haja outras viúvas em Sarepta
E mais milagres de farinha e azeite
Inextinguíveis...

Que depois do “agora basta”
Se escute a voz que diz:
“Levanta-te! Come!”...

E que haja pão cozido
E cantil d’água
E combustível para mais quarenta dias
E quarenta noites
De jornada...

Pouco importa
Furacão
Tremor de terra
Chamas
Ou o que mais venha a incidir
Sobre rochedos
E colinas amestradas.

Que desça
Como desceu
Sobre o sacrifício de Elias
Um fogo do céu
E pela vida do Senhor
Por quem me consumo de zelo
Sejam outra vez degolados
Os quatrocentos e cinquenta
Profetas de Baal!

O poeta foi ao cume da montanha.
Pôs a cabeça entre os joelhos
E orou.

Tudo estava consumado.

Uma nuvenzinha
Apareceu no céu
Sobre o mar.
Escureceu.
Ouviu-se grande estrondo
Luz
E ventos.

A chuva caiu
Indizível.

A chuva
Caiu.

A chuva.

A...

Chove.

Chove na floresta.
Os bichos se escondem.

Chove
Chove

Na montanha
Chove
Quedas d’água
Chove
Sibila aquática a água
E ainda chove
Chove

Escorre a sabedoria
Caudalosa
O serpear dos rios
Por entre encostas
A timidez
(obscuridade)
Dos barrancos
O olhar miúdo
Das miúdas fontes
Aquele arisco emaranhado
De torrentes
Diluvianas poças
De ilusão.

Chove
E tudo chora
De gratidão
De gratidão e medo
De alegria e medo
De alegria
Por haver água
E ser de água marejada
A esfera azul
Que chora.

O silêncio
De quando Deus refez o mundo
Pelas águas
Atravessou a epopeia.
E no bater de asas
De uma pomba
(Como num piscar de olhos...)
Calou todas as mágoas
Levou tudo
Lavou tudo...

Tudo.

Ouviu-se por último
O ruído de uma leve brisa
(– leve... leve...)
E no tênue sussurro
O perguntar:
“Que aqui fazes?”

“Ardo”.

Depois disso o Senhor
Por quem meu ardente zelo
Arde e zela
Soprará
E da argila do poema
Haverá novo homem...
Sobre os ossos ressequidos
Do poema
Nova carne
E vida.

Deus não pedirá mais
Isaac em sacrifício
Nem sacrifício algum.

Descansaremos
Eu e Deus
Deus que viu que tudo era bom.

(FABIANO, Antonio. Girassóis Noturnos, Rio de Janeiro: Taba Cultural Editora, 2012, pp. 51-73.)