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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

MARIA LÚCIA DAL FARRA


Divulgação


SOBREVIDA


Matéria ardente que o fogo

arrebata para si

assim a mariposa.


Venho clamar por clemência:


por que deve fenecer

quem se acumula de luz?


Canto

(portanto)


às escuras.


Maria Lúcia Dal Farra


sábado, 5 de julho de 2025

INFÂNCIA - Daniel Faria

 



e jogava ao pião com Deus

enquanto minha mãe estendia roupa

e o meu pai mendigava pão


e minha alegria nesse tempo

era muito próxima da dos meninos

e de Deus que ganhava sempre


e não sei quem perdi primeiro:

           o pião ou Deus

apenas sei que Deus continua

a jogar com outros meninos


e que no Outono quando saio à praça

nos sentamos e falamos muito

do suave rodopiar das folhas


Daniel Faria

Oxálida, 1992


domingo, 22 de junho de 2025

DO INESGOTÁVEL


Daniel Faria


Observei-te sabendo já que eras um homem – a cabeça

De pelicano dobrado

O bico que te rasgava para fora

 

Adoeci como lâmpada que se funde

A coroa de espinhos sobre mim – a lembrança

 

Dobrei-me nas tuas asas

Nas chagas ainda quentes

 

No voo como gota de sangue no peito

Que vive. No coração

 

Que partes e distribuis com as mãos

 

 

*

 

 

Todas as minhas fontes vêm de ti

As nascentes

E amo-te com a constância do moribundo que respira

Já sem saber de que lado o visita a morte

 

Procuro a ligação entre ti e a luz muito 

                    [miudinha depois dos temporais

Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas

Desconheço o colar onde unes tudo

 

Procuro entender como é que moldas

Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão

Sei que és tu que me levantas

Que remendas o meu corpo cada dia

 

Em ti encontro a pulsação

Que rebenta – uma artéria como nunca

Tinha jorrado. Cratera onde durmo

Recluso, árvore à chuva

Em dificuldade extrema

De respiração

 

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço 

                                [os braços para fora

Como um pássaro entre um bando

De disparos

 

Tu moves as agulhas, tu unes de novo

As minhas asas à curva do céu

 

 

*

 

 

E desço à verdura das tuas mãos

Como as manadas que buscam as minas

 

Faltam-me apenas os pés feridos dos que

[peregrinam

Faltam-me no chão duro das promessas

Os joelhos

 

Queria tanto andar em redor, rodear-te,

                            [se soubesses como

Queria amar-te tanto

 

O que sei da unidade é a túnica

Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida

É o livro escrito por dentro e por fora

Silêncio escrito por dentro

Palavra escrita a toda a volta da história

 

O que sei do céu

É a mão com que sossegas os ventos

 

Desço à escritura como os veados aos salmos

 

 

FARIA, Daniel – POESIA – Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal por Assírio & Alvim. Porto Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.

 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

POESIA - Daniel Faria


Daniel Faria

 

Há muitos metros entre um animal que voa

E a escada que desço para me sentar no chão

Mas basta-me um quadrado de sossego

Para a distância absoluta

 

Está para além do que se vê a janela

[onde me debruço definitivo

Não é uma aparição

Nem se pode alcançar sem se ir em frente caindo

 

Só no fim da paisagem estou de pé

[como um para-quedista que desce

Suspenso como os santos num arroubo místico

Erguido como um anjo em suas asas

E sinto-me ser alto como um astro. Nuvem

Como se fosse um homem

Que levita

 

POESIA de Daniel Faria. Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal por Assírio & Alvim. Porto Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.


quinta-feira, 24 de abril de 2025

FADO


Sonhei que ‘stava morto... Ai que tristeza!

E tu me vinhas ver, em grande pranto...

Diziam-me, teus lábios, triste canto,

Enquanto eu – só – jazia na frieza.

 

Estranho luto, aquele, em teu burel!

No pobre esquife, a pálida aspereza

Da vida extinta, lânguida certeza

A esvaecer-se em face d’outro véu.

 

Amor... tu me choravas tanto e tanto,

Que os deuses, comovidos, de repente

Realizavam cândida proeza:

 

Ressuscitar ditoso... No entanto,

Fora melhor ‘star morto, brutalmente!

Pois não ‘stavas aqui... Ai que tristeza!

 

Antonio Fabiano


terça-feira, 4 de março de 2025

Affonso Romano de Sant'Anna (1937-2025)

 

Reprodução


DONA MORTE

 

Dona Morte

a Senhora está aprontando demais

na minha porta

– sem falar no estrago intempestivo o mês passado

devastando minha horta.

 

Como reverter tamanha intromissão?

 

Sei que tem lá seus misteres

sei que é tarde, já escurece.

Espere um pouco, Dona Morte

eu queria apenas

jogar só mais um pouco

com os três amigos que me restam.

 

Affonso Romano de Sant’Anna 

Sísifo desce a montanha, Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

 

domingo, 1 de dezembro de 2024

[MUSA OU DEUS]

A luz que me ilumina

nesta escura floresta de sentidos

é o sem sentido brilho

de uma tela...

Os meus dedos magros

mastigam teclas

pisam mundos

como quem pisasse nos astros distraída

se musa fosse ou Deus.

Antonio Fabiano

domingo, 27 de outubro de 2024

BEIJO ROUBADO

Se anda na chuva

quem se importa?

Já beijou na chuva

um beijo roubado –

a coisa mais pura!

A rua é um rio

de lama

que leva para o açude

lá onde o sol se põe

qual ovo

de galinha.

Antonio Fabiano

terça-feira, 30 de julho de 2024

PÔR DO SOL - Antonio Fabiano

O pôr do sol da capital mineira

é macio e escoa

como café passado no pano

bem à moda antiga.

Tem uma coisa que tem!

Nada de braçada este sol

sobre o triângulo

como se derramasse sem pena

tinta vermelha para todos os lados.

Perguntem mineiros do norte!

Respondam mineiros do sul!

Eu que agora sou do vale

expatriado desde a eternidade

de todas as capitais:

não pergunto nada

não respondo nada.

Olho o pôr do sol

com o coração das gerais.

Esta tarde é tão bonita

que eu queria guardá-la numa caixinha

para não esquecer nunca mais...

Súbito o barulho dos carros desaparece

os prédios encolhem

as palmeiras crescem

uma carroça atravessa a travessa

entra e desfila na praça

grassa e atropela um menino

que se levanta sorrindo

mais lindo do que quando caiu.

São milagres de Minas

e no horizonte vermelha ainda

o pôr do sol da capital.


Antonio Fabiano


sexta-feira, 31 de maio de 2024

GELEIRA


 

pixabay



A vida é escura e esquiva.

 

Um enxame de abelhas corta

meu pensamento

abre aos ponta pés a porta.

 

Meu coração está guardado

bateu

se gastou e escondeu.

 

A vida é fria.

 

Geleira de tão dura

se parte.

 

Eu digo palavras puras

como nas madrugadas

em que na rua alguém diz:

 

a vida é um penhasco

 

                        eu pulo.

 

Antonio Fabiano

terça-feira, 30 de abril de 2024

PLÁTANOS


Pixabay

 

Amo de amor sem cura

plátanos

 

vem a tarde sobre eles

de outono

 

folhas ficam de outra cor

além paleta

 

passeios se vestem

desse encanto

 

letras arcanas

mãos moucas de vento

 

no inverno

esqueletos nus ao infinito

 

amo

amo.

 

Antonio Fabiano


domingo, 10 de março de 2024

AMIGOS - Myriam Coeli


Os meus amigos que têm mais de 30 anos,

têm menos de trinta dinheiros.

Os que têm menos de 30 anos

não chegam a ter três dinheiros.

Eles enfrentam a poluição, a dor,

a fome e a esperança.

Navegam em ônibus, os braços

erguidos, apoiados em argolas

– pássaros que ensaiam o voo

que os levará à rotina onde manipulam

máquina, enchem papéis com letras e carimbos.

Meus amigos sabem que a vida não é fácil

embora se enjaulem em salas calafetadas

onde o ar se condensa.

Eles enfrentam todos os dias

o gigante do progresso para que

as suas famílias se alimentem,

se vistam, sorriam e falem em civismo.

Mas meus amigos são livres.

Não lhes prendem o ouro e a cobiça de todos os poderes.

Eles são ricos em seus mundos subjetivos.

E eu me visto de silêncio para escutá-los.

São os momentos mais puros de poesia

quando as suas verdades explodem como rosas

ou estrelas no céu.

Daqui saúdo os meus amigos

que não tendo trinta dinheiros

jamais me venderiam como se fossem Judas.

E mais aos que, tendo três dinheiros,

seus talentos sendo pobres de espírito,

alcançarão o reino dos céus.


Ave, Myriam (1984)


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

MYRIAM COELI


 
Myriam Coeli (1926-1982)


CANTO DE ESPERA PARA O PRIMOGÊNITO


Artífice, a mãe se completa moldando o filho de sua argila

– em seu invento ela se multiplica, ousada, para outro espaço. 

A suavidade de seu ventre improvisa ninho de rouxinóis 

de inesperados trinos e notas musicais

para o filho – pássaro cego – navegar nos corredores de sangue.

Com impossíveis cristais inventa canções e embalos

e torna alegre o pesado silêncio de suas entranhas.


Onde a semente germina e a seiva cresce, lentamente com a voz

– um lírio, talvez, uma espiga de dourado trigo, desabrochará.


CANTO DE ESPERA PARA O SEGUNDO FILHO


O filho cresce de antiga semente

e se agita em meu ser com libações de pássaro.

A argila que o inventa torna-o semelhante e lúcido dentro do tempo

que o completa e o reclama, integral e ousado.


O Sangue, o Gesto, a Palavra, a Humana Contingência

e essa argamassa de Poesia – minha herança –

espreitam de seus mistérios e se integram à ousada forma.


Bem-aventurada em meu afã de criar

eu me engrandeço de humildade de não merecer a Dádiva

e glorifico e exulto o Homem que há de vir.    

__________________

COELI, Myriam. “Branco & Nanquim: Obra Poética”, org.: Cristiana Coeli Goldie & Elí de Araujo. Natal: Sol Negro Edições, 2018.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

MURO

 

O coração do mundo é um muro enorme

 

a palavra bate

 

e

 

se

 

e s f a c e l a

 

– coroa-de-monge

ao vento –

 

inútil inútil

passageira...

 

quebra-se no rochedo

a água

imóveis

 

quebram

-se

 

falésias

 

heras imaginárias

 

direito

 

onde?

 

último raio

última flor

último pássaro

 

pausas

humanitárias

 

não vêm

 

diplomacia

 

falha

 

brilho

brilho no céu

 

brilho

 

 

brilho

 

não de estrelas

 

brilho

 

cavalo de vento

 

brilho

 

mísseis a embalar

o sono de crianças

palestinas.


Antonio Fabiano 

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

PEDRO E PAULO

pedro

pula

o poço

aperta

o passo

para

pensa

passa

 

paulo

pede

pão

à porta

do padeiro

pão

peixe

perdão

 

um potro

pasta

quarta-feira, 15 de março de 2023

FUMO - Florbela Espanca


arquivo pessoal

FUMO


Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas…
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram… choram…
Há crisântemos roxos que descoram…
Há murmúrios dolentes de segredos…

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!…


Florbela Espanca
Livro de Sóror Saudade (1923) 
 

sábado, 27 de agosto de 2022

ZILA MAMEDE (1928-1985) - Seleção de poemas de Navegos / A Herança

 

Zila Mamede em foto de Carlos Lyra



Do livro Rosa de Pedra (1953):

 

 

SONETO PARA O MOMENTÂNEO REENCONTRO DA PERDIDA INFÂNCIA

 

Não. Esse não, porque esse quadro encerra

os seus limites infantis de outrora

quando plantava as mãos de medo e terra

nos flocos de algodão sujos de aurora.

 

Não esse quadro antigo em que se aferra,

surda, uma dor que uma antes criança chora

perdida no caminho que a desterra

e no pranto que então seus anos mora.

 

Esse não: que ainda busca o procurado

abismo de onde os traços seus, feridos,

surpreendam voz pedindo claros sons.

 

Não essa inútil forma em céu crestado

descolorindo os ecos ressurgidos

nos dedos que inventaram lírio e tons.

 

(p. 219)

 

 

SONETO TRISTE PARA MINHA INFÂNCIA

 

De silêncios me fiz, e de agonia

vi, crescente, meu rosto saturado.

Tudo de mágoa e dor, tudo jazia

nos meus braços de infante degredado.

 

Culpa não tinha a voz que em mim nascia

pedindo esses desejos – sonho ousado

por onde o meu olhar navegaria

de cores e de anseios penetrado.

 

Buscava uma beleza antecipada

– a condição mais pura de harmonia

nessa infância de medos tatuada,

 

querendo-me embeber de inacabada

procura que, em meu ser, superaria

a minha triste infância renegada.

 

(p. 224)

 

 

CANÇÃO DA MINHA RUA

 

Rua triste

rua feia

rua velha

sem calçadas

rua fria

tão distante...

 

Sim, és triste

feia e velha

és distante

mas não importa.

 

Mesmo assim

és minha rua

onde vivo os meus sonhares

onde sofro os meus pesares

onde sinto os meus amores.

 

Para mim

tu tens belezas

que não há

nas outras ruas.

 

Se alguém

te tem desprezo

deixa

que eu te quero bem.

 

Eu conheço a tua história

tu me contas teus sonhares

tu me contas teus pesares

tu me dizes

bem baixinho

teus segredos

teus amores.

 

(p. 236-237)

 

 

 

Do livro Salinas (1958):

 

 

POEMA DE VIAGEM

 

Na estrada cinzenta e desigual

o automóvel se abisma.

 

Onde, o sono da mulher

carregando uma criança nos olhos?

A fala da criança

ficou dependurada lá fora

no tempo

a vestiu as árvores magras,

as árvores nuas,

os cactos tristes dos caminhos.

 

De tudo,

durou apenas

na memória

a última estrela

do ante-amanhecer.

 

(p. 155)

 

 

CANTO INÚTIL

 

Na penumbra do quarto me distingo

frase morta, que as grandes mãos do tempo destruíram

sem ecos,

sem remorsos,

sem furor.

 

Somente nesse nada se restringe

a condição recôndita do medo

que na memória dorme.

Se em mim fonte já não chora

retesam-se meus olhos.

 

Em palavra existi:

agora,

em sombras permaneço decomposta.

 

Frias letras indicam-me

sem nome,

explicam-me

sem vida,

sem lugar.

 

Fendeu-se-me o caminho.

Meu nome,

há muito não se faz chamar.

 

(p. 161)

 

 

 

Do livro O Arado (1959):

 

 

ANTECOLHEITA

 

Ah te saber distante, embora a chuva

amareleça em frutos e a colheita

não tarde. Já meus dedos se presentam

como instrumento* à terra matinal.

 

Ausentes os teus braços, a charrua

nega-se à lida, caminhança e bois;

o cata-vento remudece as hastes

que calentavam cedo anoitecer.

 

Não sei que faça dos celeiros. Vem:

setembro amadurece nos folhados

deixando-se nascentes para o estio.

 

Vem que me espanta o apascentar das ramas

e minhas mãos, de frágeis, agonizam

nessa visão de lavras, de eira e sol.

 

(p. 136)

 

A edição “Navegos/A Herança” (2003) traz essa palavra no plural (aqui omitido), diferentemente da edição “Navegos” de 1978, organizada pela própria Zila. Infelizmente não pude cotejar com a edição original de “O Arado”, 1959. O plural pareceu-me pretensa correção ou lapso da nova edição, pois além de mudar o sentido do poema, muda também sua cadência, destruindo a possibilidade de elisão, quebrando – num amadorismo de escansão que Zila dificilmente incorreria – a metrificação, antes gramatical e poeticamente perfeita, do verso. (Opinião do autor deste Blog)  

 

 

UM PÁSSARO ME HÁS DE DAR

 

Em manhã de pastoreio

ovelhas apriscando

largarás de tuas cismas

e cajado

que um pássaro me hás de dar

quando me amares.

 

Leve levemente mo trarás

das fontes dos teus olhos

sem nenhum pensamento

sem gesto liberto

a mansidão do teu silêncio

apenas.

 

À minha face matutina

descerá uma carícia

de pássaro

pousado.

 

(p. 148)

 

 

 

Do livro Exercício da Palavra (1975):

 

 

A PONTE

 

Salto esculpido

sobre o vão

do espaço

em chão

de pedra e de aço

onde não

permaneço

                     – p a s s o.

 

(p. 69)

 

 

AEROPORTO

 

Do pássaro invoado

– o antipássaro –

vibram sons de turbinas de emoção e sangue

 

Onde o pouso-cantar do pensamento?

Onde as artérias – medo em combustão?

Desce o pássaro

toca o chão

toma posse da pista asfaltoamor

 

Há o impacto da espera

permanência na esfera

          nos espaços

          nos ritmos de aço

          de astronave novopartindo

                                            chegando

                                            pairando

                                                        sem aportar

                                                                alterar

                                                              alunizar

 

Propulsão que te

                     (nos)

          perde em

          plataformas do nada.

 

(p. 97)

 

 

 

Do livro Corpo a Corpo (1978):

 

 

PROCISSÃO

 

Quando vem a procissão

no seu passo de perdão,

 

Alcaide, comendador

dominam o povo e andor

 

Cada grupo de irmandade

empunhando uma verdade:

 

A das Filhas-de-Maria

virgindade em romaria

 

Do SS. Sacramento

vermelha de emproamento

 

Do Senhor Jesus dos Passos

roxo em santos e devassos

 

Irmãs da Ordem Terceira

terço em mãos de camareiras

 

Os meninos da Cruzada

fome na barriga inchada

 

A Banda da Prefeitura

solo e soldo de amargura

 

Estandartes, confrarias

escondem velhacarias

 

O Santo vai carregado

pelos donos do mercado

 

E o povo segue inocente

descalço, nu, paciente:

 

– A compacta multidão

carente de Deus e pão.

 

(p. 51-52)

 

 

CAIEIRAS

 

Memórias há (vão e vêm)

das queimadas de caieiras:

a vida deslembra a gente

da vida que não se tem.

Fumaça assobe na frente

labareda vem depois.

Tijolo e telha cobrindo

a querência de nós dois.

 

Viola bem assentada

no florir dos cajueiros,

alpercatas batucando

o chão do chão do barreiro,

as mulatas ressurgindo

com seus dengues noveneiros,

as comadres se benzendo

frente ao santo milagreiro.

 

Aluás somem dos potes,

fogem em risos de tropeiros,

nas prendas dos namorados,

no aboio dos vaqueiros,

na presença do Senhor

da Casa-Grande – o festeiro,

no fogaral projetando

seu calor pelo terreiro.

 

Caieiras milavoengas,

tijolos: encantação

de caminhos não batidos,

de telha embicada vã,

dos pedregais dos açudes

(sem água), de solidão:

o tempo resumiu tudo

em vida-palavra-chã.

 

(p. 57-58)

 

 

 

Do livro A Herança (1984):

 

 

CHICO DOIDO

 

a José Bezerra Gomes, em memória

 

Chico Doido, doido e Chico

cavaleiro de Roldão,

de dia catando esmolas;

 

de noite: fiel seguidor

da fantástica milícia

do “Padim Frei Damião”.

 

As baladeiras nos bolsos

do dólmã sem forma e cor.

A espingarda (brinquedo),

 

no velho saco-de-estopa.

No roto chapéu-de-massa,

casa e abrigo. Na canção

 

tirada no realejo

de sopro, fabulação

de arcanjo. Da rustiquez

 

do capote inseparável,

o reaquecer nas sessões,

nos catarros, nas insônias.

 

No cinturão de soldado

ajaezado nos quadris,

imaginário punhal.

 

Na curva da orelha, as pontas:

piúbas secas, entrepalhas,

cuspe de fumo em chão, no ar.

 

No fiapo da fita fosca

do deslavado chapéu,

marca de outra devoção:

 

Relíquia milmuito amada

na fome, na dor, na fé

– “meu Padim Ciço Romão”.

 

Sem tantos dentes sãos: sujos;

unhas de luto tão garras,

punhos de tão frágeis; ferro.

 

Toda a alma era um passarinho

sorrindo no inconsciente

do insano Chico, do Doido

 

cavaleiro de Roldão

na luta por um cruzado

para lamparina e gás.

 

p. 276-277 

 

 

_____________

MAMEDE, Zila. NAVEGOS / A HERANÇA. EDUFRN – Editora da UFRN. Natal (RN), 2003.



Veja também:

https://antoniofabiano.blogspot.com/2014/10/selecao-de-poemas-de-zila-mamede.html