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sábado, 5 de julho de 2025

INFÂNCIA - Daniel Faria

 



e jogava ao pião com Deus

enquanto minha mãe estendia roupa

e o meu pai mendigava pão


e minha alegria nesse tempo

era muito próxima da dos meninos

e de Deus que ganhava sempre


e não sei quem perdi primeiro:

           o pião ou Deus

apenas sei que Deus continua

a jogar com outros meninos


e que no Outono quando saio à praça

nos sentamos e falamos muito

do suave rodopiar das folhas


Daniel Faria

Oxálida, 1992


domingo, 22 de junho de 2025

DO INESGOTÁVEL


Daniel Faria


Observei-te sabendo já que eras um homem – a cabeça

De pelicano dobrado

O bico que te rasgava para fora

 

Adoeci como lâmpada que se funde

A coroa de espinhos sobre mim – a lembrança

 

Dobrei-me nas tuas asas

Nas chagas ainda quentes

 

No voo como gota de sangue no peito

Que vive. No coração

 

Que partes e distribuis com as mãos

 

 

*

 

 

Todas as minhas fontes vêm de ti

As nascentes

E amo-te com a constância do moribundo que respira

Já sem saber de que lado o visita a morte

 

Procuro a ligação entre ti e a luz muito 

                    [miudinha depois dos temporais

Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas

Desconheço o colar onde unes tudo

 

Procuro entender como é que moldas

Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão

Sei que és tu que me levantas

Que remendas o meu corpo cada dia

 

Em ti encontro a pulsação

Que rebenta – uma artéria como nunca

Tinha jorrado. Cratera onde durmo

Recluso, árvore à chuva

Em dificuldade extrema

De respiração

 

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço 

                                [os braços para fora

Como um pássaro entre um bando

De disparos

 

Tu moves as agulhas, tu unes de novo

As minhas asas à curva do céu

 

 

*

 

 

E desço à verdura das tuas mãos

Como as manadas que buscam as minas

 

Faltam-me apenas os pés feridos dos que

[peregrinam

Faltam-me no chão duro das promessas

Os joelhos

 

Queria tanto andar em redor, rodear-te,

                            [se soubesses como

Queria amar-te tanto

 

O que sei da unidade é a túnica

Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida

É o livro escrito por dentro e por fora

Silêncio escrito por dentro

Palavra escrita a toda a volta da história

 

O que sei do céu

É a mão com que sossegas os ventos

 

Desço à escritura como os veados aos salmos

 

 

FARIA, Daniel – POESIA – Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal por Assírio & Alvim. Porto Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.

 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

POESIA - Daniel Faria


Daniel Faria

 

Há muitos metros entre um animal que voa

E a escada que desço para me sentar no chão

Mas basta-me um quadrado de sossego

Para a distância absoluta

 

Está para além do que se vê a janela

[onde me debruço definitivo

Não é uma aparição

Nem se pode alcançar sem se ir em frente caindo

 

Só no fim da paisagem estou de pé

[como um para-quedista que desce

Suspenso como os santos num arroubo místico

Erguido como um anjo em suas asas

E sinto-me ser alto como um astro. Nuvem

Como se fosse um homem

Que levita

 

POESIA de Daniel Faria. Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal por Assírio & Alvim. Porto Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

O ANJO MENSAGEIRO DE IRENE VILAR

O Anjo Mensageiro ou Gabriel: Escultura de Irene Vilar
Fotografia de Antonio Fabiano - Portugal - 2013 


O ANJO*

Ou caiu do céu
Ou Deus mesmo o esculpiu
Pelas mãos de Irene!
É Gabriel? É o Anjo Mensageiro?
Não será a boa notícia do amor?

Está no Porto e é belo!
É a pureza sem nome
Encarnada do etéreo!
Delicadeza que triunfa
Sobre a matéria dura
A que nem bronze pode ser
Nem fria
De assim tão mole
De assim tão viva chama:
Lume levado ao cume!

É santa toda obra do amor.

Jacó sou eu e estou ferido!**
Venci ou fui vencido?
Nele deixei meu coração
E trouxe esta saudade imensa
Mais que o mar de Portugal.
Estenderia meus braços
De um continente ao outro
Para abraçá-lo outra vez.
O meu amor maior que os oceanos
Eu depositaria aos pés
Da glória alada
Que não sei bem se é Anjo
Sonho
Delírio meu
Ou Deus
Em asas disfarçado!...

Ficaria muitas horas a vê-lo
Sem me cansar
Até queimar meus olhos de perfeição
Até queimar meus lábios de assim beijá-lo!
E nem sentiria a brisa
Cheiro de porto
O rio que passa Douro
Gaia... o mar!
Que em face de tal formosura
Todas as demais se
Apequenam e
Calam.

Apenas eu e o meu Anjo.

Quando a beleza extrema nos arrebata é assim:
Transverberamo-nos.
Dói de bom
E não se pode fazer mais nada!

Existe o que vi?

Seja lá o quer for... (não sei dizer! mas quero...)
Quero o amor eterno desta obra!

Antonio Fabiano

__________________________

* O Anjo Mensageiro ou Gabriel louvado neste poema é obra da grande escultora portuguesa Irene Vilar (*1930 – +2008). Ele está no Cais de Sobreiras, junto à Foz do Douro, na cidade do Porto.

** Jacó é personagem da Bíblia. Ele lutou com Deus, sem o saber, o qual lhe apareceu disfarçado de Anjo. Jacó venceu o Anjo do Senhor, mas saiu ferido...

Antonio Fabiano é carmelita descalço e poeta brasileiro.