quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 10 - FINAL)

Como se não bastasse, outros aspectos enigmáticos favorecem o poema. O primeiro deles diz respeito a “Uma nuvenzinha / Apareceu no céu / Sobre o mar. / Escureceu. / Ouviu-se grande estrondo / Luz / E ventos”.

São indícios de uma grande tempestade.

Trata-se da história do profeta Elias e o rei Acabe.

Depois de ir e vir, o encontro acirrou-se entre os dois. Após tudo isto, Elias disse a Acabe: sobe, corre, etc.

Esta história se encontra em Primeiro Reis, cap. 18 (Bíblia Sagrada).

Por analogia, pode-se estabelecer uma ligação deste fenômeno poético com a história de Elias e o rei Acabe. Elias apresentou-se a Acabe e a palavra do Senhor veio a ele dizendo: Vai e mostra-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra. Elias, prontamente, obedeceu, quando de repente, cai a chuva.

O espaço da cena do poema estabelece uma relação com a história acima mencionada. Vejamos:

 

         “A chuva caiu

         Indizível.

        

         A chuva

         Caiu.

        

         A chuva.

        

         A...

        

         Chove.”

 

         ................................

         ................................

         ................................

 

 

O bloco poemático continua até os versos: “E ainda chove / Chove”.

Este bloco está inscrito num espaço, que constrói o traço peculiar de um poema concreto.

Poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade ritmo-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. Daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico, realismo total, contra uma poesia de expressão subjetiva e hedonística. – p. 270-271 - Didática da Literatura - José Maria de Souza Dantas.

Observe a forma que o poema assume: o cair de uma chuva, de mais intensa para menos intensa, terminando, visualmente falando, como uma estrutura espácio-temporal, qualificado. É tão perfeita a comparação do espaço que nos dá a ideia de um ideograma: a chuva se despencando do céu, como uma cascata de luz e som.

 

“Na montanha / Chove / Quedas d’água / Chove / Sibila aquática a água / E ainda chove / Chove”. (grifo nosso).

 

Este poema “Serpente Emplumada” é tão complexo, profundo, completo que o poeta explorou nada mais nada menos que Literatura, Teoria da Literatura, Poesia em toda a sua extensão, além de Língua Portuguesa, Língua Asteca (explicação do título do poema), e outras, Teologia, Filosofia e Poesia Concreta. É demais para o meu pouco conhecimento.

Cada poema, pelo tom confessional, pela experiência do que se reveste, pela emoção que o anima, é como se fora uma parte do próprio poeta a se desprender e a se projetar, a se difundir e a perpetuar o seu criador. É o que aconteceu com o poeta Fabiano. Fenomenologia da Obra Literária. – p.209.

Como consequência dessa “nuvenzinha” que derramou chuva, tem-se outro bloco, dando continuidade a mesma temática.

É um bloco rico de imagens como a chuva que desce do céu, “Escorre a sabedoria / Caudalosa”. É preciso sabedoria para compreender o mundo com tudo que há nele, mas principalmente entender os desígnios de Deus. 

Como resultado da chuva caída tem-se: “O serpear dos rios / Por entre encostas / A timidez (obscuridade) / Dos barrancos”. Olhe só o paralelo entre “O olhar miúdo / Das miúdas fontes”, é uma figura de construção: Anadiplose – é o emprego da mesma palavra ou expressão no final de uma frase ou verso e no início da seguinte ou do seguinte, por exemplo: “Daquele céu de safira / Que se mira, / Que se mira nos cristais!” (Casimiro de Abreu).

A seguir outra imagem muito sugestiva:

 

“Aquele arisco emaranhado

De torrentes

Diluvianas poças

De ilusão”.

 

Quando a chuva cai no chão, mistura-se tudo: barro, mato e água, por isso “emaranhado / De torrentes / Diluvianas poças”, mas “De ilusão”. As poças não são d’água são sim de ilusão. A cena aqui descrita focaliza o ambiente interno onde se encontra o sujeito do enunciado, figura central sobre a qual incide o foco descritivo. Sim, porque a ilusão é um sentimento que recai sobre o sujeito da enunciação e/ou do sujeito do enunciado.

O poeta abandona o casulo do lirismo egotista e entrega-se à contemplação do espaço cósmico e à respiração de amplos temas:

 

“Chove / E tudo chora / De gratidão / De gratidão e medo / De alegria e medo / De alegria / Por haver água / E ser de água marejada / A esfera azul / Que chora”.

 

É digno de nota a gratidão. Gratidão pela água marejada = (leve agitação das ondas do mar).

O espaço da cena que, afinal é o espaço do discurso, é articulado por uma coreografia feita de:

 

“O silêncio / De quando Deus refez o mundo / Pelas águas / Atravessou a epopeia. / E no bater de asas / De uma pomba / (Como num piscar de olhos...) / Calou todas as mágoas / Levou tudo / Lavou tudo... // Tudo.”

 

Este incidente revela o dilúvio. Percebe-se e confirma-se pelo espaço, claramente delineado pela figura da pomba.

Mas vejamos ainda outros aspectos de interesse nesse final em que a palavra assume importância cada vez maior, como:

“Cada poema se caracteriza por ser um universo emotivo e semântico autônomo, a fusão entre a emotividade, a musicalidade e a carga semântica particulariza cada texto poético” (p.219) na medida em que o poeta vai esgotando o seu tema. Observe a emotividade, a musicalidade e a carga semântica dos versos a seguir:

 

Ouviu-se por último / O ruído de uma leve brisa / (– leve... leve...) / E no tênue sussurro / O perguntar: / Que aqui fazes?” (grifos nossos)

 

E a resposta vem logo em seguida:

 

                      “Ardo”.

 

A problemática da existência parece presidir, portanto, à estrutura desse poema de Fabiano, que nos faz considerar por um momento o mistério da vida e de sua peculiar forma de eternidade. (p.213) É só conferir os versos:

 

“E da argila do poema / Haverá novo homem... / Sobre os ossos ressequidos / Do poema / Nova carne / E vida”.

 

Mais uma imagem se nos revela, num paralelo estabelecido, quando da criação do homem e do mundo: Deus foi quem criou o primeiro homem com um sopro, numa porção de barro.

Se há nele (o poeta) alguma abertura para o mundo exterior, essa se concentra para o seu mundo interior na reflexão do seu Eu-poético, para o próprio Deus:

 

“Depois disso o Senhor / Por quem meu ardente zelo / Arde e zela / Soprará / E da argila do poema / Haverá novo homem...”

 

Surge então esse novo homem dos “ossos ressequidos / Do poema / Nova carne / E vida”.

O poeta se identifica com o próprio poema. Ele está sofrido porque debruçou-se “Sobre os ossos ressequidos / Do poema”... porém, “Nova carne / E vida” ressurgiu.

Depois disto tudo está consumado, porque “Deus não pedirá mais / Isaac em sacrifício / Nem sacrifício algum”.

Enfim:

 

“Descansaremos

Eu e Deus

Deus que viu que tudo era bom”.

 

Note-se que a tendência para intelectualizar o tema da Criação, conforme revelam os derradeiros versos, respeitou os acidentes formais que fazem deste poema uma epopeia. – p.285 - Massaud Moisés - A Criação Literária - Poesia.

Para o leitor, este poema é um momento absoluto de poesia, embora para o artista ele represente a angústia da criação.

Todo esse enigma que agora se clarifica é a Poesia como chave e caminho, como mapa e código. O código que afinal se resolve por um detalhe mínimo, e tudo se liberta, tudo se ilumina, tudo é epifania. A epifania que se concretizou com o confronto entre o deus mitológico da criação – “A deidade... Ofídia verdade” ó que equivale ao deus serpente emplumada, o deus da criação dos astecas que acreditavam no sol de Quetzalcoatl e o Deus da Criação (tradição judaico-cristã), “que viu que tudo era bom”.

Com essa epifania completa-se o ciclo em torno de si mesmo. O eu se reintegra depois de ter se apartado na procura de si mesmo através do tempo. A travessia do tempo pela poesia. Onde não havia Nada, senão aparência. Agora existe uma obra, um Ser, uma consciência. O poeta poematizou o tempo e a si mesmo; salvou-se da destruição e erigiu uma fundação porque “a poesia é a fundação do ser pela palavra” – Affonso Romano de Sant’Anna – Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra – 2ª edição. Editora Documentário – Rio de Janeiro.

   

Natal, 22 de julho de 2020.

   

  Elizabeth de Souza Araújo

 

 

 

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RELAÇÃO DE LIVROS UTILIZADOS NESTA LEITURA

 

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Editora da Universidade de São Paulo. Editora Cultrix.

DANTAS, José Maria de Souza. Didática da Literatura. Ed. Forense Universitária, 1982.

DELAS, Daniel e FILLIOLET, Jacques. Linguística e Poética. Editora da Universidade de São Paulo. Editora Cultrix Ltda.

DUBOIS, Jacques. Retórica da Poesia. Editora da Universidade de São Paulo. Editora Cultrix.

EIKHENBAUM et alii. Teoria da Literatura. Formalistas Russos – Tradução de Ana Mariza Ribeiro Filipouski, e outros. Editora Globo.

TAVARES, Hênio. Teoria Literária. Editora Itatiaia Ltda. Belo Horizonte – Brasil.

____________ Técnica de Leitura e Redação. Coleção Didática Moderna 23. Livraria Cultura Brasileira Ltda. Belo Horizonte.

MOISÉS, Massaud. A Criação Literária-Poesia. 10ª edição rev. – São Paulo: Cultrix, 1987.

PORTELLA, Eduardo e outros. Teoria Literária. Biblioteca Tempo Universitário 42. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro - RJ - 1976.

RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da Obra Literária. Forense Universitária – Rio de Janeiro.

REIS, Carlos. Técnicas de Análise Textual - 3ª edição. Livraria Almedina - Coimbra - 1981.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra. Editora Documentário – RJ.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Biblioteca Tempo Universitário. Coleção dirigida por Eduardo Portella. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

TAHIM, Jacirema (Organização). Estudos de Literatura. Introdução à Literatura através da Análise e da Interpretação de seu Discurso. Natal; Fundação José Augusto, UFRN. Ed. Universitária, 1988.

TELES, Gilberto Mendonça.  A Estilística da Repetição – Drummond. 2ª edição rev. aum. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976.

 

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