quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 7)

Muito comum é a reduplicação de uma ideia, quer em palavras repetidas com ligeira modificação, quer por meio de sinônimos. Já vimos que essa técnica provém, muitas vezes, de um tratamento lúdico da linguagem, pelo ritmo que dessa maneira se obtém. Mas é inegável que se trata também de artifício expressivo, principalmente quando a segunda palavra não tem parentesco morfológico com a primeira. Vejamos os exemplos:

 

“A consciência do meu povo (...) / A alma da minha gente (...) / O calor e o saber profundo / De todas as coisas. / (...) Do povo (...) / Do barro que se pisa” etc.

 

Além desses recursos rítmicos, conta também o poeta com a disposição das palavras em movimentos ordenados, às vezes até regulares demais. Note-se os versos:

 

“Dói o poema

Feito de calmaria e lucidez profunda...

         

A capacidade de tocar alguém

Não está só em quem toca

Mas ainda no poder daquele que é tocado.”

(grifos nossos).

 

Aqui merece uma reflexão: a quem “dói o poema”?


1)       A quem toca? Ao poeta?

2)       A quem é tocado? Ao leitor?


1)   Ao poeta que engendrou o poema, com sua linguagem criativa, dinâmica; que informou o poema com palavras e expressões inusitadas; com seu conhecimento linguístico, filosófico, teológico, histórico, político, psicológico e/ou

2)    Ao leitor que, na maioria das vezes, tem que se embrenhar mato a dentro para decifrar o enigma de sua poesia, o mistério que envolve suas imagens e metáforas. Que também precisa de um conhecimento para conseguir fazer sua leitura.

Que mistério!... Que poesia!...

 

Nossa linguagem (falada, escrita, compreendida, lida) repousa sobre uma sintaxe cronológica, uma crono-sintaxe (Edeline, 1972), em que o tempo é o eixo onde as instruções se inscrevem – Retórica da Poesia – Grupo U: Jacques Dubois e outros – p.120.

Num processo retroativo, vejamos:

A fala do poeta que faz questão de ignorar as limitações impostas pelas regras é de uma riqueza extraordinária. Sua imaginação é uma máquina incessante, que dá a todas as coisas uma representação plástica.

Para apreciarmos a plasticidade do pensamento do poeta Fabiano, consideremos estas passagens:

 

“A cada passo / Nasce a esplêndida / Flor / (não veem?) / Que está na água / Branca e solitária: / A vitória-régia / A iaupê-jaçanã / A que no rio / Soberana reina / (Ó verde imenso!) / E de tão bela / De tão bela / Faz meu coração tremer.”

 

Impressionante é a descrição d’ “A vitória-régia / A iaupê-jaçanã”. O autor economiza ao máximo as palavras, construindo períodos em que as expressões nominais são uma sucessão de quadros:

 

A vitória-régia         (Ó, verde imenso!)

A iaupê-jaçanã        E de tão bela

A que no rio             De tão bela

Soberana reina        Faz meu coração tremer

          

(1º quadro)               (2º quadro)

 

Essa plasticidade do pensamento é que confere ao poema uma feição cinematográfica, em que os cortes superpõem violentamente cenas diversas umas das outras.

[Fenomenologia da Obra Literária – p. 228.]

Ao analisarmos um conto a nossa primeira preocupação é encontrar a ordem das ações (unidade de sentido).

Na poesia lírica, porém, ao invés de ações, encontramos palavras. Palavras que se juntam, que se opõem, que se identificam.

Para se ler um poema é preciso levar em consideração que as interpretações são muitas e diferentes, mas o importante é sabermos justificá-las de uma maneira coerente a partir do discurso da obra. Como a poesia está caracterizada, entre outras coisas, por uma certa ordenação léxica, é primordial que jamais partamos para a interpretação sem estarmos atentos ao que o texto diz e ao seu modo de dizer.

A partir disso, resta-nos compreender como o texto se organiza, se estrutura numa maneira, numa forma específica, pois a obra é um signo ou sinal que tem uma face aparente e outra oculta. Não é olhando para o signo, mas para onde ele aponta, que encontraremos a sua significação. Precisamos ver a obra como um signo, onde a sua forma vai levar a sua significação.

  

CONTINUA...


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