sábado, 4 de dezembro de 2010

EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010) - Livro de Ferreira Gullar sob Apreciação de Antonio Fabiano



EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010), a mais recente poesia de Ferreira Gullar, não é um livro qualquer e não pode ser lido de qualquer jeito, displicentemente. A boa crítica – e não me incluo aqui, sequer no que tange a crítica sem mais atributos – tem o dever moral de notá-lo como um dos grandes acontecimentos literários do ano de 2010, e anotá-lo, sem qualquer favor ao poeta, no cânon da nossa bem sucedida poesia deste início de século. Anais.
Valeu a espera de onze anos, sob o dito silêncio poético de Gullar desde a poesia de “Muitas Vozes”, para que recebêssemos, oportunamente, este “Em alguma parte alguma”, que mais parece a poesia de um poeta que de repente acontece, numa imprevista explo(implo)são. Gullar nos toma de assalto.
É comprovada por demais a competência do poeta, ele já não precisa explicar-se ou impor-se de algum modo. Sua obra caminha de mãos dadas com duas forças poderosas: 1) a consagração por parte de uma “elite intelectual” e da crítica mais autorizada – onde incluímos tudo o que se disse de sua obra, por especialistas e demais competências, em mais de meio século de produção literária e vida artística, além do reconhecimento que lhe é outorgado pelos muitos prêmios recebidos ao longo de sua ventura histórica no cenário cultural brasileiro; 2) e, o mais importante, a consagração junto ao povo, o qual incorpora sua poesia e adere de tal modo à arte do poeta e seu sentimento/razão do mundo, que finda por impregnar-se disso todo o imaginário comum (popular), erigindo a partir deste Gullar, que sem dúvida é mais modesto, uma espécie de ícone da poesia brasileira, fazendo-se a partir daí um “outro” que é mais Gullar do que ele mesmo.
A junção dessas duas partes, o resultado de uma fórmula tal que une o reconhecimento dos doutos e o amor dos mais simples que se enxergam em seu poeta maior e tomam para si o que ele diz em sua/nossa poesia (porque se veem retratados nela e ao povo o poeta empresta sua possante voz), resulta na melhor de todas as coisas que pode suceder a um artista: ele “flutua”, reveste-se daquela imortalidade que nem mesmo a Academia pode dar.
Gullar chegou aí, aonde só poucos chegam. Consegue fazer uma feliz passagem no tempo das gerações, com as quais dialoga, ultrapassando-as. Querendo ou não, seu nome é inscrito no cânon dos nossos vultos sagrados.
O livro “Em alguma parte alguma” vem nos dizer, sem arrogância ou mínima pretensão, que a escrita de Ferreira Gullar é o que há e é mais viva do que nunca. Sinaliza algo mais: diz-nos que literatura de verdade é possível no Brasil de agora, como antes, para além dos nossos poetas bons cujas Obras já se encerraram em Completas. Equivocam-se os que acreditam que poeta bom é só poeta morto. Como também erram os pessimistas que propagam não haver grande poesia nas novas gerações, além Gullar e outros poucos já consolidados desde o século XX e que ainda vivem. Decerto são diferentes os tempos e modos de ser poeta e se pensar a poesia. Complexo é o momento histórico cultural que atravessamos. Mas negar toda poesia, em meio à celeuma de vozes desentoadas ou coros de sapos que banalizam a sagrada arte, isso não nos convém. Poesia há. Como sempre houve. E o prova Gullar, que atravessa impávido esse mar revolto, nos ensinando a não desesperar.
“Em alguma parte alguma” parece já bem resolvido, maduro sem pudores. Extraordinária é a força de seus versos e a beleza nem um pouco ingênua com que se vê, ali, a vida desdobrada em surpresas. Um espanto! Mas não nos traz apenas a sucessão de alumbramentos que dá vazão à criação do poeta, criação esta realizada em cônscio gozo “extático”, o mesmo da poesia que dura o eterno tempo de um poema. Traz-nos ainda o sair-se de aflitivos silêncios (a mesma luta corporal com a palavra), por meio dos imperativos que nem mesmo o poeta sabe explicar, mas aos quais nunca diz não, sendo só sim e sim. E assim torna-se possível o impossível, que é alguma vez deixar dito – plenamente – o não dito. Ora, estamos diante de um silêncio gritado, próprio dos que se assombram, absurdamente elucidados, com a vida, ou com a morte, que também é coisa da vida, em qualquer parte qualquer. A morte neste livro espreita o poeta. Ou talvez seja só ele mesmo a espreitar a morte. Esquecendo-se, depois, um do outro. Ela não será mais que “a paz”, ainda que “a paz do nada”.
O poeta não erra em parte alguma de “Em alguma parte alguma”. Os mais severos hão de lê-lo buscando sempre na página seguinte um defeitinho para não lhe conferir o mérito patente dessa perfeição cabível só a raros e ninguéns. Constatarão, ao final, que o poeta logrou tocar nos pés de Deus, esse Deus do qual Gullar nunca se ocupa, em agnóstica posição. Paradoxo? Não. O maior elogio que se possa fazer ao artista!
O livro vai além do que poderíamos esperar. E nos toma de assalto, no melhor dos sentidos. Nele Gullar escreve-se renovado, sem, contudo, abandonar velhos temas sempre novos. Ousa. Manda para os escarcéus toda estreita medida que queira ditar seu livro e unidade rígida. Reinventa-se. Há de fato um novo tom, matizes. Dá-nos um verdadeiro panorama do seu estado de espírito e da liberdade que goza aos 80 anos, bem redondos, bem vividos. Mescla, sem peias, bananas podres e a mais alta luz dos espaços siderais, de estrelas vivas ou mortas; uma nostalgia às vezes irônica, a ponto de trazer à baila fêmures seus e alheios, na serenada constatação da senhora dona morte, esta que está aí, de mãos dadas com a vida, e não assusta mais que a própria vida; traços de pintura, alheia e sua, tudo retocado ou só tocado por sua mão de artista; as curvas de outra arte e toda arte, seja qual for, desde que verdadeira e fiel aos seus princípios; a linguagem levada ao seu limite, em extremos; o cheiro do jasmim, mais que tudo a flor do jasmineiro, sim, o jasmim e seu olor, este outro raio que fulmina...
O livro comove pelo que tem de transparente e lírico, originalmente lírico. Faz pensar, filosofal. Pedra no centro de um caminho, existencialmente aturdido, gozosamente abraçado. A vida como ela é, em seus paradoxos, a vida insuficiente, por isso mesmo a reclamar poesia, na beleza possível e impossível, em alguma parte alguma, em qualquer lugar qualquer, desta infinita graça que se dá aos que a querem receber.

Antonio Fabiano (2010)
Belo Horizonte-MG
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EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010)
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Capa: VICTOR BURTON
Reprodução neste blog com licença de Ferreira Gullar

2 comentários:

  1. Jaécia Bezerra de Brito10 de dezembro de 2010 às 00:51

    Biano, terminei de ler o texto emocionada por suas colocações, estas que me levaram a ficar mais apaixonada ainda por Ferreira Gullar

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  2. Ó grande mestre Gullar! Salve!

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