segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
ENTREVISTA DE FILINTO ELÍSIO – ESCRITOR CABO-VERDIANO – A ANTÓNIO FABIANO
Filinto Elísio - Foto Divulgação
ANTÓNIO FABIANO: Poderia nos contar um pouco da sua história, até chegar ao seu envolvimento com o Brasil?
**FILINTO ELÍSIO** Bem, a minha história, como a de todos os cabo-verdianos, está intimamente ligada à África, Europa e Brasil. Antológica e ontologicamente cruzada com o Brasil. Há, em certa medida, um processo antropológico e histórico comum, determinando não só os nossos pathos e ethos diferenciados, mas também aqueles comuns e até convergentes. Nesse sentido, as histórias individuais e existenciais, como a minha, cumprem, em recorte particular, o rio maior que nos impõem as grandes viagens. Sempre encontrei a presença do Brasil em casa, seja pela música, seja pela poesia, e cresci numa família que, em pleno tempo colonial, via no Brasil uma espécie de «terceira dimensão/solução» para a condição de Cabo Verde, independente de Portugal só depois de 1975. Por sorte e honra, estudei Biblioteconomia em Minas Gerais e acompanhei, desde essa altura, o Brasil como uma pertença também minha.
ANTÓNIO FABIANO: Como aconteceu a literatura em sua vida?
**FILINTO ELÍSIO** Igualmente, a literatura foi para mim «arte de berço». Soube que a minha mãe me ninava com declamação de poemas de António Gedeão, de Ribeiro Couto e Jorge Barbosa. Por isso, sou visceralmente poeta. Durante a minha infância e a minha adolescência o ambiente era de literatura e de cinema, pois o meu pai também era gramático, leitor interessado e cinéfilo. Permitiu-me conhecer alguns intelectuais brasileiros, como Glauber Rocha e Jorge Amado. E introduziu-me cedo o gosto pela Bossa Nova e a Tropicália. Ouvíamos Gil, Caetano, Chico, Jobim, Bethania e Gal, de manhã à noite. E declamávamos Vinicius, Drummond e João Cabral de Melo Neto nas nossas noites de festa familiar. Mas escrever mesmo só aos 14 anos, depois de ler o «Diário de Anne Frank e o «Processo de Kafka». Só depois do «choque» de ter lido «O Estrangeiro», de Albert Camus. Definitivamente, depois de mergulhar nas faces múltiplas de Fernando Pessoa. Escrever mesmo só depois de ter lido «O Velho e o Mar», de Ernest Hemingway e de imaginar o velho Santiago, na sua luta para pescar o merlin e voltar para o porto apenas com a carcaça comida por tubarões. Mas também muito me despertou «O Amante», de Marguerite Duras, e a consciência crítica, mas angustiosa, da solidão existencial. Terá sido impossível apreciar esse manancial de apelos estéticos e não querer puxar para mim tamanho élan.
ANTÓNIO FABIANO: De todas, quais as principais influências literárias, culturais, que recebeu ao longo desse itinerário intelectual?
**FILINTO ELÍSIO** Provavelmente dos poetas todos que li. Não tive aquilo que Maquiavel, num rasgo de subtileza, chamou de «pensamento da praça pública». Fui muito pelas margens e devorei poetas consagrados e marginais.
ANTÓNIO FABIANO: Como tem sido a receptividade de sua obra entre os brasileiros?
**FILINTO ELÍSIO** Boa em termos de crítica, mas muito reduzida em termos de público. Não posso assumir que seja conhecido no mercado brasileiro, infelizmente. Para qualquer escritor desta nossa língua portuguesa não ser conhecido do leitor brasileiro se configura como um grande handicap. Tirando o Ceará, onde já lancei dois livros, e São Paulo, onde em meios académicos alguém sabe da minha escrita, bem como Imperatriz, no Maranhão, em que sou membro da sua Academia de Letras, o Brasil é um fabuloso espaço a «conquistar». Não falaria do mercado em si, mérito e vantagem dos meus editores, mas do conhecimento e da interacção com os leitores brasileiros que me encantam. O meu romance «Outros Sais da Beira Mar» e o de poemas «Li Cores & Ad Vinhos», este com a participação plástica de Fernando (Mito) Elias, já fizerem um percurso tímido pelo Brasil.
ANTÓNIO FABIANO: Actualmente você percebe um crescimento na relação entre nossos países irmanados pela língua? Como?
**FILINTO ELÍSIO** O incremento é real e a ampliação é um ditame destes novos tempos. Entretanto, todos poderíamos fazer mais. Precisamos de mais intercâmbios, de mais leituras e de mais revisitações uns dos outros ou uns aos outros. Quem sabe, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, da CPLP, com sede em Cabo Verde, não possa fazer mais e ser o pivot deste novo desafio? O Brasil tem um papel dorsal. Portugal idem. Sem os africanos a lusofonia estaria mais empobrecida. O elemento fundante da lusofonia não é só a língua portuguesa, mas a história, a cultura e o destino comum. Há uma ancestralidade borbulhante que nos une e nos mantém coesos na diversidade.
ANTÓNIO FABIANO: O que foi o Movimento Claridoso? Pode nos falar um pouco disso e de como brasileiros tiveram parte nele?
**FILINTO ELÍSIO** Claridade foi sem dúvida um grande marco estético, sociológico e linguístico. Mais uma vez, o Brasil teve o seu espaço na literatura cabo-verdiana, neste caso por via do Realismo Nordestino. O Movimento, iniciado em 1936, abriu espaço para um fazer literário mais realista e moderno, rompendo a geração anterior. É a modernidade em termos formais e de conteúdo. Entretanto, a literatura cabo-verdiana não começou com a Claridade, nem ficou por ela. A própria Pós-Claridade já não se coloca. Estamos num novo momento, nem saberei dizer se movimento, da literatura cabo-verdiana. Arménio Vieira, o prémio Camões 2009, nada tem a ver com a Claridade. Actualmente, temos escritores de linhas bem mais abstractas e de outras alquimias das formas.
ANTÓNIO FABIANO: Quais autores cabo-verdianos você gostaria de ver publicados no Brasil?
**FILINTO ELÍSIO** Falei há bocado de Arménio Vieira. Mas também gostaria de ver nas estantes e escaparates brasileiras os escritores Corsino Fortes, Osvaldo Osório, Mário Lúcio Sousa, José Luís Hopffer Almada, José Luís Tavares, Fátima Bettencourt, Dina Salústio, Valentinous Velhinho e Dani Spinola, entre outros. Falei há dias com a Professora Simone Caputo Gomes, da USP, uma das autoridades em estudo da literatura cabo-verdiana, sobre a História da Literatura Cabo-verdiana. É uma plêiade de nomes, tantos que estamos a pensar já na criação da Academia Cabo-verdiana de Letras, a primeira da África de expressão oficial lusófona. Entretanto, não anuncio a academia com glória alguma, diga-se, já que o labor literário não está sob a toada da «imortalidade» dos académicos que tal como os prémios e as condecorações não servem para nada. O poeta, digno de tal nome, não se torna imortal pelas honrarias enganosas. Chinua Achebe dizia que «o poeta que não tem problemas com o rei, tem problemas com a sua própria poesia. Qual a glória de criarmos a Academia? Nenhuma. Entrementes, gostaria de ver todos os nossos escritores nas livrarias e nas bibliotecas brasileiras.
ANTÓNIO FABIANO: O que aproxima e diferencia nossas literaturas?
**FILINTO ELÍSIO** Provavelmente a língua e outros activos e passivos histórico-culturais correlatos. Mas em verdade não há uma resposta cabal sobre isso. Em tese, uma literatura, a par de ser de um lugar e de um tempo, é de um indivíduo. Não a vejo com a lógica marxista, de processo histórico. Vejo-a como uma complexidade que não se explica. Não se sabe. É um mistério. As literaturas têm um substrato comum que se lhes pressente. Nada muito nítido, claro e cartesiano como pretendem as academias e os estudiosos. Em «O Arco e o Lira», Octávio Paz problematiza tal tormentosa questão (o que é a poesia?), e múltiplas respostas, longe de nos saciarem, trazem outros labirintos.
ANTÓNIO FABIANO: Você tem projetos para 2011 no Brasil?
**FILINTO ELÍSIO** «Me_xendo no Baú» é um livro de reverberações filosóficas e crioulas, no espaço e em seu limite no qual dialogo com as necessidades do humano em mim. Será publicado em Lisboa, no mês de Abril. Creio que consigo transpor neste livro a perspectiva do conflito social, contingencial e emocional. Sou mais cerebral, no víeis cabralino do termo. Persigo nele a pura filosofia da composição como justificação e referência da escrita. Poema enquanto objecto lapidado. A edição vai ser inovadora e fora do formato, já que divido o livro com o pintor cabo-verdiano Tchalé Figueira e será um livro de mesa, com um dvd com declamações do dramaturgo João Branco e peças para uma opereta com dançarinos a coreografarem a palavra e não a música. A música ulterior, se quisermos. Outro projecto será «Conchas de Noé & Arcas Ostras (Cantos, contos e causos)». É edição brasileira e aponta-se para Maio.
ANTÓNIO FABIANO: Poderia nos dar o prazer de um dos seus poemas?
**FILINTO ELÍSIO**
f_ado
negro corpo
e o des_tino
chora-se fado
e o s_ado corre
tudo é rio
U de tudo
um dia
por me_lodia
vasculha-se-lhe
exis_tindo
ouro preto
re_nasce em nie_mayer…
Filinto Elísio
in: Me_xendo no Baú (inédito)
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FILINTO ELÍSIO a ANTÓNIO FABIANO
Dezembro de 2010
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
(Por deferência manteve-se aqui a ortografia do português de Cabo Verde).
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Prezado Antonio Fabiano, parabéns pela bela entrevista! O amigo Filinto Elísio é um dos grandes nomes da literatura cabo-verdiana contemporânea, e como o próprio frisa, seria de muito bom grado que os poetas citados, inclusive o Filinto, fossem publicados no Brasil.
ResponderExcluirGrande abraço,
Ricardo Riso
Obrigado, Ricardo. Receber um comentário teu me deixa orgulhoso e feliz. Eu gosto imenso do que escreves. Abraço!
ResponderExcluirCaro Antonio Fabiano, agradeço-te por nos brindar com essa bela entrevista com o ilustre poeta e agora meu confrade na Academia Imperatrizense de Letras, Filinto Elísio
ResponderExcluirAntonio Fabiano...Sou de Imperatriz - MA, e tive o prazer maior de conhecer Filinto Elisio há poucos dias no 9º SALIMP. Que alegria! Partilhar da presença dele entre nós foi um presente divino pelo ser humano que és. Daí comecei a buscar informações do poeta (e tantas outras faces, identidades...) que está encantando imperatrizenses. Cheguei a ler a belíssima entrevista que fizeste. Obrigada pela sensibilidade. Um grande abraço! Herli
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