Os jovens rapazes de boa índole sentados ao redor da grande mesa de madeira escura que duraria até hoje... aqueles moços da tal arcádia... Pelo menos é assim que penso neles. Chego a imaginá-los em volta dos mesmos pensamentos, escondidos sob suas máscaras de falsos pastores, tangendo ovelhas em humildes metáforas... Imagino-os caminhando em seus páramos de analogia profunda, em seus campos de pouco pasto, pelas serras mineiras, naquele friozinho gostoso, ótimo para fomentar ilusões e mentiras adornadas de beleza real...
Penso naqueles rapazes em suas belas casas de arte secular a vislumbrarem janelas em missão de poesia... a simplicidade estudada de versos pastoris... chego até a desvendar segredos corpóreos daquelas mocinhas em ilusão matrimonial... às vezes penso ter visto Marília em vestes brancas, mas quando a vejo, ela já não é mais de Dirceu, ela é de minha sede literária, de minha imaginação de criador de hipóteses no tempo e nas letras...
Quando imagino alguém com o nome de Cláudio Manoel da Costa, confesso que logo me vem à cabeça a ideia de um moço sofrido, que anda cabisbaixo e amargo pelas ruas ainda úmidas de sua cidade que não dá tréguas de chuva... mas o Glauceste, não... ah, esse é moço de branco... esse é moço de pastos que tem jeito de quem ama simples e quase esquece a carne... Cláudio era homem de muitos estudos... quando olho para ele, vejo um cheiro meio acre de Grécia antiga... penso em Petrarca... mas penso também num exegeta torto que tem problemas com mulheres e convivência de falácias com a família... e por isso penso em um milhão de outros nomes que, por ventura, sejam ecos seus... Mas o Glauceste, não, esse é moço manso, de sofrimento latente... é moço de quem se apertam as mãos e se diz “até mais, meu caro”, e de quem se diz “pobre, rapaz, sempre triste a escorregar pelos cantos...”, e lá adiante ia o moço pastor Glauceste Satúrnio, com seus sapatos ecoando nos prados...
E assim penso em todos eles de novo... os rapazes de boa índole, estudantes afiados do francês, com discursos de catequização política escorrendo das mãos de apoiarem mesas. Aqueles rapazes de lanternas na cabeça... acho que é isso: a tal das iluminaduras... ah, não: iluministas... isso, penso neles como reflexos desses tais iluministas... homens de razão em punho, de ideias em papel, e de coração em descaso... sinto pena daqueles moços estudantes burgueses de colarinho engomado... pensando assim, chego a sentir dó deles... imagino suas vidas tristes e entristeço com isso... dá-me a ideia de braços e pernas espalhados em postes no mundo todo, enquanto seus corações ainda dignificam o mármore em seus peitos intactos... não sei se eles foram tristes de verdade, mas desagrada-me que eles não tenham aprendido a fingir... e aqueles que não sabem fingir devem ser homens sempre muito tristes... é preciso acreditar em sua própria falácia até que ela se enverdadeirize... e aqueles moços nas tabernas escuras e úmidas, em que as únicas luzes refletidas eram as dos candeeiros adoecidos e escuridão às avessas das tais ideias iluministas não lembravam mais o que era acreditar...
Mas os guardadores de rebanhos, não... esses eram gente de verdade... bons escrevedores de versos antigos... de antes de seus tempos... e os pastores eram homens cultos que defendiam humildade de letras... mas os guardadores de rebanhos eram falsos homens-poetas de verdade...
Os jovens de preto eram definitivamente figuras obscuras e de rostos desvelados de noite. Os “poetas inconfidentes”: adornando exílios e prisões mundo a dentro... Os homens que saiam às ruas disfarçados gritando: “fugere urbem, fugere urbem!”... mas eram sofistas de seus desejos, esses rapazes... Entretanto, os pastores, não... a revolução desses era mais palpável, era mais poética... a revolução do estilo, que já nem revolucionava tanto assim... a revolução dos olhos, do prazer estóico embebido em razão, do desespero tranquilo, da dor velada... eram bons moços aqueles pastores, quase sagrados...
Mas, quando penso em todos eles, o que sinto mesmo, definitivamente como se fosse possível se definir o que se sente, é um orgulho estranho, que mesmo sabendo de onde vem e de serem suas fontes não tão límpidas assim, de tê-los todos amontoados em profusão poética num livro que não abandono nunca escalado na estante...
Theo G. Alves
Confessionário de 01 e 02 de abril de 2000.
(In: NAVEGOS – Órgão Informativo do Centro Acadêmico de Letras “Fátima Barros” – UFRN – Campus de Currais Novos – Ano II – Edição 14 – Abril/2000, p. 04).
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Theo G. Alves é poeta e um dos maiores ficcionistas do Rio Grande do Norte.
É um texto tão belo que me faz ficar pasmo! Qualquer mineiro treme ao lê-lo... Como ele pôs o coração de Minas nessas palavras!... E é um potiguar? Uma lindíssima página de literatura! Tu a mereceste!
ResponderExcluirÉ absolutamente perfeito, leio-o sempre com encantamento crescente!
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