sexta-feira, 1 de junho de 2012

CLÁUDIA AHIMSA: lúcida, lírica, insone...


Gullar e Cláudia Ahimsa (Rogério Reis/Instituto Moreira Salles)


Pequena seleção de poemas de
“NOITE SEM DORMIR: poemas timorenses” (2000).
São versos de Cláudia Ahimsa,
amiga tão dileta e alma irmã da minha, “musa do planeta Terra” nos dizeres de seu apaixonado companheiro Ferreira Gullar.
O referido livro – de uma tiragem de cem exemplares numerados e assinados pela autora – possui um PREFÁCIO PARA SER LIDO (mas não é prefácio!): das coisas mais impressionantes que já li em poesia. A obra é dedicada aos guerrilheiros das FALINTIL – vivos e mortos por Timor Leste. Cláudia Ahimsa, amo.


[1º]
Para evitar o amargo da casca
a lagarta em ziguezague vai:
ponto doce... ponto doce... depois volta
longínqua e macia pela via da doçura
que para si mesma traçou...
..........................................................
.....................pela árvore a lagarta vai.
Árvore planeta com tudo que ali habita.
Ampla nos hemisférios de folha e fundo
                        espectral e sobretudo
de uma paz territorial com que se sonha...

Cada flor em suas próprias pétalas
cada copa com raízes próprias
“cada macaco no seu galho”.

Ah, fantástico arquipélago... de tempestades invisíveis.
Estado celular de substâncias coabitantes...
E mesmo em seus limites –


uma gavinha
que noutro galho se entrance.
E mesmo as enxertias... e plantas que parasitam –
ajudam a puxar água

ajudam a respirar – coexistem.

Encosto a testa no desenho da casca
no visco luminoso deixado pela lagarta...
............................................e não posso
desviar do ponto amargo.
Amargo essa mágoa de ilha
ligada ao ladrão pelo mar...
Sem perder o gosto e a luta
Pelo doce dos caminhos –

Direito que até lagarta tem.


                                     Direito à doçura

Cláudia Ahimsa


[3º]
O cão procura e não acha.
O fogo deixou sequelas no faro.
Sabia voltar a casa...
E ao dobrar a esquina rente ao muro...
Que casa? qual nada!
Uma fumaça aqui... outra fumaça ali...
Talvez reconheça nisso
um eco de voz que resiste.
Escutou na sala do seu dono
nas ruas do abandono
tantas vezes as mesmas palavras:
                                       pátria
          ou
morte
Não sei qual é a capacidade vocabular
de um bichinho
assim ferido em seu faro cidadão...
Mas ainda mais triste que um cão sozinho
perambulando pela cidade fantasma –

É esse fumo que fica ali saindo
que fica ali saindo...
dos destroços de tudo que se amou.


Terra queimada

Cláudia Ahimsa


[6º]
Capaz de ver motivo
de fé
numa âncora:
vigio a navisfera
sob aquele céu
obscuro
dos primitivos.


Os tótens?
Excessivamente pintalgados de sangue:
A caixa dos socorros.
Os mapas das fronteiras com o inferno.
Ah, culto faraônico contra a morte...
Ah, meu nome de paz escrito num tanque
como o de Maiakovski.
Vão, missionários! cingidos
de fuzil e capacete 
vão, que é tarde!
Ó vida marinha! monstros teus 
octopus, cachalotes – Pacífico
ajuda a empurrar
pressiona o casco
arrasta a minha prece
não como fita e flor
das leves oferendas
que vão de barquinho
entre as espumas...
Toda a minha fé agora
é uma fragata e mais outra 
o destróier.


                                         Tropas de paz


Cláudia Ahimsa


[7º]
Dorme-não-dorme a cidade marítima.
Serão morcegos?
Atonalidades da noite...
Ou são filhotes das arraias?
Angústias insones...
Ou será fragrância?
Música do sândalo
das tuas montanhas –
o que ouço
desse muro de jasmim...
Confusão!
Sei apenas que a brisa
é noctâmbula também.
E sopra números
nos meus ouvidos...
Do zero às estrelas
que contavas
em lugar delas
344 mil e 580 pontos
para a Independência.
Ouço...
Contas-me
para os sonhos...
Tua história de bravos
teu regresso a ti...
Enfim... a boa notícia.
Mais que política – espiritual.

Basta uma noite sem dormir
para merecer uma alegria diurna.
E o mar não para
de revirar suas conchas
e acordar perigos.

Basta uma noite no mar
para entender
o que é desterro.


Domicílio da noite

Cláudia Ahimsa


[8º]
Talvez... eu pudesse puxar o lençol
até o supercílio
até a aurora...

Encontrar entre silêncios – um
em que se possa adormecer.
Deixar que se desfaça ao longe
a imagem
e Vênus no céu – de fora.
Mas o que há do rosto longínquo
no meu
não se encobre com lençol.

Do leste da ilha
detrás do mato
me olha
por olhos vermelhos.

Lágrimas de sangue
virão comer os pássaros
se durmo de janela aberta.
Se apago a lâmpada
o escuro esconderá
cavas olheiras
junto a buracos no universo.
Amanhã... não choro.


                                        Regresso

Cláudia Ahimsa


[10º]
O rosto desfigurado
não será esquecido.
Demora... não importa.
Faremos as cabeças extirpadas
uma a uma
célula e célula
neurônio a neurônio –
Todos de volta!
As mulheres violadas
serão de novo amadas.
Faremos amor e filhos.
Faremos os braços
as pernas arrancadas
par a par outra vez.
Carne nova para os lábios!
E a face do nosso povo
continuará
a sorrir sobre a Terra.


Avante! pois.

Cláudia Ahimsa

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O direito exclusivo de todos os poemas é reservado a Cláudia Ahimsa.

“Cláudia Ahimsa é uma poetisa que poderia ser timorense porque nela vive a alma e palpita o coração timorenses, o espírito forte de liberdade e independência, mas também de muita sensibilidade e generosidade.
Li os poemas. Mas que coisa mais linda.”

José Ramos - Horta
Nobel da Paz


“Gosto dos seus poemas,
todos feitos de amor, sonho
e fantasia. Dos protestos
que surgem, que a miséria e
a opressão tanto justificam.
Todos a revelar uma
generosidade admirável.”

Oscar Niemeyer

Um comentário:

  1. Olá Fabiano!

    Estou na aula do Prof. Dr. Manuel Tavares da Univ. Lusofona de Portugal, que acabou de ler um texto de Mia Couto... fiquei emocionadíssima, pois só me lembrava de você! Na imagem do professor e em sua fala, só me recordo do meu querido amigo.
    Obrigada pelo livro e pelo carinho.

    Beijos, Rúbia.

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