quinta-feira, 19 de abril de 2012

COM LICENÇA, POÉTICA!


COM LICENÇA, POÉTICA!

Com licença, poética!
Também quero ser poeta.
Acho que antes dos quarenta
Até publico o meu livro...

Gullar tem cabelos longos
E uma fúria aguçada
De jovem, jovem, muito jovem...
Mesmo depois dos oitenta!

Haverá lugar pra mais
Nesse trem de além de além?

Ai, meu Deus!
O tempo está se acabando!
Rugi, rugi, o tempo rugi...
Esse leão é feroz!

Eu estou ficando velho.
Chego aos cento e vinte anos?
A testa está se alargando...
Mas isso pouco interessa!

Fios do Gullar à parte,
O Drummond era careca.

(FABIANO, Antonio. “Sazonadas”, Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012).

O poema de abertura do livro “Sazonadas” de Antonio Fabiano, intitula-se “Com licença, poética!”. É quase uma brincadeira que o poeta faz com alguns de seus principais interlocutores literários. Em primeiro lugar, o título quer explicitamente lembrar outro poema, aquele com o qual Adélia Prado em 1976 estreou em poesia e abriu o seu livro “Bagagem”. Mas em Adélia lemos “Com licença poética”, ao passo que em Antonio Fabiano é a própria poética que é interpelada de modo irreverente: “Com licença, poética!”. Curioso é que o poema de Adélia Prado refere-se, intertextualmente, ao “Poema de Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade, publicado por sua vez em seu primeiro livro de poesia “Alguma Poesia” (1930). Em Antonio Fabiano esta reconstituição é importante. Longe de dissimular as influências que recebeu e muito menos querer negar a poesia que veio antes da sua, filia-se a uma tradição de poetas bons, orgulha-se dessa linhagem, sem se tornar refém dela, como se verá no todo do livro e no próprio teor espirituoso dos já referidos versos. Ora, o poema escolhido para abrir seu livro é quase um poema-piada (especialmente se o compararmos aos demais do livro, de altíssimo nível e de um lirismo que toca o absoluto!), mas não tem nada de ingênuo ou casual. Funciona como importante chave de leitura para o mais. Talvez nele o poeta queira dizer que a sua obra tem vínculo real com o tempo presente e com outras vozes da literatura, que sua poesia também aprendeu dos grandes mestres das letras de seu país, e nasce já consciente da difícil tarefa que é dialogar em nível de excelência com os mesmos: “Haverá lugar pra mais / Nesse trem de além de além?”. Trem, aqui, tanto pode ser sinônimo de “coisa”, em relação à fala e aos poetas mineiros, como pode referir-se ao célebre “Poema Sujo” de Ferreira Gullar, poeta citado. O livro possui muitos pontos de verdadeira erudição, sob véus de simplicidade. Em certo sentido é preciso ter relativa cultura (histórica, literária, inclusive bíblica), para entendê-lo bem e fruí-lo. Mas a beleza, esta linguagem universal, é um de seus fortes atributos.
Gullar octogenário, com “cabelos longos” e “fúria aguçada / De jovem, jovem, muito jovem...”, contrasta com a insinuação de calvície (“Eu estou ficando velho / (...) / A testa está se alargando...”) do então jovem poeta, acomia esta que é acima de tudo indício de que ele se demorou no livro, o qual, no entanto, em via de fato, chega antes dos seus quarenta, ainda que inevitavelmente marcado pelo tempo. Talvez daí até se pudesse dizer que o título, “Sazonadas”, tenha querido sugerir uma poesia já amadurecida. Mas isso, ao que perece, está muito longe da pretensão do poeta, ou seja, é uma ideia estranha à intencionalidade do conjunto do livro, ainda que sejam, sim, versos muito bons e maduros. O poeta quis, antes, pelo que se pode inferir, referir-se com “Sazonadas” ao pomar de estrelas, que aparecerá adiante, de onde parece ter extraído o título do livro sem mais. São muitos os poemas líricos, como já se disse, e o livro consegue ser doce (como uma fruta madura), mas sem qualquer afetação. Está aí um livro de delicadeza, como reclamaria outro grande poeta, Affonso Romano de Sant’Anna, este com quem Antonio parece ter frequente relação e de quem recebe, se não na poesia, seguramente na mais ampla esfera intelectual uma notável influência.
Razão e sentimento parecem estar bem integrados no livro. Talvez valesse lembrar que seu autor é um homem da clausura, na vida real (carmelita descalço); por isso, não são estranhas à obra algumas imagens bíblicas e elementos religiosos do seu cotidiano, tanto quanto a contemplação e o silêncio que é fundamental no Carmelo. Será que poderíamos falar de alguma mística nestes poemas, ao menos como herança cultural, já que os carmelitas têm há séculos tradição de místicos?
O tempo não urge para Antonio Fabiano no poema de abertura, para ele o tempo rugi: é um leão feroz. Mas será que o tempo pode tanto assim? Não será ele, de alguma forma, domado pelo poeta? No poema, o autor diz: “O tempo está se acabando!”; isto parece ambíguo, se quisermos entender que o poeta, maliciosamente, insinua aí o fim do tempo (não o fim dele próprio!), proclamando sua vitória sobre o tempo ou seu ingresso na atemporalidade.
À medida que avançam as estrofes, dobra-se e triplica-se o primeiro e simbólico número (“quarenta”... “oitenta”... “cento e vinte anos”...), sinalizando ciclos de alguma coisa, bem como desejo de superação: “Chego aos cento e vinte anos?”. O tempo, aqui prenunciado, marcará o livro em outras partes, com progressiva reflexão existencial, ao lado de elementos como a noite, o vento etc.
O desfecho do poema é realmente surpreendente: em face de um ícone da poesia, que é o grande e jovial Gullar de oitenta anos (representado na superabundância de seus fios de “cabelos longos”), o nosso outro poeta, em sua suposta modéstia e risível presságio de velhice (coisa que na poesia de Antonio Fabiano é sempre positiva, qual marca de ouro do tempo), inesperadamente evoca, de modo analógico, o poeta maior (a exorcizar Gullar?) saindo-se justificado: “Eu estou ficando velho. / Chego aos cento e vinte anos? / A testa está se alargando... / Mas isso pouco interessa! // Fios do Gullar à parte, / O Drummond era careca.”

T. Araújo
Natal - RN

2 comentários:

  1. Obrigado, Tiago. Não creio em tudo que diz, mas acolho humildemente esta sua tão grande generosidade.

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  2. A poesia de Fabiano, além do posto por Tiago, adequadamente, é de um amor inesgotável, ele na clausura, o eu-lírico solto na imensidão. Nesse amor, me vi embalando a minha filha com umas poesias. Concordo que é preciso ter conhecimento de mundo para sorver com avidez este refinamento, mas minha filha aos cinco anos também mostrou que a poesia de Fabiano grita um amor que se ouve, também, com o coração.

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