COM
LICENÇA, POÉTICA!
Com licença, poética!
Também quero ser poeta.
Acho que antes dos quarenta
Até publico o meu livro...
Gullar tem cabelos longos
E uma fúria aguçada
De jovem, jovem, muito jovem...
Mesmo depois dos oitenta!
Haverá lugar pra mais
Nesse trem de além de além?
Ai, meu Deus!
O tempo está se acabando!
Rugi, rugi, o tempo rugi...
Esse leão é feroz!
Eu estou ficando velho.
Chego aos cento e vinte anos?
A testa está se alargando...
Mas isso pouco interessa!
Fios do Gullar à parte,
O Drummond era careca.
(FABIANO, Antonio. “Sazonadas”, Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012).
O poema de abertura do livro “Sazonadas” de Antonio
Fabiano, intitula-se “Com licença, poética!”. É quase uma brincadeira que o
poeta faz com alguns de seus principais interlocutores literários. Em primeiro
lugar, o título quer explicitamente lembrar outro poema, aquele com o qual
Adélia Prado em 1976 estreou em poesia e abriu o seu livro “Bagagem”. Mas em
Adélia lemos “Com licença poética”, ao passo que em Antonio Fabiano é a própria
poética que é interpelada de modo irreverente: “Com licença, poética!”. Curioso
é que o poema de Adélia Prado refere-se, intertextualmente, ao “Poema de Sete
Faces” de Carlos Drummond de Andrade, publicado por sua vez em seu primeiro
livro de poesia “Alguma Poesia” (1930). Em Antonio Fabiano esta reconstituição
é importante. Longe de dissimular as influências que recebeu e muito menos querer
negar a poesia que veio antes da sua, filia-se a uma tradição de poetas bons, orgulha-se
dessa linhagem, sem se tornar refém dela, como se verá no todo do livro e no
próprio teor espirituoso dos já referidos versos. Ora, o poema escolhido para
abrir seu livro é quase um poema-piada (especialmente se o compararmos aos
demais do livro, de altíssimo nível e de um lirismo que toca o absoluto!), mas
não tem nada de ingênuo ou casual. Funciona como importante chave de leitura
para o mais. Talvez nele o poeta queira dizer que a sua obra tem vínculo real com
o tempo presente e com outras vozes da literatura, que sua poesia também
aprendeu dos grandes mestres das letras de seu país, e nasce já consciente da
difícil tarefa que é dialogar em nível de excelência com os mesmos: “Haverá
lugar pra mais / Nesse trem de além de além?”. Trem, aqui, tanto pode ser sinônimo
de “coisa”, em relação à fala e aos poetas mineiros, como pode referir-se ao
célebre “Poema Sujo” de Ferreira Gullar, poeta citado. O livro possui muitos
pontos de verdadeira erudição, sob véus de simplicidade. Em certo sentido é
preciso ter relativa cultura (histórica, literária, inclusive bíblica), para
entendê-lo bem e fruí-lo. Mas a beleza, esta linguagem universal, é um de seus
fortes atributos.
Gullar octogenário, com “cabelos longos” e
“fúria aguçada / De jovem, jovem, muito jovem...”, contrasta com a insinuação
de calvície (“Eu estou ficando velho / (...) / A testa está se alargando...”)
do então jovem poeta, acomia esta que é acima de tudo indício de que ele se demorou
no livro, o qual, no entanto, em via de fato, chega antes dos seus quarenta, ainda
que inevitavelmente marcado pelo tempo. Talvez daí até se pudesse dizer que o título,
“Sazonadas”, tenha querido sugerir uma poesia já amadurecida. Mas isso, ao que perece,
está muito longe da pretensão do poeta, ou seja, é uma ideia estranha à
intencionalidade do conjunto do livro, ainda que sejam, sim, versos muito bons
e maduros. O poeta quis, antes, pelo que se pode inferir, referir-se com
“Sazonadas” ao pomar de estrelas, que aparecerá adiante, de onde parece ter
extraído o título do livro sem mais. São muitos os poemas líricos, como já se
disse, e o livro consegue ser doce (como uma fruta madura), mas sem qualquer afetação.
Está aí um livro de delicadeza, como reclamaria outro grande poeta, Affonso
Romano de Sant’Anna, este com quem Antonio parece ter frequente relação e de
quem recebe, se não na poesia, seguramente na mais ampla esfera intelectual uma
notável influência.
Razão e sentimento parecem estar bem
integrados no livro. Talvez valesse lembrar que seu autor é um homem da
clausura, na vida real (carmelita descalço); por isso, não são estranhas à obra
algumas imagens bíblicas e elementos religiosos do seu cotidiano, tanto quanto
a contemplação e o silêncio que é fundamental no Carmelo. Será que poderíamos
falar de alguma mística nestes poemas, ao menos como herança cultural, já que
os carmelitas têm há séculos tradição de místicos?
O tempo não urge para Antonio Fabiano no
poema de abertura, para ele o tempo rugi: é um leão feroz. Mas será que o tempo
pode tanto assim? Não será ele, de alguma forma, domado pelo poeta? No poema, o
autor diz: “O tempo está se acabando!”; isto parece ambíguo, se quisermos
entender que o poeta, maliciosamente, insinua aí o fim do tempo (não o fim dele
próprio!), proclamando sua vitória sobre o tempo ou seu ingresso na
atemporalidade.
À medida que avançam as estrofes, dobra-se e
triplica-se o primeiro e simbólico número (“quarenta”... “oitenta”... “cento e
vinte anos”...), sinalizando ciclos de alguma coisa, bem como desejo de
superação: “Chego aos cento e vinte anos?”. O tempo, aqui prenunciado, marcará
o livro em outras partes, com progressiva reflexão existencial, ao lado de
elementos como a noite, o vento etc.
O desfecho do poema é realmente
surpreendente: em face de um ícone da poesia, que é o grande e jovial Gullar de
oitenta anos (representado na superabundância de seus fios de “cabelos longos”),
o nosso outro poeta, em sua suposta modéstia e risível presságio de velhice (coisa
que na poesia de Antonio Fabiano é sempre positiva, qual marca de ouro do
tempo), inesperadamente evoca, de modo analógico, o poeta maior (a exorcizar
Gullar?) saindo-se justificado: “Eu estou ficando velho. / Chego aos cento e
vinte anos? / A testa está se alargando... / Mas isso pouco interessa! // Fios
do Gullar à parte, / O Drummond era careca.”
T. Araújo
Natal - RN
Obrigado, Tiago. Não creio em tudo que diz, mas acolho humildemente esta sua tão grande generosidade.
ResponderExcluirA poesia de Fabiano, além do posto por Tiago, adequadamente, é de um amor inesgotável, ele na clausura, o eu-lírico solto na imensidão. Nesse amor, me vi embalando a minha filha com umas poesias. Concordo que é preciso ter conhecimento de mundo para sorver com avidez este refinamento, mas minha filha aos cinco anos também mostrou que a poesia de Fabiano grita um amor que se ouve, também, com o coração.
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