Antonio Fabiano
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
NOITE - Wisława Szymborska
Deus disse: toma teu filho, teu único filho,
a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá,
onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes
que eu te indicar.
Mas o que foi que o Isaac fez?
seu padre me diga.
Quebrou a vidraça do vizinho?
Rasgou a calça nova que usava
quando pulou a cerca de ripa?
Roubou um lápis?
Enxotou as galinhas?
Colou na prova?
Os adultos que durmam
um sono tolo assim,
esta noite
eu preciso vigiar até a aurora.
A noite se cala,
mas se cala contra mim,
escura
como o fervor de Abraão.
Onde vou me esconder,
quando em mim pousar
o olhar bíblico de Deus
como pousou em Isaac?
Antigos feitos se quiser
Deus pode ressuscitar.
Por isso gelada de medo
cubro a cabeça com o cobertor.
Algo logo vai
embranquecer diante da janela,
encher o quarto com o zumbido
de um pássaro ou do vento.
Mas não há nenhum pássaro
de asas grandes como aquelas,
e nem vento
de camisa assim tão longa.
Deus vai fingir
que voou para dentro por acaso,
que não era para estar realmente ali,
e depois vai levar meu pai
para a cozinha confabular sobre o caso
e com uma grande trombeta lhe soprar ao ouvido.
E quando amanhã bem cedo
meu pai pela estrada me levar,
vou, vou,
enegrecida de ódio.
Em nenhum amor, nenhuma bondade,
vou acreditar,
mais indefesa
do que as folhas de novembro.
Nem confiar,
de nada vale a confiança.
Nem amar,
carregar um coração vivo no peito.
Quando acontecer o que tem que acontecer,
quando acontecer,
vai me bater um fungo seco
em vez do coração.
Deus espera
e da sacada das nuvens espia
para ver se alta e bela
queima a fogueira
e verá como
se morre de teimosia,
porque vou morrer,
não vou deixar que me salve!
Desde aquela noite
além dos limites de um sono malsão,
desde aquela noite
além dos limites da solidão,
Deus começou
pouco a pouco
devagarinho
a mudança
do literal
para o metafórico.
Wisława Szymborska
(Um amor feliz / Wisława Szymborska; seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien — 1ª- ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2016.)
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
MARIA LÚCIA DAL FARRA
SOBREVIDA
Matéria ardente que o fogo
arrebata para si
assim a mariposa.
Venho clamar por clemência:
por que deve fenecer
quem se acumula de luz?
Canto
(portanto)
às escuras.
MORADA
Nesta casa incerta
os dias são longos, abandonados pelo
tempo
que desistiu e desertou dos seus.
Crescer ou morrer já é igual:
ambos tocados pelo mesmo fogo do que não se sabe
tangidos por sílabas frias
nos ecos corridos da minha voz.
Abrir as torneiras para ver fluir
o que não se retém.
Olhar no espelho para conferir os pontos
cegos.
Erigir aqui o mausoléu.
O GALO
Me confundo
supondo se este galo é o mesmo
daquela madrugada –
o do canto repetido, o da crista abrolhada do sangue
de Cristo.
O mesmo que canta no vizinho
e que ilustra (aos sonolentos) sua grande solidão.
O que bica escorpiões e limpa os quintais –
ofício que lhe depura ainda mais a plumagem
as notas
a amplidão.
Galo feito a golpes na madeira silenciosa
– só o canivete esculpe-lhe o pé forcado.
Por causa do ambíguo parentesco
não sei se o escultor o sangra
ou se lhe bota asas de
Mercúrio.
Carteiro dos altos
envia mensagens a quem repousa
e muito traduz
(aos de insone feitio)
do quanto retalha a noite
cada cacarejo seu.
Maria Lúcia Dal Farra
domingo, 20 de julho de 2025
sábado, 5 de julho de 2025
INFÂNCIA - Daniel Faria
e jogava ao pião com Deus
enquanto minha mãe estendia roupa
e o meu pai mendigava pão
e minha alegria nesse tempo
era muito próxima da dos meninos
e de Deus que ganhava sempre
e não sei quem perdi primeiro:
o pião ou Deus
apenas sei que Deus continua
a jogar com outros meninos
e que no Outono quando saio à praça
nos sentamos e falamos muito
do suave rodopiar das folhas
Daniel Faria
Oxálida, 1992
segunda-feira, 23 de junho de 2025
domingo, 22 de junho de 2025
DO INESGOTÁVEL
Observei-te sabendo já que eras um homem – a cabeça
De
pelicano dobrado
O bico
que te rasgava para fora
Adoeci
como lâmpada que se funde
A coroa
de espinhos sobre mim – a lembrança
Dobrei-me
nas tuas asas
Nas
chagas ainda quentes
No voo
como gota de sangue no peito
Que vive.
No coração
Que
partes e distribuis com as mãos
*
Todas as
minhas fontes vêm de ti
As
nascentes
E amo-te
com a constância do moribundo que respira
Já sem
saber de que lado o visita a morte
Procuro a ligação entre ti e a luz muito
[miudinha depois dos temporais
Entre a
luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas
Desconheço
o colar onde unes tudo
Procuro
entender como é que moldas
Os meus
pés ao equilíbrio que os desloca no chão
Sei que
és tu que me levantas
Que
remendas o meu corpo cada dia
Em ti
encontro a pulsação
Que
rebenta – uma artéria como nunca
Tinha
jorrado. Cratera onde durmo
Recluso,
árvore à chuva
Em
dificuldade extrema
De
respiração
Ponho a cabeça entre os ramos, lanço
[os braços para fora
Como um
pássaro entre um bando
De
disparos
Tu moves
as agulhas, tu unes de novo
As minhas
asas à curva do céu
*
E desço à
verdura das tuas mãos
Como as
manadas que buscam as minas
Faltam-me
apenas os pés feridos dos que
[peregrinam
Faltam-me
no chão duro das promessas
Os
joelhos
Queria
tanto andar em redor, rodear-te,
[se soubesses como
Queria
amar-te tanto
O que sei
da unidade é a túnica
Tirada à
sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro
escrito por dentro e por fora
Silêncio
escrito por dentro
Palavra
escrita a toda a volta da história
O que sei
do céu
É a mão
com que sossegas os ventos
Desço à
escritura como os veados aos salmos
FARIA, Daniel – POESIA – Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal
por Assírio & Alvim. Porto
Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.



