segunda-feira, 29 de setembro de 2025

NOITE - Wisława Szymborska


Deus disse: toma teu filho, teu único filho,

a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá,

onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes

que eu te indicar.


 Mas o que foi que o Isaac fez?

 seu padre me diga.

 Quebrou a vidraça do vizinho?

 Rasgou a calça nova que usava

 quando pulou a cerca de ripa?

 Roubou um lápis?

 Enxotou as galinhas?

 Colou na prova?


 Os adultos que durmam

 um sono tolo assim,

 esta noite

 eu preciso vigiar até a aurora.

 A noite se cala,

 mas se cala contra mim,

 escura

 como o fervor de Abraão.


 Onde vou me esconder,

 quando em mim pousar

 o olhar bíblico de Deus

 como pousou em Isaac?

 Antigos feitos se quiser

 Deus pode ressuscitar.

 Por isso gelada de medo

 cubro a cabeça com o cobertor.


 Algo logo vai

 embranquecer diante da janela,

 encher o quarto com o zumbido

de um pássaro ou do vento.

 Mas não há nenhum pássaro

 de asas grandes como aquelas,

 e nem vento

 de camisa assim tão longa.


 Deus vai fingir

 que voou para dentro por acaso,

 que não era para estar realmente ali,

 e depois vai levar meu pai

 para a cozinha confabular sobre o caso

 e com uma grande trombeta lhe soprar ao ouvido.


 E quando amanhã bem cedo

 meu pai pela estrada me levar,

 vou, vou,

 enegrecida de ódio.

 Em nenhum amor, nenhuma bondade,

 vou acreditar,

 mais indefesa

 do que as folhas de novembro.

 Nem confiar,

 de nada vale a confiança.

 Nem amar,

 carregar um coração vivo no peito.

 Quando acontecer o que tem que acontecer,

 quando acontecer,

 vai me bater um fungo seco

 em vez do coração.


 Deus espera

 e da sacada das nuvens espia

 para ver se alta e bela

 queima a fogueira

 e verá como

 se morre de teimosia,

 porque vou morrer,

não vou deixar que me salve!


 Desde aquela noite

 além dos limites de um sono malsão,

 desde aquela noite

 além dos limites da solidão,

 Deus começou

 pouco a pouco

 devagarinho

 a mudança

 do literal

 para o metafórico.


Wisława Szymborska


(Um amor feliz / Wisława Szymborska; seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien — 1ª- ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2016.)


quarta-feira, 27 de agosto de 2025

MARIA LÚCIA DAL FARRA


Divulgação


SOBREVIDA


Matéria ardente que o fogo

arrebata para si

assim a mariposa.


Venho clamar por clemência:


por que deve fenecer

quem se acumula de luz?


Canto

(portanto)


às escuras.



MORADA


Nesta casa incerta

os dias são longos, abandonados pelo

tempo

que desistiu e desertou dos seus.


Crescer ou morrer já é igual:

ambos tocados pelo mesmo fogo do que não se sabe

tangidos por sílabas frias

nos ecos corridos da minha voz.


Abrir as torneiras para ver fluir

o que não se retém.

Olhar no espelho para conferir os pontos

cegos.


Erigir aqui o mausoléu.



O GALO


Me confundo

supondo se este galo é o mesmo

daquela madrugada –

o do canto repetido, o da crista abrolhada do sangue

de Cristo.

O mesmo que canta no vizinho

e que ilustra (aos sonolentos) sua grande solidão.

O que bica escorpiões e limpa os quintais – 

ofício que lhe depura ainda mais a plumagem

as notas

a amplidão.


Galo feito a golpes na madeira silenciosa

– só o canivete esculpe-lhe o pé forcado.


Por causa do ambíguo parentesco 

não sei se o escultor o sangra

ou se lhe bota asas de 

Mercúrio.


Carteiro dos altos

envia mensagens a quem repousa

e muito traduz

(aos de insone feitio)

do quanto retalha a noite


cada cacarejo seu.


Maria Lúcia Dal Farra


sábado, 5 de julho de 2025

INFÂNCIA - Daniel Faria

 



e jogava ao pião com Deus

enquanto minha mãe estendia roupa

e o meu pai mendigava pão


e minha alegria nesse tempo

era muito próxima da dos meninos

e de Deus que ganhava sempre


e não sei quem perdi primeiro:

           o pião ou Deus

apenas sei que Deus continua

a jogar com outros meninos


e que no Outono quando saio à praça

nos sentamos e falamos muito

do suave rodopiar das folhas


Daniel Faria

Oxálida, 1992


domingo, 22 de junho de 2025

DO INESGOTÁVEL


Daniel Faria


Observei-te sabendo já que eras um homem – a cabeça

De pelicano dobrado

O bico que te rasgava para fora

 

Adoeci como lâmpada que se funde

A coroa de espinhos sobre mim – a lembrança

 

Dobrei-me nas tuas asas

Nas chagas ainda quentes

 

No voo como gota de sangue no peito

Que vive. No coração

 

Que partes e distribuis com as mãos

 

 

*

 

 

Todas as minhas fontes vêm de ti

As nascentes

E amo-te com a constância do moribundo que respira

Já sem saber de que lado o visita a morte

 

Procuro a ligação entre ti e a luz muito 

                    [miudinha depois dos temporais

Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas

Desconheço o colar onde unes tudo

 

Procuro entender como é que moldas

Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão

Sei que és tu que me levantas

Que remendas o meu corpo cada dia

 

Em ti encontro a pulsação

Que rebenta – uma artéria como nunca

Tinha jorrado. Cratera onde durmo

Recluso, árvore à chuva

Em dificuldade extrema

De respiração

 

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço 

                                [os braços para fora

Como um pássaro entre um bando

De disparos

 

Tu moves as agulhas, tu unes de novo

As minhas asas à curva do céu

 

 

*

 

 

E desço à verdura das tuas mãos

Como as manadas que buscam as minas

 

Faltam-me apenas os pés feridos dos que

[peregrinam

Faltam-me no chão duro das promessas

Os joelhos

 

Queria tanto andar em redor, rodear-te,

                            [se soubesses como

Queria amar-te tanto

 

O que sei da unidade é a túnica

Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida

É o livro escrito por dentro e por fora

Silêncio escrito por dentro

Palavra escrita a toda a volta da história

 

O que sei do céu

É a mão com que sossegas os ventos

 

Desço à escritura como os veados aos salmos

 

 

FARIA, Daniel – POESIA – Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal por Assírio & Alvim. Porto Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.