Este
é um livro de interiores. De alguém que, por dentro de seus versos, não se
identifica – diferentemente de como procedemos todos nós e com a maior
desenvoltura. Não, suas digitais estão em outra parte, quem sabe se mercê da
sua formação religiosa e haicaísta, em que a cultura do ego não tem presença.
No entanto, sua
emissão isenta não é em exato a executada mercê dessas duas místicas neste
Poeta harmonizadas, pois que sua voz filtra, com delicadeza, respeito e pudor
(faculdades desaparecidas do nosso tempo) tudo o que contempla, depositando
indelével, mas com a maior discrição, a sua presença volátil no mundo. E esse
sinal comedido é o da muita simplicidade, porque temos aqui um Poeta descalço:
ele permanece para sempre despojado e humilde diante da magnitude da vida, da
natureza, da presença divina esparramada pelo universo, diante de si próprio e
dos outros. Creio saber explicar por quê.
Dissolvendo
a sua energia na palavra, ela o interioriza a ponto de transubstanciá-lo
naquilo que ele escreve, sem denunciá-lo, entretanto, como persona, tornando-o
quase etéreo: é quando o foco de atenção se desloca para aquilo que as palavras
erguem e não para o seu emissor. Porque, quanto mais não seja, se, de fato,
alguma coisa ele realmente “quer” é apenas uma “clave que me leia e não me
explique” – essa a sua divisa, o seu brasão.
Alguém me dirá,
certeiro, que esse processo de metamorfose da palavra é componente intrínseco a
todo ato de escrita poética, ou melhor, que é mesmo o seu ponto de partida. No
entanto, no caso de Fabiano, quero destacar que esse é o seu ponto de chegada,
depuração obtida com árdua dedicação e imenso amor. Que, nele, esse estágio é a
própria virtualidade do ato, no sentido de que o nosso Poeta produz um recatado
enxugamento de pessoa ou de quaisquer outros atributos que possam comportar
normalmente esse proceder. E, embora possa proferir “eu”, ele só sabe
volatilizar-se e reunir-se ao Um.
Fabiano trabalha o
núcleo mesmo do que se considera um poema, o nervo das palavras e das coisas,
num impressionante despojamento (carmelita?) que descerra um mundo ainda virgem
de significados, que comove qualquer leitor e provoca em nós esse “tremor de
mãos” e lágrimas nos olhos.
Daí que eu
considere, de novo, que é feito de interiores este livro. Neste caso, porque se
trata do cerne mesmo do conceito de poesia. Depois, porque os interiores
potiguares e os mineiros, suas duas expressivas vivências, se deixam vislumbrar
aqui, compondo uma imagem de frescura de paisagens, de ambientes caseiros, de hábitos
interioranos esquecidos, de natureza solta.
Lugares que
comportam, por exemplo, um sol que, acobertado pela penumbra do crepúsculo,
torna-se o “olho de pitomba” da noite. Camaradagem rústica que acolhe o
bamboleio de um homem, cuja comicidade transforma seu corpo em “um carro bípede
/ desgovernado”, tal qual nos gracejos de Chaplin. O ar parado dos sítios, tão
repletos de gramíneas, exprime a sensação de que é “como se tudo existisse /
para findar em vida / ainda que vida não seja começo / nem fim das coisas”.
Há, em Fabiano,
povoados em que o “trem / rasga o rascunho do poema”; campos onde “um enxame de
abelhas corta / meu pensamento”; pomar onde se pode ouvir e usufruir de como
“canta a flor avoante”, a “florzinha alada” que é o “sabiá”.
Tudo isso, porque
é com “p” de “pedra” que se faz o “poeta” – o enfrentamento da rudeza do
Indecifrável – e é só por isso que “os peixes” podem saltar “contra a corrente”
numa “piracema dos sentidos”.
Cavando essa rocha
empedernida, já caberá ao Poeta perguntar, por exemplo, “quantos tons tem / a
cor do luto”. Ou, já então, “à sombra de um cajueiro”, permitir-se considerar
pacificamente se “termina assim em líquido silêncio a vida”.
Pode-se ouvir, em
seus poemas, o crepitar do fogão de lenha da avó, que “acorda o mundo”,
enquanto abarrota “de eternidade o vazio da cozinha”, sobretudo depois que se
partiu a velha “cristaleira”, que, malgrado tudo, não pôde suportar “o peso de
tanta vida”.
Para além disso, a
“ponte de Igapó (...) / num salto acrobático perfeito / mergulha a minha alma /
que não nada”, de maneira que a terra de origem acaba por ficar tão distante
até “tão mais que nem mãos nem sonho alcançam...” De modo que há “uma solidão
tão sozinha que nem se sabe dizer em divã”.
No entanto, a
“lembrança / é uma flor de guarda-chuva / avessado pelo vento / em repentino
temporal”, e quando o pica-pau “rompe o silêncio de anos / na árvore antiga”, o
“mundo estala no jardim de casa. / É a natureza e sou eu / no coração desta
árvore a bater / – toc... toc... toc... / Ó flama viva! / A noite cai pequena /
sobre os meus bonsais.”
Portanto, o Poeta
se torna capacitado para ler e conhecer os “semitons” que tecem a vida. E livre
para constatar que é impossível “dizer em palavras / o ranger dos bambus”, a
“beleza” que dança “sobre as mãos erguidas / do bambuzal”; o “verde” que é o
“aplauso das palmeiras”; o “arvoredo” que “estremece e requebra-se / debaixo
dos pés de Deus”; as “carpas” que se misturam “às folhas que caem” sobre o
lago.
Então – e esta é a grande questão metafísica que esse “tremor” nos depõe: – como “dizer em palavras” e “sem macular a Presença” todos estes poemas, sobretudo quando a natureza inteira, “de um canto do orbe a outro / em sustenidos e bemóis / faz-se tapete e escolta / para Ele passar”?!
Maria Lúcia Dal Farra
(FABIANO, Antonio. Tremor de Mãos, Mossoró: Sarau das Letras, 2025.)
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