Fotografia de Rakesh Rocky
Em caso de dúvidas, retome os passos de Matsuo Bashô, mas
calcando o barro antes que endureça. Desde que o velho mestre iniciou a sua
caminhada, nunca mais parou, atravessando a Grande Muralha da China, o deserto
de Gobi, depois a Praça Vermelha, até chegar a Paris. Também uma nau de
imigrantes japoneses que traziam em seus baús, nos diários surrados, versos de
esperança nos cafezais paulistas, por aqui aportou. Vários os caminhos, com
pegadas em direções que apontavam as terras do Ocidente.
O haicai que aprendi a
compor faz parte desta história de imigrantes, passando por Masaoka Shiki,
Kyoshi Takahama, Nenpuku Sato e H. Masuda Goga. Os dois últimos, imigrantes
sonhadores, que mancharam a camisa branca com a terra vermelha do interior de
São Paulo. Aqui instalados, não só cultivaram a terra, mas também plantaram as
sementes do haicai, que chamavam de haiku. Não importa a designação, a
composição é a mesma.
A crença de que o haicai poderia ser composto, de modo
tradicional, em língua portuguesa, se deve muito à insistência de H. Masuda
Goga junto aos seus discípulos. Estamos na terceira geração de haicaístas que
compõem desta forma. Utiliza-se na composição o termo caro do kigo*, não sendo substituído por
nenhum equivalente em português.
Da atual geração, que muito tem contribuído
para valorizar esta arte, cito Antonio Fabiano, que no ensejo publica a obra
Aragem. Tenho, de alguma forma, acompanhado a sua produção na imprensa local.
Não se trata de elogiar o seu trabalho, que em Aragem superou as minhas
expectativas. De fato, Fabiano tem se esforçado em suas pesquisas no campo da
linguagem e da observação.
Um haicai me chamou a atenção:
casebre à venda –
um lírio branco a pender
no caos da cidade
Sendo o lírio branco o kigo deste, o contraste está
justamente no caos da cidade. O observador da natureza mantém um olhar atento
aos acontecimentos mais fúteis que, em sua simplicidade, podem acabar sendo
relegados a algo sem importância. O haicaísta não julga, apenas contempla e,
assim, cessa qualquer intervenção intelectual. Quando isso acontece, forma-se
uma amálgama entre o haicaísta e o assunto da composição. Não há mais ego. Nem
interessa quem é o autor. O trabalho torna-se algo a ser compartilhado com os
leitores, cada um destes conforme a sua sensibilidade.
A cidade, comumente
vista como espaço do caos, pode ser também o lugar em que é possível perceber
algo tão singelo como o lírio branco. Mas, justamente onde existe o caos, o
haicai está presente em sua forma visceral e latente. Enganam-se aqueles que
pensam que o caos é uma produção da cultura e, inversamente, a natureza o
espaço da harmonia. O caos se presencia de igual maneira na natureza física, na
confusão das cores durante a florada, no nascimento e na morte, no crescimento
e na destruição.
silêncio abissal –
no horizonte em chamas
branca flor de cacto
Levando-se em consideração que o caos é uma realidade que
nos cerca, o cuidado excessivo na composição do haicai, por uma questão
ideológica, acaba por impor uma ordem no mundo através da linguagem e deturpa
aquilo que se apresenta de maneira própria. Mas o haicai tem um viés torto.
Nesse caso, nada melhor do que mostrar a natureza em sua face verdadeira:
anjo e trombeta
em mármore esculpidos –
os
brancos jasmins
Em atitude contemplativa compomos os haicais, sem acabar com
o ego, mas deixando-o suspenso, evitando sua interferência naquilo que
percebemos com os nossos sentidos. Para os iniciantes, nem sempre isso é
possível, pois a mente não se acalma, luta para se impor, dar a sua opinião,
mostrar que existe e necessita sobreviver. Pode ser diferente disto:
carrilhão silente –
noite vazada de
estrelas
no pátio do claustro
O silêncio é uma grande dádiva, pois a natureza se apresenta
de maneira inteira, às vezes assustadora, também engraçada, contraditória, ou
apenas natureza:
trens de Santiago –
nos cimos da
cordilheira
só silêncio e neve
Nestes anos de pesquisa e vivência no haicai, alguma coisa
devo ter aprendido. Quando o mestre partiu, duas possibilidades se abriram:
penetrar fundo ou abandoná-lo. Nesta caminhada solitária, errando passos,
acertando outros, a argila calcada secou. Ficou mais fácil caminhar, pois os
passos estavam marcados onde pisar. Tenho grande fé em Antonio Fabiano, que
continue nesta empreitada de caminhar, nas trilhas de Matsuo Bashô. Enquanto
houver caminhantes, o haicai continuará florescendo.
Mais uma reflexão: a
natureza a que se refere a composição do haicai está diante do poeta como
dentro dele. Digo, a Natureza como o universo todo, a lua e as nuvens, o vento
e o sol, o pé de mexerica e a flor de ipê, as manifestações humanas, o homem e
o próprio haicaísta. Não imagino o haicaísta separado da natureza, bem como a
natureza do próprio haicaísta distante de sua composição.
Se a leitura de uma
coletânea de haicais tem a capacidade de mudar a concepção do mundo, acho que
alguma coisa mudou também em mim. Mais do que qualquer euforia, trouxe-me um
imenso silêncio. Um silêncio de eternidade.
Francisco Handa
Doutor
em História, monge budista do Templo Busshinji e um dos fundadores do Grêmio
Haicai Ipê.
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[*] Este vocábulo foi adotado pelos nossos literatos e
continua sendo utilizado no Brasil com a mesma função que exerce em sua origem:
palavra da estação, eixo de sustentação do haicai tradicional.
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