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domingo, 2 de outubro de 2011

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA – entrevistado por Antonio Fabiano




ANTONIO FABIANO: Muitos gênios se encontram no mesmo Affonso Romano de Sant’Anna: o jornalista influente, o teórico, o crítico, o ensaísta, o articulador cultural, o professor, o militante político, o cronista, o poeta etc. No mesmo escritor, a prodigiosa capacidade de ser muito bom em cada uma dessas coisas. Seu público é vastíssimo, no Brasil e também no exterior. Pergunto: na constelação de homens que é o nosso mesmo Affonso Romano de Sant’Anna, qual lugar ocupa o ‘exclusivamente poeta’?

ARS: Tirando suas amabilidades, a poesia pervaza tudo o que faço. Está na estrutura de alguns ensaios, está nas crônicas. Ser poeta é uma forma verbal de articular o real e a fantasia. Aliás, já disse várias vezes que o real é apenas a parte mais visível da fantasia.
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ANTONIO FABIANO: Roberto Drummond chegou a dizer em entrevista, certa vez, que o poeta que há em Affonso Romano de Sant’Anna deveria assassinar os outros criadores que coexistem nele, para o poeta prevalecer e nos dar a expressão máxima da melhor poesia de que é herdeiro. Ele considerou imperdoável seu desperdiçar-se nos outros criadores. O que acha disso?

ARS: Ele sacou as coisas. Acho até que foi por causa dele que levei QUE PAÍS E ESTE? para ser publicado pelo Jornal do Brasil em 1980. Claro que eu me expandi em outros gêneros. Por necessidade, compulsão também. A poesia é devoradora . Às vezes ela até mete medo. É possessiva. Aliás, toda forma de arte é possessiva. É como o amor. Ou então, é como o domador que tem que ficar na jaula com o chicote e o banquinho manobrando a fera sem se deixar devorar por ela.
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ANTONIO FABIANO: Seu grande livro de poesia, “Que país é este?” (1980), lançado ainda durante a ditadura militar, foi reeditado há pouco pela Rocco, no ensejo da celebração dos trinta anos de sua impactante primeira publicação. Não é comum vermos tanta agitação em torno de uma obra que nasceu antes mesmo da maioria de seus atuais leitores. E, no entanto, o público jovem saudou e leu isso com o entusiasmo e o espanto dos que o leram há trinta anos. A que se deve a perturbadora atualidade de “Que país é este?”, e o que nos diz pessoalmente o pai da obra, três décadas depois?

ARS: Esse livro tem me surpreendido muito. Nessa reedição pelos 30 anos encontrei pessoas que, nascidas depois da ditadura se debruçavam sobre os versos. Alguns amigos me disseram que esse poema teve um papel importante no processo de abertura. A poesia tem esses mistérios. Esse poema está em várias antologias e foi traduzido para várias línguas. Na semana passada no interior do Paraná, um grupo de atores/estudantes apresentou o poema antes de minha conferência. Uma das atrizes me confessou que cresceu com o poema, que o falava desde a adolescência. No mais, a questão QUE PAÍS É ESTE? é universal.
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ANTONIO FABIANO: Um livro que exige fôlego é o teu notável e também ousado “O Enigma Vazio” (2008). É denso e faz uma interessantíssima análise dos impasses da arte e da crítica de nosso tempo, através de posições firmes e bem fundamentadas, vasto conhecimento de causa etc. Como sintetizaria o fenômeno das artes na modernidade e na chamada pós-modernidade?

ARS: Se você ler o livro de poemas que acabou de sair SÍSIFO DESCE A MONTANHA vai encontrar a reverberação de certas ponderações lá. Ter vivido muitas experiências, ter ido a todos os museus importantes do mundo, ter convivido com artistas, ter participado dos movimentos de vanguarda e deles tomado uma distância tática, me deu a tranquilidade para escrever aquele livro. O interessante é que não apareceu ninguém para rebater minhas teses. Sei que dá trabalho ler algo assim. Passei a vida inteira atormentado com isso que atormenta tanta gente e parece que equacionei a questão dentro de uma ótica transdisciplinar. A arte contemporânea só pode ser entendida amplamente por instrumentos transdisciplinares. A estética só, não dá conta.
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ANTONIO FABIANO: Também a literatura vem sofrendo grandes transformações. Uma delas é o que se dá por meio da revolução tecnológica, que nem sempre é vista com bons olhos pela maioria dos escritores. Há uma banalização das letras em nosso tempo? A boa literatura está ameaçada?

ARS: São as duas coisas. Todo mundo pode ser autor, mas nem todo mundo quer ser leitor. Aí complica. Foi boa a democratização da internet, dos blogs, etc. Mas nem todo mundo que escreve é escritor, alguns são redatores, outros apenas expõem suas emoções. Literatura vai além da emoção.
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ANTONIO FABIANO: Em que mais diferem as atuais gerações de escritores, das gerações passadas? Que vantagens e desvantagens têm os escritores de hoje, em relação aqueles que já são clássicos?

ARS: Pertenço à geração dos escritores viajantes, aqueles que a partir dos anos 70 vararam o Brasil de ponta a ponta enquanto as gerações anteriores eram sedentárias. Já porque não havia meios de transporte, o país era outro, já porque eram funcionários públicos que ficavam no fim do dia nas portas das livrarias papeando. E sobre o advento do Ipad, computadores tenho escrito várias coisas, sobretudo o ensaio: O LEITOR, CADÊ O LEITOR? Que o Estadão deve publicar.
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ANTONIO FABIANO: Em sua opinião há atualmente o despontar de nomes promissores, das novas gerações, que de fato permanecerão? Pode-se pensar ainda em um cânon sagrado da nossa literatura? Ou as novas leis do mercado editorial já não nos dão certeza disso?

ARS: Você já reparou que nunca perguntam a um médico, quais são os novos médicos promissores, quais os novos engenheiros, dentistas? Seria interessante saber porque aos artistas se faz essa pergunta. Para responder eu teria que fazer uma longa pesquisa. Recebo dezenas, centenas de livros, hoje centenas de blogs. Há uma disseminação, dispersão, o que torna ainda mais difícil lhe responder. E as respostas restritivas correm sempre o risco de acabar formando uma “panelinha”: em alguns casos, existe por aí, algo que tenho até mencionado, que se parece com formação de “quadrilha” – grupinho defendendo seus interesses criminosamente.
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ANTONIO FABIANO: É difícil ser escritor ‘brasileiro’? Há incentivo de divulgação da nossa literatura, alguma política de difusão da mesma?

ARS: Hoje há mecanismos de incentivo. Na Biblioteca Nacional criamos bolsas para tradutores e para autores jovens. Hoje há oficinas literárias no país, algumas até pela internet. Os escritores estão viajando mais pelo país. Há muitas feiras do livro. Claro que há instituições como a Fagga, que organiza feiras e insiste em não pagar aos autores (eu não participo de coisas deles, já denunciei essa exploração). Mas a coisa mais importante é o surgimento dos “mediadores” ou “agentes de leitura” sobre o que tenho escrito constantemente.
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ANTONIO FABIANO: Poderia falar a respeito da sua experiência à frente da Biblioteca Nacional, um dos mais importantes acervos do mundo? Como vê os atuais programas de leitura em nosso país?

ARS: Sugiro a leitura de LER O MUNDO. Ali conto o que foi essa experiência, narro coisas para se entender a luta de uma geração pela leitura e pelo livro. No programa VIVA LEITURA (veja no Google), há mais de 10 mil projetos de leitura. Agora enquanto respondo suas perguntas, estou num avião, vindo de Natal onde falei para centenas de professores do programa Prazer de Ler, acabo de ler no jornal O Povo uma matéria sobre os agentes de leitura no Ceará. As coisas estão se mexendo.
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ANTONIO FABIANO: O que pensa do fenômeno da influência na obra de todo grande escritor?

ARS: Haroldo Bloom escreve sobre a “ansiedade da influência”. Todo autor é um comensal de autores anteriores. Alguns são parasitas puros. A pós-modernidade vive de parasitagem fazendo apologia do plágio, da copia, etc. Outros tentam inventar a roda. Dizia Valery: o leão é a soma dos cordeiros assimilados.
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ANTONIO FABIANO: Quem te instigou a ser poeta? Como descobriu que o fenômeno da poesia não era apenas uma coisa da adolescência? Alguém particularmente te inspirou? De quem Affonso Romano de Sant’Anna recebeu as mais marcantes influências?

ARS: Acho que tudo começou pelo fascínio da linguagem poética da Bíblia. Minha família era metodista, eu era predestinado a ser pastor, cheguei a pregar em vários lugares, mesmo adolescente. Numa crônica de LER O MUNDO falo sobre o valor/sentido dessa linguagem poética dentro das religiões e da literatura.
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ANTONIO FABIANO: Alguma vez pensou em desistir? Já experimentou o fracasso como escritor?

ARS: Todo escritor, todo artista às vezes acha que a fonte secou, há momentos de (aparente) esterilidade. É quando alguma coisa nova pode estar se armando. Clarice [Lispector] dizia que a estória de todo homem é a estória de seu fracasso, fracasso através do qual... E trato disto em SÍSIFO DESCE A MONTANHA, por isto, aliás, a epígrafe de Clarice quando ela diz que nossa verdadeira tarefa é “deseroizar-se”.
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ANTONIO FABIANO: Qual a grande convicção do amigo Affonso Romano de Sant’Anna?

ARS: Convicção? Não sei. Estou sempre tentando ver as coisas por vários lados ao mesmo tempo, assim você tem que variar seus pontos de vista, suas convicções, caso contrário perderá o fenômeno em sua totalidade, ficará com experiência muito parcial.
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ANTONIO FABIANO: Como Affonso Romano de Sant’Anna regeria o seu “Ministério dos Sonhos”?

ARS: Na verdade vivo dentro desse Ministério. É preciso sonhar para que o real se realize. Até os animais sonham. Como disse num poema, existe uma engenharia dos sonhos, uma arte de sonhar. Mas há que domar as alucinações, tirar delas o lado positivo. Há que saber a diferença entre o neurótico e o psicótico.
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ANTONIO FABIANO: O poeta considera-se uma pessoa feliz?

ARS: Tem aquele poema de Maiakovsky em que considera que em algum lugar do mundo, no Brasil, certamente, existe um homem feliz. Felicidade é uma palavra perigosa. Você sabia que em várias universidades existe curso de “felicidade”? Economistas estão escrevendo sobre isto. Alguns países querem medir a cota de felicidade dos cidadãos. O que existe, ao contrário, é a busca. Somos movidos pelo desejo, e o desejo exige novas conquistas e realizações.
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ANTONIO FABIANO: Poderia nos dizer algo mais de seu novíssimo livro de poemas “Sísifo desce a montanha” (2011)?

ARS: Prefiro que outros o digam, habitem por mim esses textos.
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ANTONIO FABIANO: A esta altura da vida, com sucesso e reconhecimento, com uma carreira literária bem delineada e seu grande nome escrito no cânon das melhores letras de nossa língua, como o poeta maduro – ao olhar para trás e vislumbrando ainda um futuro – vê seu próprio itinerário?

ARS: Estou como Sísifo, descendo a montanha, só que do outro lado. Já subi o que me foi dado subir, agora é descer com a pedra no ombro. E essa pedra até me parece leve... É estranho, mas é assim.
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ANTONIO FABIANO: Sobre o que pretende escrever, que ainda não escreveu?

ARS: Tenho vários livros engatilhados.
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ANTONIO FABIANO: Que palavra daria a este mendigo que o interpela e tanto admira?

ARS: Você é um mendigo rico, porque é generoso, sempre aberto à vida e à poesia. Que a poesia te abençoe!
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ANTONIO FABIANO: Pode deixar aos leitores do blog um dos novos versos? Esta é a pérola com que encerramos a conversa...


ARS: "ERGUER A CABEÇA ACIMA DO REBANHO"

Erguer a cabeça acima do rebanho
é um risco
que alguns insolentes correm.

Mais fácil e costumeiro
seria olhar para as gramíneas
como a habitudinária manada.

Mas alguns erguem a cabeça
olham em torno
e percebem de onde vem o lobo.

O rebanho depende de um olhar.


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AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA & ANTONIO FABIANO
Outubro de 2011
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

domingo, 1 de maio de 2011

ENTREVISTA de CLAUDIO PASTRO a Antonio Fabiano


Fotografia de Antonio Fabiano


ANTONIO FABIANO: Levando-se em conta que há sempre um começo ou despertar da consciência de cada vocação, como aconteceu na sua história pessoal essa descoberta em relação à arte?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Desde a infância tive uma vida difícil mas uma boa educação. Sou anterior ao Concílio Vaticano II quando a Igreja vivia de espiritualidade, o que hoje não existe. Morávamos em frente ao Convento das Irmãs da Assunção e, além da família, o que de fato educou-me (e educa) foi a liturgia. Desde bem cedo, antes de ir para a escola (primário/ginásio estadual) participava da Santa Missa. Na época, as únicas palavras que conhecia eram: disciplina, obediência, respeito e reverência profunda para com as coisas de Deus e dos outros. Note bem: graças a Deus, naquela ocasião não haviam televisão, telefone, computador, automóveis (poucos) etc. etc. etc. Shoppings... Vivíamos do Essencial (o pouco para viver e Deus prá tudo). Não se sonhava, nem de longe, com o individualismo (egoísmo) de hoje. Aí, nesse contexto, nasce minha vocação (toda planta para se desenvolver depende de bom terreno/terra). Sim, a liturgia, a beleza do rito, simples, solene, discreto e dignitoso de como eram celebradas as Santas Missas; o silêncio e o gregoriano; toda a beleza do ambiente onde se percebia a presença do Senhor da Criação e Redentor foi-me o momento, o lugar do despertar de minha vocação.


ANTONIO FABIANO: Ao dar vazão à criação, cada artista manifesta-se de um jeito próprio. Como você percebe em seu cotidiano esse processo? Qual o segredo testemunhado pelo ateliê de Claudio Pastro?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Vivo em contínua presença de Deus. O meu cotidiano disciplinado e meticuloso permite a beleza desabrochar em mim. Acordo às 4h, rezo matinas (leituras) e Laudes e faço lectio até, mais ou menos, às 6h. Vou à Santa Missa e bebo, aí, na fonte da beleza porque entrego-me totalmente ao Mistério, ao Senhor da vida, Aquele que não engana e permite-me melhor discernir os meus atos no dia a dia.
Durante o dia trabalho continuamente em projetos de igrejas, pinturas, recebo pessoas que me pedem sugestões etc.
Chega a noite, rezo Vésperas e Completas. Adoro a Palavra de Deus que me instiga a fazer arte.
Às vezes vou a exposições, museus, bons filmes. Porém, se possível não saio da rotina e jamais vou dormir depois das 22h.


ANTONIO FABIANO: Seu trabalho inevitavelmente toca o sagrado, o mistério. Qual seu sentimento em relação ao conjunto da obra que nos lega?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Gostaria que minha obra (com toda a humildade) fosse “a Encarnação do Verbo”, isto é, que fosse um prolongamento da Palavra e, melhor, a Palavra em formas e cores. Isso, pois a arte é universal, fala a todos de qualquer raça, língua ou condição social indistintamente. Depois, a arte, a arte sacra verdadeira, não se presta a ideologias ou falsas interpretações. Para tanto, é preciso distinguir arte sacra, que nos vem da objetividade do Mistério celebrado, e arte religiosa, subjetiva (meus sentimentos, meus gostos pessoais, meus santinhos de devoção) que fala mais de mim para mim mesmo ou no máximo para poucos, carolas da Igreja. Jesus veio e vem para todos os homens, indistintamente e a arte sacra é o próprio Deus falando através do artista que o serve em sua obra. Hoje não há arte sacra e sim uma horrorosa “arte” de mercado (música, pintura, imagens...).


ANTONIO FABIANO: Que tipo de espiritualidade quer suscitar nas pessoas, quando se ocupa de executar qualquer das suas obras?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Que se sintam felizes em presença de Deus e não se sintam oprimidos pelo peso que, muitas vezes, a própria Igreja (clero) nos impõe.


ANTONIO FABIANO: Em verdade, não há consenso sequer entre os artistas, a respeito de um tema que também é filosófico e, inclusive, teológico: o da beleza. Como Claudio Pastro, o homem que lida dia e noite com o belo da arte, definiria a beleza?

+++CLAUDIO PASTRO+++ A beleza é Deus. Quando nos falta a atenção para com Ele e ficamos presos aos nossos “negócios” criamos uma divisão com as demais criaturas (homens, natureza, o cosmo); surge, assim, o diabo, senhor do mundo. Há uma quebra com a unidade e Deus é Um; somos Um com Ele ou não somos. Hoje paira no mundo o individualismo, a ganância, o egoísmo, a “beleza” de mercado... e surge o feio.
A beleza de um traço, de uma cor, de um som, de um gesto (postura) vem-nos do Único belo ou os traços e cores são caóticos, os sons são berrantes e dissonantes e até o modo de andar, caminhar, celebrar se espelham no horror da TV, dos Shoppings.


ANTONIO FABIANO: Que influências há na obra de Claudio Pastro? Que mestres mais lhe inspiraram? A qual tradição filia-se?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Sempre amei os primitivos cristãos. Os traços e cores infantis (olhos da pureza) da arte românica e a dignidade hierática, nobre, da arte do ícone bizantino quando os pobres apóstolos e santos (os humanos) se revestem da beleza de Deus. Atualmente, gosto da limpeza (clean) da arte atual desde o impressionismo até o ART NOUVEAU (Liberty) e artistas como Matisse, Galileo Emendabile e outros. Filio-me a tudo que é Arte Sacra, inclusive fora da Igreja, como a arte de nossos índios, a africana, a islâmica, a budista etc. Onde há amor e verdade, há Deus e beleza.


ANTONIO FABIANO: Claudio Pastro fez, no dizer do povo, Escola. Muitos se dizem até seus “discípulos”. Que relação estabelece com estes artistas e trabalhos de algum modo vinculados a si?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Primeiro, fico agradecido e feliz que gostem e se inspirem em meu trabalho. Sei que minha arte não segue os parâmetros comuns da arte religiosa conhecida (anjinhos, santinhos etc.). Então, isso indica-nos que as novas gerações buscam o Novo, o sempre novo do Evangelho, longe de muitos ranços do católico “tradicional”. Infelizmente, muitos chamados “discípulos” esquecem que os traços da obra não bastam parecer e serem simples se não nascem de uma espiritualidade encarnada. Entrei em igrejas com “essa arte” e claramente ela não revelava o Espírito celebrado nesse lugar, não revelava nada.
Alguns discípulos fizeram estágios comigo, conviveram comigo, e perceberam a exigência da Arte Sacra que está ligada a uma postura de vida no dia a dia. A Arte Sacra vem do Espírito e não só da técnica.


ANTONIO FABIANO: Ser artista nos dias atuais é tarefa nada fácil. Muitos confundem o que isto seja ou põem a arte a serviço de interesses, e até se banaliza o mais sério, em face da superabundância de coisas medianas que grassam no afã de atender a uma demanda imediatista ou embalada por modismos. É muito difícil viabilizar seu trabalho no Brasil, para que todos os que o merecem o recebam? Que maiores dificuldades tem encontrado em seu ofício, aqui e fora do país?

+++CLAUDIO PASTRO+++ O clero, o clero é o maior entrave para a arte sacra. Falta-lhe a sabedoria do Espírito que se exercita na oração e liturgia diária. Depois, a única preocupação do clero é com o dinheiro e suas inspirações na mundaneidade. Aqui no Brasil a falta de cultura do Espírito (desde seminários, reitores, bispos...) é imensa. Não hesitam comprar um carro zero (seja lá o preço que for) e esquecem que o Espírito passa pela arte e a boa arte tem preço. Certa vez, pintei um painel de 2 x 2m numa manhã e alguém disse-me: “você pinta rápido e caro” e, eu respondi, “sim, pintei numa manhã e trinta anos de pesquisa, estudos, oração etc.” Arte não se compra por metro e tempo, ela é de outra natureza.
É muito triste ser medido por pessoas grosseiras.
Muitas igrejas pintei pela metade do preço e até gratuitamente quando percebi que a comunidade era santa e desejosa do belo, de Deus, e não de modismo ou luxo. Isso ninguém ficou sabendo.


ANTONIO FABIANO: Claudio, você poderia nos falar de como começou o projeto de Aparecida e até nos dar notícias do andamento dos trabalhos por lá?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Em 1997 e, depois, em 1999 fui convidado por Dom Aloísio Lorscheider (então cardeal arcebispo de Aparecida) e Pe. José Darci Nicioli (atual reitor da Basílica) para aí trabalhar. Eu e outros fomos muito testados e restei eu aprovado.
Creio eu que eles (e outros) perceberam em mim a força do Concílio Ecumênico Vaticano II, além de minha fé, evidente.
A concepção de todo o interior da Basílica (arquitetura da realeza/sécs. IV e V) é um neo-românico basilical e mais o espírito pós-conciliar pede-nos não devocionismos mas a Palavra para a constante educação da fé de nosso povo e o espaço inspirado no Apocalipse, a atualidade da Liturgia.
Em breve, começaremos a cúpula central que levará 5 ou 6 anos de trabalho. Desejamos concluir o interior da Basílica para 2017, ano do 3˚ Centenário do encontro da imagem nas águas do rio Paraíba do Sul.


ANTONIO FABIANO: Pode nos dizer algo, aos que admiram seu trabalho e pessoalmente o querem bem, pela pessoa que é?

+++CLAUDIO PASTRO+++ Peço-lhes que rezem por minha saúde, afinal somos corpo, alma e espírito e a doença sempre quebra com essa harmonia. Fui transplantado em 2003 (fígado), tive um coma de 2 meses em 2001, fui operado 19 vezes em 2004 e, agora, desde outubro de 2010 já fui operado 10 vezes. Ainda passarei por mais operações nesse ano.
Quanto à minha arte, espero que ela continue a levar Deus a todos. Do contrário, melhor que eu pare.
A todos, que nossos olhos não se desviem do Senhor Jesus, único Caminho, Verdade, Vida e Beleza de nossas vidas.


CLAUDIO PASTRO & ANTONIO FABIANO
Páscoa de 2011
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

ENTREVISTA DE FILINTO ELÍSIO – ESCRITOR CABO-VERDIANO – A ANTÓNIO FABIANO


Filinto Elísio - Foto Divulgação


ANTÓNIO FABIANO: Poderia nos contar um pouco da sua história, até chegar ao seu envolvimento com o Brasil?

**FILINTO ELÍSIO** Bem, a minha história, como a de todos os cabo-verdianos, está intimamente ligada à África, Europa e Brasil. Antológica e ontologicamente cruzada com o Brasil. Há, em certa medida, um processo antropológico e histórico comum, determinando não só os nossos pathos e ethos diferenciados, mas também aqueles comuns e até convergentes. Nesse sentido, as histórias individuais e existenciais, como a minha, cumprem, em recorte particular, o rio maior que nos impõem as grandes viagens. Sempre encontrei a presença do Brasil em casa, seja pela música, seja pela poesia, e cresci numa família que, em pleno tempo colonial, via no Brasil uma espécie de «terceira dimensão/solução» para a condição de Cabo Verde, independente de Portugal só depois de 1975. Por sorte e honra, estudei Biblioteconomia em Minas Gerais e acompanhei, desde essa altura, o Brasil como uma pertença também minha.

ANTÓNIO FABIANO: Como aconteceu a literatura em sua vida?

**FILINTO ELÍSIO** Igualmente, a literatura foi para mim «arte de berço». Soube que a minha mãe me ninava com declamação de poemas de António Gedeão, de Ribeiro Couto e Jorge Barbosa. Por isso, sou visceralmente poeta. Durante a minha infância e a minha adolescência o ambiente era de literatura e de cinema, pois o meu pai também era gramático, leitor interessado e cinéfilo. Permitiu-me conhecer alguns intelectuais brasileiros, como Glauber Rocha e Jorge Amado. E introduziu-me cedo o gosto pela Bossa Nova e a Tropicália. Ouvíamos Gil, Caetano, Chico, Jobim, Bethania e Gal, de manhã à noite. E declamávamos Vinicius, Drummond e João Cabral de Melo Neto nas nossas noites de festa familiar. Mas escrever mesmo só aos 14 anos, depois de ler o «Diário de Anne Frank e o «Processo de Kafka». Só depois do «choque» de ter lido «O Estrangeiro», de Albert Camus. Definitivamente, depois de mergulhar nas faces múltiplas de Fernando Pessoa. Escrever mesmo só depois de ter lido «O Velho e o Mar», de Ernest Hemingway e de imaginar o velho Santiago, na sua luta para pescar o merlin e voltar para o porto apenas com a carcaça comida por tubarões. Mas também muito me despertou «O Amante», de Marguerite Duras, e a consciência crítica, mas angustiosa, da solidão existencial. Terá sido impossível apreciar esse manancial de apelos estéticos e não querer puxar para mim tamanho élan.

ANTÓNIO FABIANO: De todas, quais as principais influências literárias, culturais, que recebeu ao longo desse itinerário intelectual?

**FILINTO ELÍSIO** Provavelmente dos poetas todos que li. Não tive aquilo que Maquiavel, num rasgo de subtileza, chamou de «pensamento da praça pública». Fui muito pelas margens e devorei poetas consagrados e marginais.

ANTÓNIO FABIANO: Como tem sido a receptividade de sua obra entre os brasileiros?

**FILINTO ELÍSIO** Boa em termos de crítica, mas muito reduzida em termos de público. Não posso assumir que seja conhecido no mercado brasileiro, infelizmente. Para qualquer escritor desta nossa língua portuguesa não ser conhecido do leitor brasileiro se configura como um grande handicap. Tirando o Ceará, onde já lancei dois livros, e São Paulo, onde em meios académicos alguém sabe da minha escrita, bem como Imperatriz, no Maranhão, em que sou membro da sua Academia de Letras, o Brasil é um fabuloso espaço a «conquistar». Não falaria do mercado em si, mérito e vantagem dos meus editores, mas do conhecimento e da interacção com os leitores brasileiros que me encantam. O meu romance «Outros Sais da Beira Mar» e o de poemas «Li Cores & Ad Vinhos», este com a participação plástica de Fernando (Mito) Elias, já fizerem um percurso tímido pelo Brasil.

ANTÓNIO FABIANO: Actualmente você percebe um crescimento na relação entre nossos países irmanados pela língua? Como?

**FILINTO ELÍSIO** O incremento é real e a ampliação é um ditame destes novos tempos. Entretanto, todos poderíamos fazer mais. Precisamos de mais intercâmbios, de mais leituras e de mais revisitações uns dos outros ou uns aos outros. Quem sabe, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, da CPLP, com sede em Cabo Verde, não possa fazer mais e ser o pivot deste novo desafio? O Brasil tem um papel dorsal. Portugal idem. Sem os africanos a lusofonia estaria mais empobrecida. O elemento fundante da lusofonia não é só a língua portuguesa, mas a história, a cultura e o destino comum. Há uma ancestralidade borbulhante que nos une e nos mantém coesos na diversidade.

ANTÓNIO FABIANO: O que foi o Movimento Claridoso? Pode nos falar um pouco disso e de como brasileiros tiveram parte nele?

**FILINTO ELÍSIO** Claridade foi sem dúvida um grande marco estético, sociológico e linguístico. Mais uma vez, o Brasil teve o seu espaço na literatura cabo-verdiana, neste caso por via do Realismo Nordestino. O Movimento, iniciado em 1936, abriu espaço para um fazer literário mais realista e moderno, rompendo a geração anterior. É a modernidade em termos formais e de conteúdo. Entretanto, a literatura cabo-verdiana não começou com a Claridade, nem ficou por ela. A própria Pós-Claridade já não se coloca. Estamos num novo momento, nem saberei dizer se movimento, da literatura cabo-verdiana. Arménio Vieira, o prémio Camões 2009, nada tem a ver com a Claridade. Actualmente, temos escritores de linhas bem mais abstractas e de outras alquimias das formas.

ANTÓNIO FABIANO: Quais autores cabo-verdianos você gostaria de ver publicados no Brasil?

**FILINTO ELÍSIO** Falei há bocado de Arménio Vieira. Mas também gostaria de ver nas estantes e escaparates brasileiras os escritores Corsino Fortes, Osvaldo Osório, Mário Lúcio Sousa, José Luís Hopffer Almada, José Luís Tavares, Fátima Bettencourt, Dina Salústio, Valentinous Velhinho e Dani Spinola, entre outros. Falei há dias com a Professora Simone Caputo Gomes, da USP, uma das autoridades em estudo da literatura cabo-verdiana, sobre a História da Literatura Cabo-verdiana. É uma plêiade de nomes, tantos que estamos a pensar já na criação da Academia Cabo-verdiana de Letras, a primeira da África de expressão oficial lusófona. Entretanto, não anuncio a academia com glória alguma, diga-se, já que o labor literário não está sob a toada da «imortalidade» dos académicos que tal como os prémios e as condecorações não servem para nada. O poeta, digno de tal nome, não se torna imortal pelas honrarias enganosas. Chinua Achebe dizia que «o poeta que não tem problemas com o rei, tem problemas com a sua própria poesia. Qual a glória de criarmos a Academia? Nenhuma. Entrementes, gostaria de ver todos os nossos escritores nas livrarias e nas bibliotecas brasileiras.

ANTÓNIO FABIANO: O que aproxima e diferencia nossas literaturas?

**FILINTO ELÍSIO** Provavelmente a língua e outros activos e passivos histórico-culturais correlatos. Mas em verdade não há uma resposta cabal sobre isso. Em tese, uma literatura, a par de ser de um lugar e de um tempo, é de um indivíduo. Não a vejo com a lógica marxista, de processo histórico. Vejo-a como uma complexidade que não se explica. Não se sabe. É um mistério. As literaturas têm um substrato comum que se lhes pressente. Nada muito nítido, claro e cartesiano como pretendem as academias e os estudiosos. Em «O Arco e o Lira», Octávio Paz problematiza tal tormentosa questão (o que é a poesia?), e múltiplas respostas, longe de nos saciarem, trazem outros labirintos.

ANTÓNIO FABIANO: Você tem projetos para 2011 no Brasil?

**FILINTO ELÍSIO** «Me_xendo no Baú» é um livro de reverberações filosóficas e crioulas, no espaço e em seu limite no qual dialogo com as necessidades do humano em mim. Será publicado em Lisboa, no mês de Abril. Creio que consigo transpor neste livro a perspectiva do conflito social, contingencial e emocional. Sou mais cerebral, no víeis cabralino do termo. Persigo nele a pura filosofia da composição como justificação e referência da escrita. Poema enquanto objecto lapidado. A edição vai ser inovadora e fora do formato, já que divido o livro com o pintor cabo-verdiano Tchalé Figueira e será um livro de mesa, com um dvd com declamações do dramaturgo João Branco e peças para uma opereta com dançarinos a coreografarem a palavra e não a música. A música ulterior, se quisermos. Outro projecto será «Conchas de Noé & Arcas Ostras (Cantos, contos e causos)». É edição brasileira e aponta-se para Maio.

ANTÓNIO FABIANO: Poderia nos dar o prazer de um dos seus poemas?

**FILINTO ELÍSIO**

f_ado

negro corpo
e o des_tino

chora-se fado
e o s_ado corre

tudo é rio
U de tudo

um dia
por me_lodia

vasculha-se-lhe
exis_tindo

ouro preto
re_nasce em nie_mayer…


Filinto Elísio
in: Me_xendo no Baú
(inédito)

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FILINTO ELÍSIO a ANTÓNIO FABIANO
Dezembro de 2010
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

(Por deferência manteve-se aqui a ortografia do português de Cabo Verde).

sábado, 4 de dezembro de 2010

FERREIRA GULLAR - numa entrevista a ANTONIO FABIANO


O poeta Ferreira Gullar - Fotografias de Antonio Fabiano

ANTONIO FABIANO: Meu caro Gullar, sua atuação no panorama intelectual deste país foi, em muitos aspectos, preponderante para os novos rumos da nossa literatura e arte em geral. As letras do século XX lhe são infinitamente gratas, todos sabemos disso. Mas em pleno albor deste novo século torna-se ainda mais iniludível a assombrosa força de sua escrita... Poderia nos contar um pouco do seu itinerário poético? Como se fez o Gullar que hoje é das gentes e “flutua” pelo país e pelo mundo?

***FERREIRA GULLAR*** Você é muito generoso ao apreciar o que escrevo. Minha poesia tem percorrido muitos caminhos, aparentemente contraditórios mas, no fundo, coerentes, pois atendem a necessidade minha de expressar-me. Comecei escrevendo como um parnasiano, depois descobri a poesia moderna e passei a fazer versos livres, e logo entendi que deveria ir além. Disso resultou A Luta Corporal, que considero meu livro de estreia, porque é com ele que começo a compreender mais fundamente o que deve ser a poesia. Depois veio a poesia concreta, depois os poemas espaciais neoconcretos e finalmente o Poema Enterrado com que encerrei essa fase. Entro em crise, engajo-me politicamente e passo a fazer poesia política. São muitos anos nesse caminho mas durante esse tempo minha poesia mudou, busquei criar poemas mais ricos, mais sofisticados do que os primeiros poemas dessa fase. Nesse rumo, que envolve os anos de exílio, minha experiência pessoal e poética se amplia, se aprofunda, torna-se mais dramática e mais sofrida. Escrevo o Poema Sujo, que é de certo modo a síntese dessa etapa. De lá para cá, houve também mudanças, mas já não tão drásticas como no passado. O certo é que nenhum livro meu é igual ao outro, ou mero prosseguimento do outro.

ANTONIO FABIANO: Como se dá o exercício de sua escrita? Disciplina? Inspiração? Como acontece a criação poética de Ferreira Gullar?

***FERREIRA GULLAR*** Minha poesia nasce do espanto, de algo que me surpreende e me mostra que o mundo nunca está explicado. São surpresas que me põem diante da beleza ou do drama, da felicidade ou da perda. Sem isso não consigo escrever mas, ao mesmo tempo, há que ter o domínio do instrumento de expressão. A técnica não é suficiente mas é imprescindível, pois, sem ela, não se consegue realizar o poema.

ANTONIO FABIANO: Que vínculos tem Gullar, hoje, com a terra natal? Que laços o prendem àquele menino de São Luís do Maranhão, tantas vezes redivivo na obra do poeta maduro?

***FERREIRA GULLAR*** Costumo dizer que, se não tivesse nascido em São Luís, seria um outro poeta. Em tudo o que escrevo, São Luís de algum modo está presente.

ANTONIO FABIANO: Sempre que lhe pareceu certo, ao longo de sua carreira intelectual, você não hesitou em mudar de posição e até opor-se ao que não vai bem. É o caso do concretismo, a poesia “concreta”, para citar um exemplo só. O que fica daquela fase?

***FERREIRA GULLAR*** Se é certo que a poesia concreta é decorrência de A Luta Corporal, quando implodo o discurso, não fui o inventor dela. Os poemas concretos que fiz são diferentes dos poemas do grupo paulista. Por isso mesmo, caminhei noutra direção e cheguei ao livro-poema e aos poemas espaciais. A poesia concreta foi um fenômeno inevitável naquele momento da poesia brasileira, mas não poderia manter-se como um caminho permanente. Foi uma experiência original e audaciosa que se esgotou.

ANTONIO FABIANO: Poderia sintetizar, especialmente para as novas gerações cada vez mais distantes desta realidade, o que para você significou o exílio?

***FERREIRA GULLAR*** O exílio foi um momento difícil de minha vida mas ao mesmo tempo enriquecedor. Conheci outros povos, outras culturas e vivi momentos-limite, como o fim do governo Allende e o começo da ditadura argentina. Um período difícil da história latino-americana.

ANTONIO FABIANO: O que diria o pai do imortal “Poema sujo”, a respeito desse filho hoje considerado uma das maiores obras em língua portuguesa da segunda metade do século XX?


***FERREIRA GULLAR*** Já falei bastante sobre esse poema, em que circunstâncias o escrevi, em 1975, em Buenos Aires. De fato, aquelas circunstâncias – quando não sabia o que poderia acontecer comigo, já que um golpe militar ameaçava pôr abaixo o governo argentino e repetir o golpe que derrubou Allende – devem ter contribuído para o caráter do poema. Trata-se de uma tentativa de resgatar o vivido e refletir sobre a vida, tanto em termos existenciais como sociais.

ANTONIO FABIANO: Tenho acompanhado seu parecer a respeito da atual situação das artes plásticas etc. Sem dúvida não agrada a todos, mas seu pensamento impõe respeito porque é coerente, indiscutivelmente lúcido e regulado pela experiência de toda uma vida envolta no conhecimento aprofundado de tais questões. Você acredita que atravessamos um momento de relativismo ou crise nessa esfera? É possível uma “arte sem arte”?

***FERREIRA GULLAR*** O abandono das normas tradicionais que regiam as artes plásticas, deu nascimento às experiências de vanguarda que enriqueceram a expressão estética mas, ao mesmo tempo, abriram caminho a uma espécie de valetudo. Esse valetudo parece ser o rumo propício aos chamados artistas contemporâneos que já não se preocupam em fazer arte. Acreditam que tudo é arte: seja pôr merda numa lata, seja mostrar larvas de moscas num microscópio. Confundem as coisas, acreditando que toda expressão é arte, ou seja, que basta ser expressão. Como tudo é expressão resulta, para eles, que tudo é arte. A meu ver, uma baita confusão.

ANTONIO FABIANO: Atualmente proliferam-se escritores, sobretudo poetas, espécime não tão raro. E livros, muitos livros. Nunca se escreveu tanto e se publicou, como agora. Se isso é bom, por um lado, e sem dúvida o é, não significa qualquer garantia de uma boa ou duradoura literatura. Outras forças perpassam esse meio cultural, como a academia e o comércio, e seus respectivos ditames. Perguntamos ao leitor experiente que é: há algum critério para separarmos o joio do trigo, e não cairmos nas armadilhas das quais nem mesmo o mundo das letras está isento?

***FERREIRA GULLAR*** É verdade, hoje se publica muito, há livros em quantidade, de todo tipo e sobre qualquer assuntos ou tema. Não sei dizer ao certo o que se deve fazer em face disso. Acredito que nem tudo que se escreve presta. Poesia é coisa rara, pelo menos no meu caso que escrevo pouco e raramente.

ANTONIO FABIANO: Você percebe novas tendências, novos rumos, um futuro ainda mais promissor, para a literatura que se faz em nosso país? Acredita, tem esperança nas novas gerações?

***FERREIRA GULLAR*** Do futuro não sei nada. Há bons poetas nas novas gerações. Mas a verdade é que a pessoa nasce poeta, como nasce jogador de futebol ou cozinheiro. Sem vocação, ninguém vira poeta.

ANTONIO FABIANO: Apesar dos diversos prêmios recebidos ao longo da sua carreira, que repercussão teve em sua vida o Prêmio Camões, esta expressão mais alta de reconhecimento dado em língua portuguesa a um escritor?

***FERREIRA GULLAR*** Fiquei muito feliz ao receber o Prêmio Camões porque isso significa um reconhecimento do valor do que escrevo. A gente escreve para o outro, para ser lido pelo outro e, quando pessoas de alto merecimento intelectual reconhecem o valor do que escrevemos, isso nos gratifica.

ANTONIO FABIANO: Gullar se percebe ainda passível de influências?

***FERREIRA GULLAR*** Nenhum poeta inventa a poesia. Pelo contrário, todos os poetas são herdeiros dos poetas que os antecederam. Aliás, no meu modo de ver, é essa herança que dá maior amplitude à obra deste ou daquele poeta. Naturalmente, cada um elabora essa herança a seu modo e dá “um sentido novo às palavras da tribo”, como disse Mallarmé.

ANTONIO FABIANO: Ferreira Gullar é ainda um homem comprometido com a política de seu país, ou reserva-se ao direito de agora se ocupar de outras coisas?

***FERREIRA GULLAR*** Fiz poesia engajada durante certo período, especialmente em função da situação política e social do Brasil e da necessidade de lutar contra a ditadura. Hoje minha poesia explora outros campos, voltada mais para a reflexão sobre a existência e os espantos a que a vida nos submete.

ANTONIO FABIANO: Depois de onze anos de silêncio poético, surge o livro “Em alguma parte alguma”. Por que tanto tempo, Gullar?

***FERREIRA GULLAR*** Demoro a publicar livros de poesia porque escrevo pouco. Não posso decidir que vou escrever um poema hoje porque faz tempo que não escrevo. Isso não depende de mim mas dos espantos e das descobertas inesperadas que me põem em estado de poesia. Se não for assim, nada acontece. E como esses espantos são raros, escrevo poucos poemas ao longo do ano. Minha felicidade seria escrever todos os dias belos poemas...

ANTONIO FABIANO: Que novidade esse livro traz, em relação aos outros de sua obra?

***FERREIRA GULLAR*** Acredito que cada poema meu traz algo de novo, se não fosse assim não o teria escrito. Se escrevo é porque descobri alguma coisa que ainda não expressara. Não precisa ser uma novidade gritante, arrasadora. Basta uma pequena descoberta. Neste último livro há a retomada de alguns temas de livros anteriores mas noutro tom. E há uma tentativa de escrever no limite da linguagem, no limite da ordem e da desordem.

ANTONIO FABIANO: “Em alguma parte alguma” causou espanto, pelo vigor de sua poesia inédita. E, em tempo recorde, deram-se sucessivas reedições, outro espanto, tratando-se de poesia. O poeta que celebrou neste ano seu octogésimo aniversário tem a lira cada vez mais afinada, e não dá o mínimo sinal de cansaço. De onde vem esta força, Gullar?

***FERREIRA GULLAR*** Não sei. Tudo o que posso dizer é que estou sempre indagando, questionando e aberto às perplexidades a que a vida me expõe. Talvez esse inconformismo – que é ao mesmo tempo uma afirmação de vida – seja a minha força.

ANTONIO FABIANO: Para quem chegou a este patamar de consagração, escrever e publicar se torna um risco, uma responsabilidade cada vez maior, ou dá-se o contrário, cada vez mais se pode dizer o que pensa e quer?

***FERREIRA GULLAR*** Talvez porque não acredite em verdades eternas e intocadas, estou sempre indagando, questionando e dizendo o que penso. Não me julgo dono da verdade mas tenho necessidade de questionar e revelar o que descobri.

ANTONIO FABIANO: Há alguma coisa que tenha sonhado e ainda não realizou?

***FERREIRA GULLAR*** Não sei, não me preocupo com isso. Na verdade, essa é uma questão estranha a mim, já que não planejo nada. Invento a vida a cada dia.

ANTONIO FABIANO: Como concilia estes dois amores, família e trabalho?

***FERREIRA GULLAR*** Hoje vivo só, não tenho mais o encargo de criar os filhos, que estão adultos e cuidando de si e dos seus. Participo como avô, ajudando no que posso e dando palpites quando sou consultado. Tenho uma companheira – a poetisa Cláudia Ahimsa – que mora com a mãe. Mantemos a condição de namorados. É legal namorar uma poetisa tão talentosa quanto ela!

ANTONIO FABIANO: Ainda no coração do poeta... De quem Gullar tem saudades?

***FERREIRA GULLAR*** Das pessoas que amei e perdi.

ANTONIO FABIANO: O que diria agora aos leitores que o amam, seu público cativo?

***FERREIRA GULLAR*** Que se entreguem à leitura de meus poemas como me entreguei ao prazer de escrevê-los, porque a função da poesia é ajudar a viver, deslumbrar, ampliar o território do possível.

ANTONIO FABIANO: E aos que querem ser poetas?

***FERREIRA GULLAR*** Não desistam da poesia porque ela tem uma função essencial em nossa vida. A poesia existe porque a vida não basta.

ANTONIO FABIANO: Qual de seus versos nos daria ao final desta entrevista?

***FERREIRA GULLAR***
“que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado”




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FERREIRA GULLAR & ANTONIO FABIANO
Dezembro de 2010
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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

MOACYR SCLIAR – entrevistado por Antonio Fabiano


Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras. Fotografia de seu Site Oficial. Reprodução autorizada pelo Autor.


ANTONIO FABIANO: Moacyr, você é membro da Academia Brasileira de Letras e um dos nossos “imortais” mais conhecidos. Você é muito querido por um vasto público, e sua popularidade é notória, tanto no Brasil, como em outros países onde os seus livros são traduzidos e lidos com grande repercussão. Eu quero dizer que estamos diante de um “imortal” muito próximo dos “mortais”, o que é maravilhoso mas nem sempre comum nas Academias de qualquer lugar do mundo. Como você interpreta esta “imortalidade” que lhe foi conferida, e a que atribui tal capacidade de interação com o público, especialmente com o público jovem?

**MOACYR SCLIAR** Naturalmente sinto-me orgulhoso de fazer parte da ABL, instituição fundada por Machado de Assis, que reuniu muitos dos melhores escritores brasileiros e que tem um papel importante em nosso contexto cultural. Mas devo dizer que isso em nada interfere em meu trabalho literário. Distinções e honrarias são fugazes, a literatura e o leitor permanecem. Portanto, ao escrever penso no leitor, sobretudo no leitor jovem, e assim mobilizo o jovem leitor que um dia fui; quero proporcionar a quem me lê o mesmo prazer e a mesma emoção que o garoto Moacyr sentia ao ler.

ANTONIO FABIANO: Como escrever tanto, oitenta livros ou mais, em tão variados gêneros, sem comprometer a qualidade dessa literatura?

**MOACYR SCLIAR** Em primeiro lugar trata-se de trabalhar muito, e eu faço isso. Acredito que escritor é o cara que escreve e, portanto, sempre que posso estou escrevendo. Fui médico durante muito tempo e aprendi a organizar-me, usando todo o tempo livre para estudar ou escrever. Mas sou exigente com o que faço: escrevo e reescrevo constantemente, e não hesito em deletar o que me parece ruim, e faço isso com muita frequência.

ANTONIO FABIANO: De onde vem a fecundidade rara de sua escrita?

**MOACYR SCLIAR** Do prazer que me dá a arte de mexer com as palavras. Sempre fiz isso, e acabei, claro, desenvolvendo uma boa habilidade neste sentido. Por outro lado, ideias felizmente nunca me faltam; meu problema é, ao contrário, selecionar as melhores ideias entre as muitas que me ocorrem.

ANTONIO FABIANO: Você nos disse outro dia que, quando viaja, identifica-se nas fichas dos hotéis como “médico”. Declarar-se apenas “escritor” é um problema, porque alguns não entendem isso como profissão ou algo confiável... (risos) Fala sério? No âmbito social, ser escritor no Brasil ainda é algo difícil? O ofício de escrever pode ser de fato encarado como uma profissão séria?

**MOACYR SCLIAR** Em nosso país, o ofício de escritor nunca foi levado muito a sério, porque raros eram os escritores que podiam viver da literatura. Isto está mudando, mas é irrelevante; se se trata mesmo de uma profissão não importa muito, o que importa é a qualidade do que a gente escreve.

ANTONIO FABIANO: Já que falei... Como um bem sucedido médico de saúde pública se tornou escritor? Em que o fato de ser médico interferiu no de ser escritor? A experiência do primeiro ofício foi preponderante para a formação do homem de letras hoje maduro?

**MOACYR SCLIAR** Sempre gostei da medicina em geral e da saúde pública em particular. E aprendi muito nas duas áreas, sobre a condição humana e sobre a realidade brasileira. E este conhecimento ajuda muito no trabalho literário. A gente fala com conhecimento de causa, por assim dizer.

ANTONIO FABIANO: Quais outras influências você percebe em sua obra?

**MOACYR SCLIAR** Percebo as influências de escritores que, em diferentes fases de minha trajetória, fizeram minha cabeça: Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, Franz Kafka...

ANTONIO FABIANO: Ao ver uma obra sua adaptada para o cinema, teatro ou televisão (transição às vezes perigosa), o que sente? Onde termina a paternidade do autor e começa a autonomia da obra?

**MOACYR SCLIAR** Tenho vários textos adaptados, e aprendi uma coisa: aquilo que a gente vai ver no palco ou na tela é diferente daquilo que foi escrito. É inevitável, faz parte do processo, por isso, dou inteira liberdade a quem vai fazer a adaptação para trabalhar o texto como achar melhor. Posso ajudar, se for necessário, mas não vou “censurar” nada.

ANTONIO FABIANO: O que Moacyr Scliar sempre lê?

**MOACYR SCLIAR** De tudo. Livros, de ficção e não ficção, jornais, revistas, textos de Internet... Sou um leitor compulsivo e o que está em letra de forma sempre me atrai.

ANTONIO FABIANO: Do alto de suas conquistas, que síntese faria da vida pessoal e profissional?

**MOACYR SCLIAR** Eu diria que foi uma vida de esforços, uma vida gratificante, mas ainda não plenamente realizada: continuo estabelecendo objetivos a serem alcançados.

ANTONIO FABIANO: Pode dizer uma palavra para quem é mais jovem e pretende tornar-se escritor?

**MOACYR SCLIAR** Que leia muito, que escreva bastante, que busque ajuda, por exemplo em oficinas literárias, que divulgue nos meios que estiverem a seu alcance, incluindo a Internet, que concorra a todos os prêmios literários possíveis, e que, sobretudo, tenha confiança e tenha esperança.

ANTONIO FABIANO: E a seus fiéis leitores, o que diria?

**MOACYR SCLIAR** Muito obrigado. Vocês deram sentido à minha vida!

ANTONIO FABIANO: Moacyr Scliar é...

**MOACYR SCLIAR** ... um escritor que busca, com esforço e humildade, o caminho da boa literatura.


Moacyr Scliar – Antonio Fabiano
Novembro de 2010
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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

ADÉLIA PRADO EM ENTREVISTA A ANTONIO FABIANO


Adélia Prado - Fotografia de Antonio Fabiano

ANTONIO FABIANO: Quando li aqueles versos do seu novo livro – “Minha mãe a minutos da morte me ordenou profética: / ‘Vai calçar um trem, / agora mesmo a casa enche de gente’” – fui tomado por um sentimento tal de urgência e ressurreição. Naquela noite me senti como uma represa que, depois de um imenso estampido, estoura e se derrama pelos mundos... Sua palavra poética tem inimaginável força. É neste espírito que começo a entrevista...

(silêncio)

Adélia, o seu legado poético é indisfarçável. Sua obra tornou-se adulta, autônoma, parece não mais precisar de nada. Explico-me... Sua voz – para além de você mesma, a poeta – já é dona de si e pode ir sozinha aos confins do mundo. É como a grande profecia do profeta, que cresce e sobrepuja o seu arauto, sendo inclusive esta a glória do arauto. O tom de Adélia já possui, a meu ver, aquela afinação inconfundível dos bons poetas, dos poetas maduros que podem tudo e já não devem nada a ninguém... Destes anos todos de poesia, como você vê seu próprio itinerário? Como você se vê diante do estarrecedor milagre dessa obra?

ADÉLIA PRADO: Toda vida ‘soube’ que a poesia é maior que o poeta. Crer nisso me descansa. A poesia é mesmo um milagre, epifania, algo terrível na sua beleza que de repente se mostra. Czeslaw Milosz falou disso e usei seus versos como epígrafe geral do livro. Como me sinto? Pequena e imensamente feliz, sou o ‘pobre de blusa nova ganhada’.

ANTONIO FABIANO: Dizem que escrever é muito perigoso. Você concorda com isso? Em sua relação com a palavra, já experimentou alguma vez o fracasso? Se sim, como o transpôs?

ADÉLIA PRADO: É muito perigo se você frauda o trabalho colocando-o a serviço de ideologias, doutrinas filosóficas ou religiosas, quando visa resultados, porque arte é “expressão pura”. Engajá-la é crime de lesa poesia. É perigoso porque conspurca sua natureza, que obedece a leis mais altas que as do seu desejo. Fracassar é não conseguir dizer. Quando acontece, para-se e espera-se que a forma se mostre de maneira perfeita. Uma vez publiquei em um livro uns três poemas, que refiz em nova edição, por causa de uma advertência crítica que acolhi. Uma pedrada no meu orgulho, mas foi ótimo também. Percebi que havia versos sobrando e a poesia não tolera excessos. Pequei por entusiasmo, mas pequei.

ANTONIO FABIANO: Alguns escritores são lidos e respeitados, o que já é muito. Você, além disso, é amada e conta com uma legião de interlocutores que gostam da sua palavra e pessoa, a mulher. O que digo não acontece apenas aqui em Minas, onde os nomes de Adélia Prado e Deus se confundem (risos), mas constato a mesma dileção, o mesmo respeito, em quase todo lugar aonde tenho ido. A que você atribui esse fascínio que exerce, mesmo sem querer, sobre tantas pessoas de boa vontade? E como lida com isso?

ADÉLIA PRADO: Bom, pessoas de boa vontade são para isso mesmo. Para amar tudo, inclusive essa senhora mineira. Espero que não por condescendência – o que não seria amor – mas por causa da poesia, ela sim, de natureza amorosa, fraterna, que a nada e a ninguém exclui, provocando em nós a alegria da comunhão humana. Lido com isso dando graças.

ANTONIO FABIANO: Seu público é eclético, vai de intelectuais de peso a pessoas sem tais pretensões e até analfabetas. Estas e aqueles captam sua poesia sem embargos, relacionam-se com ela da veneração religiosa à crítica mais mordaz. Você é lida na academia e nas cozinhas do povo, concomitância esta que é impressionante e muito rara. Qual o segredo dessa fluência, tão ambicionada pela maioria dos escritores e alcançada, mesmo dentre os melhores, por pouquíssimos?

ADÉLIA PRADO: O segredo só pode estar na poesia. Tenho certeza.

ANTONIO FABIANO: Uma pergunta inevitável... Como se dá a relação de sua obra literária com a mística cristã? Sua espiritualidade pessoal interfere na obra, ou a obra é antes geradora dessa vivência religiosa que nos testemunha?

ADÉLIA PRADO: A arte (a poesia) é religiosa na sua natureza íntima e não por causa do tema, do enredo, da casuística. Não é porque falo em Deus, em religião, ou devoções que um poema é religioso, mas por causa da forma, que não é formato, mas a própria beleza, escopo de toda arte. Experimentar a forma, a beleza é experimentar um centro de significação e sentido que alegra, consola e nos aponta para algo (acredito que Deus), a pessoa divina que nos fala através da obra, coisas como: a vida é eterna, ressurgiremos, a beleza de agora é apenas sinal, pegada da verdadeira beleza, a que nos aguarda ao final de nossa vida. A mística e as obras dos místicos são experiências poéticas e portanto religiosas. Os salmos são poesia. Um poema falando de um homem no seu cavalo ou de ondas do mar pode levar-nos a um sentimento de reverência diante do mistério e isso é religioso.

ANTONIO FABIANO: “Oráculos de Maio” (1999) pareceu-me, desde o advento de sua grande e imbatível “Bagagem” (1976), a obra mais perfeita de todo o conjunto poético. Já lhe disse isso. A crítica mais autorizada não deu, a meu ver, a devida atenção a esse acontecimento que o tempo, sem dúvida, reclamará a lhe [à obra] fazer justiça. Agora nos vem “A Duração do Dia” (2010), a confirmar o passo firme dessa trajetória. A recepção tem sido boa... Em sua opinião de leitora daquilo que escreve, já não tanto como autora ou “mãe” da obra, este livro traz surpresas ou é apenas mais do mesmo velho bom vinho?

ADÉLIA PRADO: Cada autor só tem uma coisa a dizer. É sempre o mesmo mas, a cada vez de um lugar diferente. As paixões boas e más permanecem conosco e serão expressas de maneira mais jovem, mais madura, mais experiente, segundo a vivência do autor naquele momento. Fico pensando num quadro feito por um pintor em décadas, dos dez aos oitenta anos. Será o mesmo vinho e conforme se acredita, melhor.

ANTONIO FABIANO: Uma vez você me disse que “Bagagem” é o livro primevo (eu diria, perfeito) que a sua pena tenta reescrever toda vez que trabalha numa nova obra... Ainda pensa assim? É o que pensa também em relação a “A Duração do Dia”?

ADÉLIA PRADO: Se me lembro bem, disse que todo livro quero escrevê-lo como escrevi Bagagem, numa alegria de descoberta e fundação. Todo poeta sabe disso, porque uma das qualidades da poesia é a sua incorrigível juventude. Não intentei isto com o novo livro, não é preciso, acontece necessariamente e, quando não acontece, não publico, a não ser que me equivoque.

ANTONIO FABIANO: Eu sou mendigo e você é pródiga... (risos) Que verso me daria dos seus muitos, neste momento, para que eu o partilhasse – nunca avaro – com os amigos e leitores do meu Blog?

ADÉLIA PRADO:

NO CÉU

No céu, os militantes,
os padecentes
e os triunfantes
seremos só amantes.

Este é um poema de Oráculos de Maio.

Meu caro Antonio Fabiano, respondi com muito gosto a suas perguntas, que achei muito pertinentes. Foi uma alegria e você é muito gentil. Obrigada por suas boas palavras...



ADÉLIA PRADO & ANTONIO FABIANO
Setembro de 2010
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domingo, 12 de setembro de 2010

INTERVISTA WILMAR SILVA A ANTONIO FABIANO


Wilmar Silva - Fotografia de Sebastián Moreno

1) Wilmar Silva, a sua obra acontece e obviamente não acontece desvinculada do mundo. Ela se avulta a cada dia, isto é fato. Se define cada vez melhor, se faz notar, ganha mais e mais expressão... Então (para não irritá-lo e evitar dizer canonicamente “em nossa literatura”...), que espécie de papel, em sua autocrítica, ela (a sua obra) representaria no palco do mundo?

O desejo de não ser arremedo. Mas ser aquilo que se perde entre a existência e a eternidade, sendo a poesia em estado de orgasmo.

2) Quais suas influências imediatas e, independente disso, que artistas você mais frequenta? Depois, quais poetas (especificamente) lê ou ouve?

As influências do ser humano em sua metamorfose mineral, vegetal, animal. Artistas líquidos em pássaros, pedras, árvores. E poetas, além da realidade, na pararealidade.

3) Sobre o seu novo trabalho, o “Neonão”... Depois de pronto, você o vê com plena satisfação? Pode nos dizer algo de sua gestação? E desta velha parceria com o Francesco Napoli?

Não. NEONÃO nasceu porque é impossível o mesmo espelho. Francesco Napoli é um amigo de infância que conheci nos jardins internos de 23 de junho de 2009.

4) O Brasil favorece o surgimento de artistas como você ou de obras como a sua? Pode definir em poucas palavras a poesia “biosonora”? E, não obstante, qualquer coisa, hoje são muitos os que se aventuram em território nacional a fazer essa poesia de experimentação?

Sim, porque o Brasil é um abismo de contrastes. E não, porque a liberdade nunca é livre. Poesia biosonora é a minha etnopoesia. Não.

5) Que paralelos há entre a poesia que se faz hoje no Brasil, de modo geral, e a que você tem visto acontecer em outras partes do mundo? Como vê, então, o fenômeno poético em território nacional?

Todos, porque fazer poesia é se perder além de qualquer Sol LeWitt. O Brasil é uma América Latina de poéticas originais, mesmo sob as vanguardas do século XX.

6) Há pessoas íntimas que inspiram sua obra e vida? A família, por exemplo, acompanha os largos passos do artista? Que influência essas pessoas exercem em seu trabalho e também a gente humilde de suas origens?

Sim, mesmo inconsciente. E até mesmo um estranho, de repente, no equinócio. A família, perto e longe do coração selvagem. Sou o lavrador que foi meu pai.

7) Pode deixar algumas palavras para os amigos deste Blog?

& eye ye vindo do meu centro de dentro
& eye ye alma de menino &
& eye ye o menino pássaro & eye ye o menino cavalo
& os insetos ye eye & as pedras ye eye & eu madrepérola

eye ye eu feito de eye de sol ye de sol & eye as mãos
& eye os pés & eye eu & e eu eye
subindo ao amanhecer &
subindo ao entardecer &

eye sou hey um animal eye
eye sou hey um vegetal eye
eye sou hey um mineral eye

i yum animal naturalis humanus
i yum vegetal naturalis humanus
i yum mineral naturalis humanus


WILMAR SILVA - Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 12 de setembro de 2010.
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