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domingo, 21 de agosto de 2022

AUTA DE SOUZA (1876-1901)

  

by Pixabay


CAMINHO DO SERTÃO

A meu irmão João Câncio

 

Tão longe a casa! Nem sequer alcanço
Vê-la através da mata. Nos caminhos
A sombra desce; e, sem achar descanso,
Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos!
 

É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos...
Vamos mais devagar... de manso e manso,
Para não assustar os passarinhos.
 

Brilham estrelas. Todo o céu parece
Rezar de joelhos a chorosa prece
Que a noite ensina ao desespero e à dor...
 

Ao longe, a Lua vem dourando a treva...
Turíbulo imenso para Deus eleva
O incenso agreste da jurema em flor.


(pág. 92)

 

(SOUZA, Auta de. Hôrto, 4.ª ed., Natal: Fundação José Augusto, 1970.)

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

AUTA DE SOUZA (1876-1901) - poemas


by Pixabay


 

DOLORES

 

Já vão caminho do cemitério

Meus louros sonhos em visões negras,

E vão-se todos no Azul sidéreo

Como uma nuvem de toutinegras.

 

A noite de ontem levei chorando

Todo o passado de meus amores;

E o dia ainda me achou rezando

No imenso terço de minhas dores.

 

Vejo na vida longo deserto

Sem doce oásis de salvação.

Dentro em minh’alma, douda, chorosa,

De pobre moça tuberculosa,

Cheio de medo, trêmulo, incerto,

Bate com força meu coração.

 

E assim morrendo, coitada, aos poucos,

Convulsa e fria, louca de espanto,

Solto suspiros, soluços roucos,

Olhando as cruzes do Campo Santo;

 

Porque me lembro que muito breve

Leva-me a ele tanta dor física.

E dentro em pouco, branco de neve,

Verão o esquife da pobre tísica.

(pág. 114)

 

 

DOENTE

 

A lua veio... foi-se... e em breve ainda,

Há de voltar, a doce lua amada,

Sem que eu a veja, a minha fada linda,

Sem que eu a veja a minha boa fada.

 

Ela há de vir. Ofélia desmaiada,

Sob as nuvens do céu na alvura infinda

Do seu branco roupão, noiva gelada,

Boiando à flor de um rio que não finda.

 

Ela há de vir, sem que eu a veja... Entanto,

Com que tristezas e saudoso encanto

Choro estas noites que passando vão...

 

Ó lua! mostra-me o teu rosto ameno:

Olha que murcha à falta de sereno

O lírio roxo do meu coração!

(pág. 243)

  

 

FIO PARTIDO

 

Fugir à mágoa terrena

E ao sonho, que faz sofrer,

Deixar o mundo sem pena

      

     Será morrer?

 

Fugir neste anseio infindo

À treva do anoitecer,

Buscar a aurora sorrindo

      Será morrer?

 

E ao grito que a dor arranca

E o coração faz tremer,

Voar uma pomba branca

       Será morrer?

 

II

 

Lá vai a pomba voando

Livre, através dos espaços...

Sacode as asas cantando:

       “Quebrei meus laços!”

 

Aqui na amplidão liberta,

Quem pode deter-me os passos?

Deixei a prisão deserta,

       Quebrei meus laços!

 

Jesus, este voo infindo

Há de amparar-me nos braços

Enquanto eu direi sorrindo:

       Quebrei meus laços!

 

Janeiro, 1901

(págs. 247-248)



 SOUZA, Auta de. Hôrto, 4.ª ed., Natal: Fundação José Augusto, 1970.


by Pixabay



Cf. também: https://antoniofabiano.blogspot.com/2011/01/um-sonho-poema-de-auta-de-souza_13.html?m=0

 

 


quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

NOS CAMINHOS DE AUTA DE SOUZA (crônica de dez anos atrás)


Fotografias de Antonio Fabiano (2000)


Fui a Macaíba no intuito de conhecer o lugar onde nasceu e viveu a poetisa do “Horto”, Auta de Souza. Esta simpática cidade litorânea, cenário de grandes vultos e acontecimentos históricos, dista de Natal cerca de 18 km.
Para além do aspecto turístico, almejava ainda, com tal viagem, fazer algumas fotografias e ampliar o meu material de pesquisa sobre a menina morta aos vinte e cinco anos incompletos, que escreveu versos incríveis e foi tida como “expressão mais alta do lirismo norte-rio-grandense”. Talvez não seja mais verdade essa última assertiva, mas sem dúvida alguma foi a maior do seu tempo, e das mais importantes até hoje.
Logo que chegamos a Macaíba procurei o casarão onde vivera Auta, hoje reformado e transformado em uma escola que tem seu nome. Polêmica reforma, diga-se, pois o casarão, lamentavelmente, não mais conserva os traços originais.
Cidade não muito grande, Macaíba tem uma gente simpática, educadíssima... Foi lá que Auta de Souza nasceu, em 12 de setembro de 1876. E em Natal, como todos sabem, “quebrou seus laços”, na madrugada de 7 de fevereiro de 1901.
Quando cheguei ao casarão, escola, fui recebido pela diretora, que me apresentou todas as salas e cômodos do estabelecimento, além do mitificado jasmineiro que Auta plantou. O primeiro jasmineiro foi destruído acidentalmente por um muro que caiu sobre si; aquela réplica é muda do jasmineiro original. Vi também o busto da poetisa, no pátio do colégio, entre um jardim de flores e crianças.
Após um “cafezinho” e conversa rápida com os funcionários do local, fui levado à sala onde a poetisa nasceu. O cômodo, evidentemente, está reformado. Funciona como uma das salas reservadas de trabalho, mas conserva ainda, impregnado em suas paredes, um cheiro antigo. Ali, há muito tempo, a “pobre moça tuberculosa” do poema Dolores, que como ninguém experimentou a dor e os desgostos da vida, escreveu muitos dos seus versos. Nessa sala há uma fotografia de Auta, numa moldura antiguíssima, além de outras fotos e arquivos. Lá, me apresentaram as versões do Hino à Auta de Souza. Ouvi tudo com atenção e ainda guardo na memória as cadências do momento. A diretora, extremamente atenciosa, não hesitou em colocar a meu dispor os arquivos da escola, fotografias, livros, trabalhos de artistas locais referentes à poetisa. Fiz cópia desse material, para embasamento científico, embora a riqueza escrita mais ampla, documental, eu a tenha encontrado em Natal, incluindo o famoso livro de Câmara Cascudo, “Vida Breve de Auta de Souza”, de edição extinta, que localizei na sala de obras raras da Biblioteca Central Zila Mamede (UFRN). Cascudo foi o mais arguto dos escritores a documentar Auta de Souza. Esse livro consiste na mais autêntica e rica biografia da poetisa.
Antes de deixar a cidade passei pela Igreja onde se encontram os restos mortais de Auta de Souza e alguns familiares. A lápide da poetisa traz seus versos: “Longe da mágoa, enfim, no Céu repousa / Quem sofreu muito e quem amou demais”.
Para quem não sabe, os renomadíssimos Eloy de Souza (antigo parlamentar e jornalista) e Henrique Castriciano (escritor, poeta, ativo participante da vida política e social do Estado), foram irmãos de Auta de Souza. Outra curiosidade digna de nota é que a primeira edição do Horto, por intervenção daquele irmão que então vivia no Rio de Janeiro, foi prefaciada por Olavo Bilac.
No fim da tarde, já prestes a voltar, passei pelo Museu do Ferreiro Torto. Este fica quase fora da cidade, num local esquisito, cercado de mata e silêncio. Lá, por um triz não fomos assaltados por um grupo de “pivetes” que ainda nos ameaçaram... O zelador do museu, homem atencioso, foi nosso protetor e excelente guia. Aliás, tinha o mesmo nome de meu pai: Juarez. Ana Paula, que me acompanhou durante o percurso, deu-lhe uma gorjeta e muitos “obrigada, obrigada!”... Ele abriu o museu, com boa vontade, exclusivamente para nós, visto que chegamos ali quando já havia encerrado o expediente.

A título de informação: o Solar do Ferreiro Torto, expressão da imponência do poder colonial no Rio Grande do Norte, foi construído no século XVII. O seu primeiro nome, lá pelos idos de 1614, foi “Engenho do Potengi”. Cenário de terrível massacre, testemunhou lutas de holandeses contra portugueses, ficou fechado por cem anos, foi novamente ocupado, chegou a ser destruído em batalhas, foi reconstruído (passou por ele famílias ilustres), funcionou como sede do Poder Executivo municipal, até virar (ufa!) o que hoje em dia é, Museu. Dali o visitante pode também conhecer o cais, ouvir histórias de escravos e senhores, ver de perto os manguezais do Rio Jundiaí, etc.
Na mesma ocasião desta “expedição” passei, com a amiga Dione, pelo histórico Forte dos Reis Magos de Natal. Fiz lá umas fotografias. Deste Forte, por demais famoso, tem-se muito o que contar...

Antonio Fabiano

(NAVEGOS – Órgão Informativo do Centro Acadêmico de Letras “Fátima Barros” – UFRN – Campus de Currais Novos – Ano II – Edição 15 – Mai-Jul/2000).

UM SONHO – poema de Auta de Souza

Tudo era calmo... Junto, ao pé do altar,
Meu coração rezava docemente;
E um círio branco, triste, a soluçar,
Dizia à flor num murmurar dolente:

“Vê minha irmã, aqui na solidão
Dorme Jesus, sozinho, abandonado...
Não sente palpitar um coração
Que lhe traga um sorriso abençoado.

Ele diz: Vinde a mim, vós que chorais,
E o vosso pranto mudarei em flores;
Eu quero recolher os vossos ais
No cofre onde descansam minhas dores.

Fala Jesus, e o mundo não responde.
Os homens folgam nos salões ruidosos,
E aqui, dorida, nossa voz esconde
A mágoa funda dos que vão chorosos.”

Calou-se o círio, e a rosa entristecida,
Entreabrindo o cálice perfumado,
Murmurou, numa prece indefinida
De mãe que pede pelo filho amado:

“Quero o meu leito, aqui junto ao Sacrário,
Minha tumba nos braços desta Cruz;
É tão doce subir para o Calvário
Beijando a terra onde pisou Jesus!

E depois... Quando a luz te consumir,
Cairão minhas folhas ressequidas.
Outros círios e rosas hão de vir
Redizer nossas queixas doloridas.”

Assim falou a rosa e, desfolhada,
Tombou, chorando, sobre a pedra fria.
Da pobre vela reduzida ao nada
O pranto apenas sobre o altar se via.

.........................................................

Eu acordei... Uma tristeza infinda
Lembrou do sonho a imaginária dor,
E, de meu leito, eu escutava ainda
Gemer o círio e soluçar a flor.

Jardim – 1895

(SOUZA, Auta de. Horto, 4.ª ed., Natal: Fundação José Augusto, 1970.)

CAMINHO DO SERTÃO – poema de Auta de Souza

A meu irmão João Câncio

Tão longe a casa! Nem sequer alcanço
Vê-la através da mata. Nos caminhos
A sombra desce; e, sem achar descanso,
Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos!

É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos...
Vamos mais devagar... de manso e manso,
Para não assustar os passarinhos.

Brilham estrelas. Todo o céu parece
Rezar de joelhos a chorosa prece
Que a noite ensina ao desespero e à dor...

Ao longe, a Lua vem dourando a treva...
Turíbulo imenso para Deus eleva
O incenso agreste da jurema em flor.

(SOUZA, Auta de. Horto, 4.ª ed., Natal: Fundação José Augusto, 1970.)

DOENTE – poema de Auta de Souza

A lua veio... foi-se... e em breve ainda,
Há de voltar, a doce lua amada,
Sem que eu a veja, a minha fada linda,
Sem que eu a veja a minha boa fada.

Ela há de vir. Ofélia desmaiada,
Sob as nuvens do céu na alvura infinda
Do seu branco roupão, noiva gelada,
Boiando à flor de um rio que não finda.

Ela há de vir, sem que eu a veja... Enquanto,
Com que tristezas e saudoso encanto
Choro estas noites que passando vão...

Ó lua! mostra-me o teu rosto ameno:
Olha que murcha à falta de sereno
O lírio roxo do meu coração!

(SOUZA, Auta de. Horto, 4.ª ed., Natal: Fundação José Augusto, 1970.)

AUTA DE SOUZA (1876-1901)

“Auta de Souza nasceu em Macaíba, pequena cidade do Rio Grande do Norte, em 12 de setembro de 1876; educou-se no Colégio S. Vicente de Paula, em Pernambuco, sob a direção de religiosas francesas; e faleceu em 7 de fevereiro de 1901, na cidade de Natal. Uma biografia simples como os seus versos e o seu coração...
Ela não conheceu os obstáculos que encheram de tormento a existência de Marcelline Desborde-Valmore. Desde muito cedo, porém, sentiu o horror da morte. Aos quatorze anos, quando lhe apareceram os primeiros sintomas do mal que a vitimou, não havia senão sombras em seu espírito; era já órfã de pai e mãe, tendo assistido ao espetáculo inesquecível do aniquilamento de um irmão devorado pelas chamas, numa noite de assombro.
Assim, desde a infância, o destino lhe apareceu como um enigma sem a possibilidade de outra decifração que o luto.
(...)
A primeira edição do ‘Horto’, publicada em 1900, esgotou-se em dois meses. O livro foi recebido com elogios pela melhor crítica do País; leram-no os intelectuais com avidez; mas a verdadeira consagração veio do povo, que se apoderou dele com o devoto carinho, passando a repetir muitos de seus versos ao pé dos berços, nos lares pobres e, até, nas igrejas, sob a forma de ‘benditos’ anônimos.
(...)”.
Paris, 4 de agosto de 1910
H. CASTRICIANO

“Auta de Souza não pertence nem a uma escola nem a um momento literário. Filiada, por natureza, à corrente das letras femininas em nosso país, nela se destaca, no dizer de Jackson de Figueiredo – ‘como a mais alta expressão do nosso misticismo, pelo menos, do sentimento cristão, puramente cristão, na poesia brasileira’.”
ALCEU AMOROSO LIMA
(Tristão de Athayde)

“Mas a nota mais encantadora do livro [de Auta de Souza, ‘Horto’] é a do misticismo, que dá a algumas das suas poesias o amplo e solene recolhimento de uma nave de templo ressoante da grave harmonia dos órgãos, com balbucios de preces entre suaves espirais de incenso.
(...)
... não convém privar o leitor das surpresas que encontrará, de página em página, neste formoso volume, que vem revelar uma poetisa de raro merecimento. ‘Horto’ será, para os que amam a linguagem divina do verso, um desses raros livros que se leem e releem com um encanto crescente.”
OLAVO BILAC