domingo, 9 de outubro de 2011

A INSOLUBILIDADE DO PROBLEMA DA FELICIDADE, DISCUSSÃO SOBRE A POSSIBILIDADE DE UM IMPERATIVO CATEGÓRICO E A AUTONOMIA DA VONTADE – Antonio Fabiano

Na segunda secção da Fundamentação, Immanuel Kant envidará esforços para explicar o trânsito de ida da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes. O próprio Kant dirá, na obra homônima Metafísica dos Costumes, que possuir uma tal metafísica é em si mesmo um dever, e cada homem a tem em si mesmo, ainda que comumente de modo obscuro; porque, sem princípios a priori, como poderia crer ter em si uma legislação universal? (KANT, 1999, p.21 – tradução nossa) .* [NOTA: “Por consiguiente, si un sistema de conocimientos a priori por puros conceptos se llama metafísica, una filosofía práctica, que no tiene por objeto la naturaleza sino la libertad del arbitrio, presupondrá y requerirá una metafísica de las costumbres: es decir, poseer una tal metafísica es en sí mismo un deber, y cada hombre la tiene también en sí mismo, aunque por lo común sólo de un modo oscuro; porque, sin principios a priori, ¿cómo podría creer tener en sí una legislación universal?”]
Do que vimos no capítulo anterior, de um conceito de dever extraído do uso comum da razão prática, nada nos autoriza a pensar que aquele é um conceito empírico. Inversamente. Onde haveríamos de encontrar exemplos da intenção de agir sob um dever absolutamente puro? Há, indubitavelmente, um conceito de moralidade, cuja ideia tão respeitável ninguém de bom senso a negará. Mas não obstante a natureza humana ser demasiado nobre (a ponto de conceber uma tal ideia), é, por outro lado, bastante fraca para sujeitar-se imediatamente à justíssima regra de conduta que a razão lhe manifesta. O ser humano, por sua própria contradição, tende a conciliar o dever com seus caprichos pessoais. Isto é o que Kant chama de impulso secreto do amor-próprio, donde se conclui: nunca podemos penetrar completamente até os móbiles secretos dos nossos atos, porque, quando se fala de valor moral, não é das ações visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que se não veem (KANT, 2002, p.40). E é isto o que significa a absoluta impossibilidade de podermos achar na experiência, com plena certeza, um único caso em que a máxima de uma ação, de resto conforme ao dever, se tenha baseado puramente em motivos morais e na representação do dever (KANT, 2002, p.40).
Kant ataca as dissimulações daquilo que ele chama de “querido Eu”:

"Quero por amor humano conceder que ainda a maior parte das nossas ações são conformes ao dever; mas se examinarmos mais de perto as suas aspirações e esforços, toparemos por toda a parte o querido Eu que sempre sobressai, e é nele, e não no severo mandamento do dever que muitas vezes exigiria a auto-renúncia, que a sua intenção se apoia." (KANT, 2002, p.41).

Este “querido Eu” é tão sutil e possui tão terrível capacidade de nos enganar que um mais crítico observador poderia duvidar da existência de qualquer virtude autêntica, se não houvesse a clara convicção de que, mesmo que nunca tenha havido ações que tivessem jorrado de tais fontes puras, [...] a razão por si mesma e independentemente de todos os fenômenos ordena o que deve acontecer (KANT, 2002, p.41).
E disto se pode inferir que tal dever, prévio à experiência, reside na ideia de uma razão que determina a vontade por motivos a priori (KANT, 2002, p.41). O conceito de moralidade dita uma lei que possui tão extensa significação que tem de valer [...] para todos os seres racionais em geral, [...] absoluta e necessariamente, e nenhuma experiência pode dar motivo para concluir sequer a possibilidade de tais leis apodícticas (KANT, 2002, p.42). Exemplos apenas encorajam e excluem dúvidas sobre o que a lei ordena, mas o verdadeiro protótipo está na razão. O nosso ideal de perfeição moral, segundo seus princípios, é o crivo pelo qual deve passar tudo o que se nos apresenta como dotado de valor moral, por mais óbvio que isto ou aquilo nos pareça. Desta forma, até quando se pergunta de onde tiramos o conceito de Deus como supremo bem, Kant logo responde: Somente da ideia que a razão traça a priori da perfeição moral e que une indissoluvelmente ao conceito de vontade livre (KANT, 2002, p.42).
Para Kant, o verdadeiro princípio da moralidade, o qual é supremo, se funda na razão pura, a priori, livre de todo o empírico; ainda que disto surjam regras práticas para a natureza racional. Jamais podemos retirar do conhecimento empírico (contingente), um conceito moral; naquela origem pura é que reside sua altíssima dignidade a fazer com que ele nos sirva de princípio prático supremo; tanto e de tal modo que suas leis extrapolam a natureza particular da razão humana, devendo ser deduzidas do conceito universal de um ser racional em geral (KANT, 2002, p.46).
Para irmos da filosofia popular até à metafísica, Kant considera necessário expor a faculdade prática da razão, a qual igualmente pressupõe o conceito de dever. Mas deve-se partir das regras mais gerais de determinação desta mesma razão prática.
O filósofo condensa eloquentemente decisivas informações em um importante parágrafo da Fundamentação:

"Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom. Mas se a razão só por si não determina suficientemente a vontade, se está ainda sujeita a condições subjetivas (a certos móbiles) que não coincidem sempre com as objetivas; numa palavra, se a vontade não é em si plenamente conforme à razão (como acontece realmente entre os homens), então as ações, que objetivamente são reconhecidas como necessárias, são subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme a leis objetivas, é obrigação (Nötigung); quer dizer, a relação das leis objetivas para uma vontade não absolutamente boa representa-se como a determinação da vontade de um ser racional por princípios da razão, sim, princípios esses porém a que esta vontade, pela sua natureza, não obedece necessariamente." (KANT, 2002, p.48).

O mandamento da razão, que é representação de um princípio objetivo a obrigar uma vontade, dá à luz o que na ética kantiana se chama Imperativo. Quaisquer que sejam eles, exprimem-se pelo verbo dever. Isto só torna mais claro o amplexo não tão pacífico de uma lei objetiva da razão em relação a uma vontade dotada de constituição subjetiva. Esta não obedece necessariamente àquela.
Só para os seres humanos, tais como os conhecemos, são válidos os imperativos. Nunca o seriam para a vontade divina ou para uma suposta vontade santa; pois nestas coincidem necessariamente o querer e a lei, não havendo dever de dever.* [NOTA: Quiçá pleonástica, mas precisamente enfática, optei por esta expressão já reincidente: “dever de dever”. Quer significar a obrigação da ação por dever, unicamente em respeito à lei.] Kant assim sintetiza a função dos imperativos: são apenas fórmulas para exprimir a relação entre leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por exemplo (KANT, 2002, p.49).
Faz-se mister, agora, classificá-los em imperativos hipotéticos ou categóricos. Os primeiros manifestam a necessidade (prática) de um ato tido como meio para outra coisa pretendida por nós, tendo-se em foco uma intenção possível (princípio problemático-prático) ou real (princípio assertórico-prático). Um imperativo categórico, por sua vez, é aquele que manifesta a ação como necessária, objetivamente, sem finalidade outra. Isto é, age-se por dever, sem o amparo de um conteúdo, e tem-se neste imperativo um fim em si mesmo, pois sua ação é representada como boa em si e independente de toda intenção. Seu princípio é apodíctico (prático).
Kant volta ao problema da felicidade já abordado na primeira secção, para ratificar que ela é uma finalidade da qual se pode dizer que todos os seres racionais a perseguem realmente (necessidade natural), mas o imperativo aqui cabível é hipotético, e este que nos representa a necessidade prática da ação como meio para fomentar a felicidade é assertórico (KANT, 2002, p.51-52). O filósofo especifica que a destreza na escolha dos meios para atingir o maior bem-estar próprio pode-se chamar prudência (Klugheit), em sentido restrito (KANT, 2002, p.52). E logo explica que:

"o imperativo que se relaciona com a escolha dos meios para alcançar a própria felicidade, quer dizer o preceito da prudência, continua a ser hipotético; a ação não é ordenada de maneira absoluta, mas somente como meio para uma outra intenção." (KANT, 2002, p.52).

Logo, este imperativo jamais pode ser um imperativo da moralidade.
Kant distingue, assim, três princípios a exigir da vontade diferentes obrigações: 1) regras da destreza (cujos imperativos são técnicos e se ligam à arte); 2) conselhos da prudência (pragmáticos, ligados ao bem-estar); e 3) mandamentos ou leis da moralidade (pertencentes aos costumes, à livre conduta em geral, de necessidade incondicionada e possuidores de uma validade universal que deve ser considerada mesmo contra toda inclinação). A felicidade situa-se, obviamente, no segundo princípio.

"O conselho contém, na verdade, uma necessidade, mas que só pode valer sob a condição subjetiva e contingente de este ou aquele homem considerar isto ou aquilo como contando para a sua felicidade; enquanto que o imperativo categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição e se pode chamar propriamente um mandamento, absoluta-, posto que praticamente, necessário." (KANT, 2002, p.53).

Vejamos, então, o golpe final que se desfere sobre o problema da felicidade, no âmbito da discussão que vimos abordando, para seguirmos adiante na consideração do que se propôs a segunda secção da Fundamentação da metafísica dos costumes. O imperativo de destreza pauta-se na seguinte proposição analítica: Quem quer o fim, quer também [...] o meio indispensavelmente necessário para o alcançar (KANT, 2002, p.54). Aqueles, porém, da prudência seriam semelhantes a estes se fosse igualmente fácil dar um conceito determinado de felicidade. Mas

"infelizmente o conceito de felicidade é tão indeterminado que, se bem que todo o homem a deseje alcançar, ele nunca pode dizer ao certo e de acordo consigo mesmo o que é que propriamente deseja e quer. A causa disto é que todos os elementos que pertencem ao conceito de felicidade são na sua totalidade empíricos, quer dizer têm que ser tirados da experiência, e que portanto para a ideia de felicidade é necessário um todo absoluto, um máximo bem-estar, no meu estado presente e em todo o futuro. Ora é impossível que um ser, mesmo o mais perspicaz e simultaneamente o mais poderoso, mas finito, possa fazer ideia exata daquilo que aqui quer propriamente. [...] Em resumo, não é capaz de determinar, segundo qualquer princípio e com plena segurança, o que é que verdadeiramente o faria feliz; para isso seria precisa a onisciência. Não se pode pois agir segundo princípios determinados para se ser feliz, mas apenas segundo conselhos empíricos [...] Daqui conclui-se: que os imperativos da prudência, para falar com precisão, não podem ordenar, quer dizer representar as ações de maneira objetiva como praticamente necessárias; que eles devem considerar mais como conselhos (consilia) do que como mandamentos (praecepta) da razão; que o problema de determinar certa- e universalmente que ação poderá assegurar a felicidade de um ser racional, é TOTALMENTE INSOLÚVEL, e que portanto, em relação com ela, nenhum imperativo é possível que possa ordenar, no sentido rigoroso da palavra, que se faça aquilo que nos torna felizes, pois que a felicidade não é um ideal da razão, mas da imaginação, que assenta somente em princípios empíricos dos quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária para alcançar a totalidade de uma série de consequências de fato infinita." (KANT, 2002, p.56).* [NOTA: O destaque dado ao "totalmente insolúvel" (caixa alta) é nosso, não do texto original.]

Neste sentido, acertam Vergez e Huisman ao afirmarem que em tal ponto Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás (VERGEZ, HUISMAN, 1984, p.261). Sob a perspectiva kantiana, Michèle Crampe-Casnabet afirma que A busca da felicidade [...] está excluída da ética por uma dupla razão: primeiramente, a felicidade depende essencialmente da singularidade, depois ela não pode ser objeto de um dever. E disto só se pode concluir que A felicidade é assunto do homem privado. Pois, segundo este ponto de vista, uma tal busca poderia desenrolar-se anarquicamente, em que uns transformariam outros em meios para seus próprios fins (CRAMPE-CASNABET, 1994, p.73-74). Ora, quando Kant tenta classificar todos os princípios (empíricos ou racionais)* [NOTA: Os empíricos derivam-se do princípio da felicidade, os racionais do princípio da perfeição.] possíveis da moralidade, a partir do conceito fundamental da heteronomia, ele não hesita em afirmar que:

"O princípio mais condenável, porém, é o princípio da felicidade própria, não só porque é falso e porque a experiência contradiz a suposição de que o bem-estar se rege sempre pelo bem-obrar; não só ainda porque não contribui em nada para o fundamento da moralidade [...]; mas sim porque atribui à moralidade móbiles que antes a minam e destroem toda a sua sublimidade, juntando na mesma classe os motivos que levam à virtude e os que levam ao vício, e ensinando somente a fazer melhor o cálculo, mas apagando totalmente a diferença específica entre virtude e vício." (KANT, 2002, p.87-88).

Não deve surpreender-nos o fato de que já na sua Crítica da Razão Pura (1781), Kant esteja convencido do seguinte: A felicidade sozinha está longe de constituir o bem perfeito para a nossa razão (KANT, 1983, p.396). É decisivo o que o filósofo diz sobre a felicidade no final da referida Crítica, e são consideráveis suas assertivas levadas adiante nas obras posteriores, particularmente na Crítica da Razão Prática (1788), onde ele pensa reconciliar virtude e felicidade numa teoria dos postulados, no conceito de Soberano Bem, etc. Contudo, abandonaremos aqui o tema da felicidade, para seguirmos adiante na consideração da possibilidade de um imperativo da moralidade e demais preocupações desta Fundamentação da metafísica dos costumes.
Tal como o imperativo da destreza, o da prudência deve almejar os meios para um suposto fim querido. Para Kant, o primeiro tem um fim simplesmente possível; este segundo, um fim dado. Não há dificuldade quanto à possibilidade de ambos, que são hipotéticos. Diferentemente, a possibilidade de um imperativo da moralidade exige de nós solução menos fácil. A primeira coisa que devemos considerar, impreterivelmente, é que esta possibilidade de um imperativo categórico deve ser buscada absolutamente a priori. Não é somente este imperativo que manifesta uma lei prática? Estamos em face de uma proposição sintética-prática a priori (liga-se necessariamente ao ato a priori, a vontade) e, portanto, seu imperativo exprime grandíssima dificuldade de identificação da sua possibilidade. Como é possível um mandamento absoluto? Isto se responderá na terceira secção. Mas, fornecerá o conceito do imperativo da moralidade, uma fórmula que abranja a proposição que por ela tão somente seja um imperativo categórico?
Para Immanuel Kant, quando pensamos um imperativo categórico, nós sabemos imediatamente o que ele contém, pois o imperativo, para além da lei, não possui senão a necessidade da máxima (princípio subjetivo da ação) que ordena conformarmo-nos à lei. Esta lei é ilimitada, de modo que desembocamos na universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da ação deve ser conforme, e tal conformidade só o imperativo nos representa propriamente como necessária (KANT, 2002, p.59). Deleuze nos ajuda a entender isto, quando discorre sobre a forma da legislação universal que obviamente pertence à Razão:

"A lei moral não se apresenta como um universal comparativo e psicológico (por exemplo: não faça a outro etc). A lei moral nos ordena pensar a máxima de nossa vontade como “princípio de uma legislação universal”. Pelo menos é conforme à moral uma ação que resiste a esta prova lógica, isto é, uma ação cuja máxima pode ser pensada sem contradição como lei universal. O universal, neste sentido, é um absoluto lógico." (DELEUZE, 1976, p.45).

O imperativo categórico exprimir-se-á por meio da seguinte fórmula mais geral: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. Contudo, exprime-se também desta forma mais precisa: Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza (KANT, 2002, p.59). Ora, quando adentramos em casos mais particulares* [NOTA: Sob a aplicação desta lei, Kant elabora quatro exemplos emblemáticos (do suicídio, da promessa falsa, do talento natural e da indiferença aos outros). A estes mesmos exemplos ele retornará, em modalidades diversas de argumentação, no decorrer da Fundamentação. Embora clássicos, não os confrontaremos de modo explícito neste estudo, sem prejuízo algum a nossos propósitos.] somos levados a inferir que Temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral (KANT, 2002, p.62).
Aqui torna-se claro que muitas de nossas máximas entrariam em desacordo (contradição) consigo mesmas, enquanto leis universais da natureza, e daí nos advém a absoluta insustentabilidade destas supostas leis, ou a veemente recusa de nosso espírito quanto à universalização das mesmas. Ora, não podemos transgredir quaisquer deveres? Sim, sem dúvida. Mas, curiosamente, quando agimos assim não queremos que a nossa máxima assuma aquela temível universalidade, nós apenas abrimos uma exceção em favor de nós mesmos. Ou seja, continuamos a reconhecer a validade daquele imperativo que transgredimos, com a recusa da extensão universal do nosso ato excepcional. E negando-o parcialmente, nós o afirmamos universalmente válido.
Mas a priori, este tal imperativo existe? De onde nos vem? Jamais devemos pretender deduzi-lo da constituição particular da natureza humana. Neste sentido é certo dizer que do menos não pode vir o mais. O que extraímos dela (da constituição particular da natureza humana) pode avultar-se em máxima, nunca em lei. Pois o que é empírico agride a pureza dos costumes. E um tal dever que se imponha incondicionalmente tem de valer para todo ser racional, em qualquer tempo, instância e infinitas possibilidades. Sobre isto, o filósofo graceja:

"aqui vemos nós a filosofia posta de fato numa situação melindrosa, situação essa que deve ser firme, sem que possa encontrar nem no céu nem na terra qualquer coisa a que se agarre ou em que se apoie. Aqui deve ela provar a sua pureza como mantenedora das suas próprias leis e não como arauto daquelas que lhe segrede um sentido inato ou não sei que natureza tutelar, as quais no seu conjunto, sendo melhores que coisa nenhuma, nunca poderão aliás fornecer princípios que a razão dite e que tenham de ter a sua origem totalmente a priori e com ela simultaneamente a sua autoridade imperativa: nada esperar da inclinação dos homens, e tudo do poder supremo da lei e do respeito que lhe é devido, ou então, em caso contrário, condenar o homem ao desprezo de si mesmo e à execração íntima." (KANT, 2002, p.64-65).

Põe-se a questão de ser ou não ser necessária, para todo racional, a lei de filtrar quaisquer de suas ações pelas máximas que possam ser queridas simultaneamente como leis universais. Se esta referida lei existe, tem ela de estar já ligada (totalmente a priori) ao conceito de vontade de um ser racional em geral (KANT, 2002, p.66). E, para chegarmos à descoberta desta “ligação”, havemos de abraçar a Metafísica; precisamente, a Metafísica dos Costumes, onde não nos preocuparemos com os princípios do que acontece, mas com as leis do que deve acontecer, mesmo que nunca aconteça (KANT, 2002, p.66). Logo veremos que se a razão é imperatriz de nossas ações, a exercer seu comando sobre a vontade, deve fazer isto a priori. É preciso admitir, todavia, a existência de algo que tenha em si valor absoluto (isto é, um fim em si mesmo), para daí estabelecermos as bases de determinadas leis. Apenas nisto encontraremos suporte para um possível imperativo categórico (lei prática).
Immanuel Kant partirá para a consideração do homem, todo o ser racional, como fim em si mesmo. Os demais seres da natureza, se são irracionais, possuem um valor relativo, são coisas. Seres racionais se chamam pessoas porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (KANT, 2002, p.68). A pessoa impõe, assim, inigualável respeito. Seu valor é absoluto. Ela é insubstituível, um fim objetivo, cuja existência é por si mesma este fim em si. Esta é sem dúvida uma nova concepção de pessoa, um manancial ético de vastas riquezas. Por isso, sem delongas, consideremos a nova forma do imperativo (prático): Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (KANT, 2002, p.69).
Podemos perceber que em hipótese alguma será admissível, moralmente, a “coisificação” do ser humano, isto é, tomá-lo como meio para fins diversos. Ele deve ser considerado, sejam quais forem as ações (suas ou de outrem) e qual preço se pague por isto, como fim em si mesmo simultaneamente. E, obviamente, tem-se a partir disto direitos assegurados. Qualquer tomada do ser humano, para consigo mesmo ou em relação a outrem, como meio, é violação dos direitos de sua humanidade. Claro está que o fim do outro, de modo geral, coincide com meu fim, enquanto fim em si mesmo do que somos: pessoas humanas, seres racionais. Crampe-Casnabet diz mais: Ser um fim-em-si, ser uma pessoa, só tem sentido pela liberdade. A ética formal encontra aqui não um conteúdo, mas a condição de possibilidade de todo o conteúdo que qualquer teoria moral procurou sem nunca exibi-la (CRAMPE-CASNABET, 1994, p.79). Voltaremos a falar da liberdade, na terceira parte deste estudo.
Kant une agora os dois princípios que vimos (da universalidade da natureza racional e da humanidade), para dar à luz um terceiro:

"o princípio de toda a legislação prática reside objetivamente na regra e na forma da universalidade que a torna capaz (segundo o primeiro princípio) de ser uma lei (sempre lei da natureza); subjetivamente, porém, reside no fim; mas o sujeito de todos os fins é (conforme o segundo princípio) todo o ser racional como fim em si mesmo: daqui resulta o terceiro princípio prático da vontade como condição suprema da concordância desta vontade com a razão prática universal, quer dizer a ideia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal." (KANT, 2002, p.72).

Rejeitam-se, neste princípio, as máximas que não possam se sustentar ante a mesma legislação universal da vontade. A vontade não se sujeita, tão somente, à lei; ela é, ao mesmo tempo, legisladora. Georges Pascal resume isto nos seguintes termos:

"Eis aí o que Kant chama de princípio da autonomia da vontade. Ele nos faculta compreender por que a nossa obediência à lei não se funda na busca de um interesse qualquer: obedecemos à lei porque somos nós mesmos que nos damos a lei. O imperativo categórico, em que ela encontra sua expressão, pode pois muito bem ser incondicionado, e somente ele pode sê-lo. Todas as tentativas feitas até então para descobrir o princípio da moralidade falharam porque procuravam saber que espécie de interesse poderia ter o homem em agir segundo certas leis. Por outras palavras, elas punham o princípio da heteronomia da vontade, por julgarem que esta não pudesse ser determinada senão por algo de extrínseco a ela. Para Kant, ao contrário, a vontade dá-se a si mesma a sua lei: ela é autônoma." (PASCAL, 1983, p.124).

A autonomia da vontade eleva a um grau absoluto a dignidade da pessoa. É, para Kant, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional (KANT, 2002, p.79).
Desta forma veremos porque só a autonomia da vontade poderia ser deveras o princípio supremo da moralidade. Seu princípio é não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal (KANT, 2002, p.85). Pela análise dos conceitos da moralidade somos levados à constatação de que este princípio é o único princípio da moral. [...] tem de ser um imperativo categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia (KANT, 2002, p.86).
Vimos, outrossim, o princípio da Autonomia da vontade.* [NOTA: Este se opõe naturalmente ao da Heteronomia da vontade que é, segundo Kant, a fonte de todos os princípios ilegítimos da moralidade. “Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é então sempre heteronomia. Não é a vontade que então se dá a lei a si mesma, mas é sim o objeto que dá a lei à vontade pela sua relação com ela.” (KANT, 2002, p.86).] Deparamo-nos com um conceito a partir do qual o ser racional deve ter-se como legislador (universal). Do que foi dito somos agora levados a um outro conceito, especialíssimo, o de um Reino dos fins.


Fim de A INSOLUBILIDADE DO PROBLEMA DA FELICIDADE, DISCUSSÃO SOBRE A POSSIBILIDADE DE UM IMPERATIVO CATEGÓRICO E A AUTONOMIA DA VONTADE.
In: “A Razão, o homem e um Reino dos fins na Fundamentação da metafísica dos costumes de Immanuel Kant” – Antonio Fabiano
E-mail: seridoano@gmail.com
www.antoniofabiano.blogspot.com
* Próximo artigo: O REINO DOS FINS, O IMPERATIVO CATEGÓRICO E A LIBERDADE.
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