terça-feira, 25 de novembro de 2014

TÃO QUERIDA IRIS...

Iris Gomes da Costa (foto: Jorge Baumann)

Iris Gomes da Costa é natural de São Fidélis-RJ. Estudou Literatura Comparada (UFRJ). Dedicou-se ao estudo da prosódia, no Brasil, especializando-se nos sotaques brasileiros, fazendo vários trabalhos para a televisão, dentre eles: Grande Sertão: Veredas; Helena; Chapadão do Bugre; Tieta; Memorial de Maria Moura; Renascer; As Pupilas do Senhor Reitor; Serras Azuis; Xica da Silva; A Indomada; O Auto da Compadecida; Meu Bem Querer; A Muralha etc.
Publicou crônicas no Jornal Nova Fronteira (São Fidélis); poemas nos Cadernos Universitários (UFRJ).
Participou da antologia Universitários: Verso e Prosa (Editora José Olympio).
Foi membro da equipe do Prof. Dr. Afrânio Coutinho, na Enciclopédia de Literatura Brasileira.
Diversas vezes premiada, destaca-se o “Prêmio Nacional Alfredo Machado Quintella”, com um ensaio poético sobre o livro Bem do Seu Tamanho de Ana Maria Machado.
A convite especial do Consulado Americano foi escolhida para intercâmbio cultural com personalidades do cinema, da literatura, do teatro e da televisão. Por essa ocasião registrou e gravou na Biblioteca do Congresso de Washington (EUA) a primeira composição do seu livro Pedras D’água, com o título de Acqua Lírica.
Adaptou para a televisão a peça Uma mulher Vestida de Sol, juntamente com o autor Ariano Suassuna e o diretor Luiz Fernando Carvalho.
A pedido da atriz Araci Cardoso, escreveu para o teatro a peça A Teus Pés, em parceria com Mércia Neri, reunindo poemas de Ana Cristina Cesar.
É de sua autoria o monólogo Memória de Embornal, representado pelo ator Jackson Antunes, que marca a estreia da consagrada diretora de cinema e TV, Tisuka Yamasaki, na área teatral.
Também presta sua colaboração ao cinema, tendo participado dos filmes Manôushe, de Luiz Carlos Begazo, O Guarani, de Norma Bengel e A Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende.
Rachel de Queiroz, lendo Iris, diz de sua poesia: “Um jogo meio barroco; seria talvez enervante, se não nos enfrentasse um grande, autêntico talento de poeta.”
Especialíssima criatura humana, Iris Gomes da Costa é membro da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares (OCDS). 


OITO POEMAS

Seleção pessoal de oito poemas da minha amiga Iris Gomes da Costa, com quem estive recentemente, aqui em casa, em sempre renovada alegria. Todos do livro PEDRAS D'ÁGUA (Edições Cuatiara, 2001). A numeração entre colchetes é minha, não dos originais.


[1]

Pelo chão
o brilho 
de escamas prateadas:
céu de estrelas
sob o sol

O peixe sem cabeça
A carne tenra

O lábio macio
toca o coração
O beijo
suga a boca
O corpo inteiro
um só torpor

Onde
os olhos do peixe
petrificados
para fixar
o escoante delírio
do amor?



[2]

Por que não apagar a luz
e tentar dormir?

Enfiar o dedo no nariz
remexer uma nova
sempre antiga meleca
ouvir o barulho
renitente
da água da torneira
que pinga
insistente
na pia do banheiro
seguir o motor do carro
que passa ao longe
indo apressado
para um longe
onde não sei
de que adianta?

Por que não apagar a luz
e dormir
encurtando
a prolongada solidão
de minha noite
já que é certa
a certeza
de que você não vem?



[3]

A sala vazia
de nossos móveis
velhos
usados
imprestáveis
mede meu olhar

Emoldurada
no meio da sala
traduzo:
não mais prestamos
um para o outro

Rimo belo com feio
sorriso com lágrima
riso com dor



[4]

Atravessar
a rua / a vida
– partida –
no chão duro
o asfalto / o passo
– a separação –
caminho estéril:
nem mesmo uma pegada
– impossível revenir sur les pas
– voltar jamais – 
partiu-se o fio de Ariadne
labirinto
– sinto –
– minto –
(o solo seco
absorveu a lágrima
barranco
que já foi cachoeira)
– verdade inteira –
verdadeira?
de um lado
– um – 
do outro
– outro – 
no meio
– a rua – 
– a vida –
sinal aberto
preciso atravessar



[5]

Esfinge
tatuo gargalhadas
no ar

– cavalo relinchando – 

(Riso de prazer
ou
grito alucinante
de agonia?)



[6]

Liquidez de pedra
quietude de terremoto
calmaria de vendaval:

eu
no escuro de mim
à espera
de um milagre

(Qual)

– ? –



[7]

O lamento
embalsamado
endurecido
na boca
da Mãe África
escorre
por meus ouvidos
feito gemido
de mulher
a se contorcer
em dores
por parir

– o difícil parto
da Liberdade –



[8]

Poeta:
pássaro da noite
guardião da lua
prisioneiro das estrelas

(Onde 
a gaiola
transparente
aberta
para o voo?)


 COSTA, Iris Gomes da. PEDRAS D’ÁGUA. Belo Horizonte: Cuatiara, 2001.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

PASSARELA de Rizolete Fernandes

Rizolete Fernandes 


PASSARELA

Sobre automóveis
na passarela
de ferro e cimento ela
se inventa "top model"

Dia qualquer da semana
em seu aéreo caminho
ninguém exceda ou puxe
o tapete do desfile
coberto em "flash" solar

Desfruta a moça a delícia
da arte da engenharia
que a cidade oferece
e se inaugura nas nuvens
igualzinho às estrelas

E quem não quer
não ousa posar
passar por cima
e se sentir "star"?


Rizolete Fernandes (Vento da tarde, 2013)


PASARELA

Sobre los coches
en la pasarela
de hierro y cemento ella
se inventa "top model"

Cualquier día de la semana
en su elevado camino
nadie exceda o retire
la alfonbra del desfile
cubierto de "flash" solar

La chica disfruta la delicia
del arte de la ingeniería
que ofrece la ciudad
y se inaugura en las nubes
igualito a las estrellas

¿Quién que pasa por arriba
no osa posar
y quiere sentirse "star"?  

(Tradução de Alfredo Pérez Alencart)

domingo, 23 de novembro de 2014

ÍNGUA NA LÍNGUA - Leonam Cunha

ÍNGUA NA LÍNGUA

Ela, brasileira
Ele, de qualquer outra parte
Um dizia oi; o outro se calava.
Não se entendiam

Mas quando a lua punha a cara para fora feito
um tatu-bola,
O desentendimento perece...

Ela, brasileira
Ele, de qualquer outra parte
No escuro, encurralados,
Parece que nasceram juntos

Entendem-se como abelha e flor

A língua do corpo, manhê
A língua, paiê -

(Ô mãe, ô pai, ô fi dos outros)

- é universal.


Leonam Cunha
Dissonante (Sarau das Letras, 2014)

_________________________________

Leonam Cunha nasceu em Areia Branca/RN e, atualmente, reside em Natal. É graduando em Direito pela UFRN e publicou, em 2012, pela Sarau das Letras, seu primeiro livro de poesias intitulado Gênese. Em 2014 veio à luz seu Dissonante, pela mesma editora de Mossoró/RN.


Leonam Cunha - arquivo pessoal do poeta

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

SELEÇÃO DE POEMAS DE ZILA MAMEDE

Zila Mamede (1928-1985)


ZILA MAMEDE nasceu em Nova Palmeira, na Paraíba, em 1928. É expressão máxima da poesia potiguar do século XX. Foi lida e admirada por grandes poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. Faleceu em 1985, enquanto nadava na Praia do Meio, costa litorânea, próxima ao Forte dos Reis Magos, em Natal, Rio Grande do Norte. 

ROSA DE PEDRA (1953):

CANÇÃO DA ROSA DE PEDRA

Essa, a rosa da promessa
da noite do nosso amor,
murcha rosa indiferente,
sem alma, escassa de olor?

Por que essa rosa de pedra,
o meu presente nupcial?
– Pantanosa flor de lama
gerada em brisas de sal.

O riso da minha infância,
gritam-no abismos de sangue
onde boia impura, incauta,
flor de pedra, flor de mangue.

A vã promessa incumprida
na noite do nosso amor
repousa em praias de sombra
navega em mares de dor.

SALINAS (1958):

ELEGIA

Não retornei aos caminhos
que me trouxeram do mar.
Sinto-me brancos desertos
onde as dunas me abrasando
tarjam meus olhos de sal
dum pranto nunca chorado,
dum terror que nunca vi.

Vivo hoje areias ardentes
sonhando praias perdidas
com levianos marujos
brincando de se afogar,
com rochedos e enseadas
sentindo afagos do mar.

Tudo perdi no retorno,
tudo ficou lá no mar:
arrancaram-me das ondas
onde nasci a vagar,
desmancharam meus caminhos
– os inventados no mar:
depois, secaram meus braços
para eu não mais velejar.

Meus pensamentos de espumas,
meus peixes e meu luar,
de tudo fui despojada
(até das fúrias do mar),
porque já não sou areias,
areias soltas de mar.
Transformaram-me em desertos,
ouço meus dedos gritando
vejo-me rouca de sede
das leves águas do mar.

Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.

Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.

Que amargura em ser desertos!
Meu rosto a queimar, queimar,
meus olhos se desmanchando
– roubados foram do mar.
No infinito me consumo:
acaba-se o pensamento.
No navegante que fui
sinto a vida se calar.

Meus antigos horizontes,
navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
que só existo no mar.

CANÇÃO DO AFOGADO

Nos olhos de cera
dois pingos de vida,
nas marcas de vida
a noite pisou.
A face tranquila
bordada de sombras
– são restos de estrelas
que o céu apagou.
Os dedos lilases
não pedem mais sol;
e os lábios desfeitos
perderam seus gestos,
calaram seus sonhos
que a morte levou.
Cabelos de musgos
lavados de espumas
caminha o afogado
que o mar conquistou.

RETRATO

Me lembrava da menina
escavacando o chão agreste,
me lembrava do menino
carregando melancias.

Em que terras desembocam
esses talos de crianças
mais finos que as maravalhas,
mais fortes que a ventania?

Dois pés descobriram casa,
multiplicaram-se em hastes
– são cabeleiras de trigo
dos moinhos de Van-Gogh.

A sombra dos dois irmãos
repartiu-se entre os veleiros:
seu tronco desarvorado
virou estrelas no mar.
  
O ARADO (1959):

TRIGAL

Por entre noite e noite, essas veredas 
para os trigais maduros me acenando. 
Despertam-se campinas, precipitam-se 
as invenções da luz na ventania.

Por entre lua e lua, essa querência 
– um resmungar de espigas conscientes 
do retorno às searas, que ceifeiros 
já descerraram olhos invernais.

Planície enlourecendo se oferece 
e um mar desenha nos pendões crescentes. 
Ceifeiros – seus marujos sem navios –

pescam sementes, riscam no amarelo 
a saudade dos peixes inascidos 
nesse (não mar das águas) mar de pão.

MILHARAIS

Nos milharais plantados (minha infância),
recém-nascidas chuvas pelos rios
que rebentavam adubando várzeas
onde meus pés-meninos se afundavam
no cheiro fofo do paul novinho.
Terra multipartida, covas conchas,
das mãos do meu avô descendo o grão.
Pela manhã íamos ver as roças
à superfície frutos devolvendo
– folhinhas enroladas, verde calmo
se desfiando ao sol, em sol, de sol.
Quando escorriam outros aguaceiros
os dedinhos do milho iam subindo
em vertical, depois abrindo os braços
e já mais tarde o milharal surgia
os pendões leques leves abanando
o triunfal aceno da chegada.
E vinha logo a quebra das espigas,
eu chorava de pena, elas dobravam-se
por sobre o caule, tesas deslizando
no chão, nos aventais apanhadores,
sua palha entreaberta – riso triste 
de quem, nascido, vê-se morto infante,
pois sendo espigas tenras, de repente
logo viravam massa, logo, pão.
Eu as tomava com temor doçura,
trançava seus cabelos, embalava-as:
eram espigas não, eram bonecas
que me aqueciam, eu as maternava
lavando-as, penteando-as, libertando-as
de gumes de moinhos e de fomes
dos animais domésticos, ancinhos,
fogueiras de São João. Pelos terreiros
procuro em vão os milharais vermelhos
de vermelhas papoulas adornando
as vaidosas tranças das espigas – 
bonecas brancas, minha meninice,
meu avô habitando agora um campo
onde ele, em vez do milho, é uma semente,
meu avô, minha avó, os milharais,
não tendo mais infância, tenho-a mais.

EXERCÍCIO DA PALAVRA (1975):

MÃE

A mulher fia o filho
No silêncio do corpo
inaugura-se: mãe.
O ventre: curvatura de sol
levantando-se
em mansidão de horizonte.
De si própria se esquece:
tecelã da rosa que já aflora
em crescimento lento
no seu sangue.

BALADINHA
DA VARANDA DO APARTAMENTO
DE ODILON RIBEIRO COUTINHO,
NUMA FESTA
ONDE PIXINGUINHA REINAVA

As cores e tua fala
na varanda solidão
deixei que a noite morrente
repousasse em tua mão

Um vale remanhecido
põe nevoeiro em teus cabelos
nas cores a madrugada
explicando-me navegos

Subida montanha, linhas
nas cores de tua face:
letra morta despedida
dos azuis que abandonei

De dentro dos teus acordes
um cavalo disparou:
por sobre os vãos dos teus olhos
rosamanhã me levou.

CORPO A CORPO (1978):

ONDE

Entre a ânsia
  e a distância
  onde me ocultar?

Entre o medo
  e o multiapego
  onde me atirar?

Entre a querência
  e a clarausência
  onde me morrer?

Entre a razão
  e tal paixão
  onde me cumprir?

A HERANÇA (1984):

HERMELINDA NO ESPELHO

O rosto exige unção de creme nutritivo
textura de loção hidratante
sedosidade de sabão adstringente

O rosto seleciona cores de potes,
formatos de tubos e de frascos
na concorrência das embalagens

que se oferecem em fiteiros e vitrines
– o chamariz harmônico e ofuscante
do gás neón, luz fria, candeeiros

Espelhos salientam abusivos olhos
pincéis acentuam a descritiva sensual dos lábios
dedos massageiam impiedosas geometrias 
                        [de pescoços e colos

Sacralizados em banheiros e termas
multíplices cosméticos realimentam
as vibrações do rosto que exorciza o tempo.

___________________________________

MAMEDE, Zila. Navegos (Poesia reunida, 1953-1978). Belo Horizonte: Editora Vega S.A, 1978.

MAMEDE, Zila. Navegos; A Herança. Natal: EDUFRN - Editora da UFRN, 2003.


Veja também:

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

ANTOLOGIA POÉTICA

CANTOCHÃO 
(Antonio Fabiano)

Coberto em escombro e silêncio
Grossos tijolos pedras
Jaz entre céu de sol e chão de caatinga
O que sobrou do velho convento
Que séculos mais tarde
A minha jovem descalcês carmelitana pisa.

A chave é tão grande...
Mas onde a porta? 

Aportem meus pés
Sobre estas rochas
Como carícia de um canto em cantochão 
Que se não as escutarmos
Elas gritarão...


In: MOSSORÓ E TIBAU EM VERSOS: antologia poética. Org. David de Medeiros Leite, José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo. Mossoró, RN: Sarau das Letras, 2014, p. 39.

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“Como esta nota de apresentação se propõe a um comentário geral, não pretendia me deter a um poema especificamente. Mas terei que excetuar para contextualizar o poema “Cantochão”, autoria do frei Fabiano de Santa Maria do Monte Carmelo. É sabido que existe uma ligação histórica entre a Ordem Carmelita e nossa cidade. Câmara Cascudo, em seu livro Notas e Documentos para a História de Mossoró, refere-se à “presença desta Ordem desde o primeiro ou segundo ano do século XVIII, com atividade religiosa regular”, acrescentando que existiam relações amistosas entre frades e indígenas. Os escombros do que foi a morada dos Carmelitas estão lá na zona rural, esperando uma sonhada prospecção arqueológica. Pois bem, em janeiro de 2008, frei Fabiano visitou a capela de Nossa Senhora do Carmo, localizada precisamente no, hoje, assentamento Carmo e, na oportunidade, desejou fazer uma oração memorial junto aos escombros da antiga morada dos seus confrades, mesmo que, para tanto, tivesse que caminhar em meio ao mato, como lhe foi advertido. Aquele momento foi marcante para o religioso, porquanto, anos depois, ele nos remeteu esse poema. Em tempo: a chave aludida no texto lhe foi mostrada por um morador do lugar, que a guarda como relíquia, desde que a casa-convento ruiu.”

David de Medeiros Leite
em fragmento de À guisa de Apresentação,
texto introdutório da importante Antologia.