terça-feira, 7 de setembro de 2021

LEITE CONDENSADO

um rio de leite condensado escorre.

não é doce esta notícia.

são milhares de afogados.

quero cortar os pulsos

mas não há lâmina possível!

escrever é inócuo, inútil, inútil,

i ne vi tá vel...

dói e a culpa de escrever

em cima de não sei quantos mil cadáveres

dói mais, dói outra vez, dói de novo, dói muito, dói

para sempre...

não é retórica. não é.

destroços de um país não é retórica,

não é sequer poesia!

se eu fingir que nada aconteceu

os mortos voltam?

odeio a letra, rasgue o poema!

se for adiante, vai chafurdar em lama,

vai se afogar em merda!

não consigo respirar, não consigo respirar,

não consigo respirar...

asfixiado

sou a sombra de um morto; adiado,

deambulo, perambulo...

trôpego caio. bêbado caio. desequilibrista caio.

não há respiradores aqui,

não há insumos aqui,

não há hospitais aqui,

não há onde caibam tantos doentes...

um curativo gigante não cobre minha ferida!

de morte a não caber estão cheios

os cemitérios, necrotérios, frigoríficos

tudo a empilhar corpos.

em surdo silêncio

rompemos

a barreira do som...

meus tímpanos estouraram!

durmo e acordo e em meu pesadelo

desfilam generais de mil estrelas.

ó pátria amada!

puta que pariu!

há sangue sem cor, suor e dor,

cheiro de urina e fezes por toda parte...

há ódio em mãos que me afagam,

as bocas que me beijam têm serpentes

no lugar de dentes.

há flores murchas e,

em mil pedaços de cores, afetos cortados, laços

partidos.

como uma ideia fixa

eu não consigo respirar...

eu não consigo respirar...

eu não consigo respirar...

a carne preta e viada é arrastada pelas ruas,

espancada, vilipendiada,

vendida a preço de banana,

vendida a preço de cachaça,

deixada em becos, praças, calçadas...

(mas não se pode dizer que houve chacina na favela).

come-se leitão à pururuca

em palácios e quarteis.

estou pelo avesso...

vomitei. vomitei.

eu avisei.


Antonio Fabiano

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