quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 6)

Antes de procurarmos saber como este caminho ou como esta indicação se confirma nos diferentes níveis do poema, já nos damos conta que, pelas diversas leituras efetuadas, o poema em sua totalidade possui uma organização bem delimitada. Com isto, compreendemos, mais uma vez, que a maior unidade de sentido do poema é ele mesmo. E “Serpente Emplumada” é poema extremamente descritivo (recurso muito mais narrativo do que lírico) por focalizar e descrever os blocos poéticos: o entrelaçamento do “eu” lírico ou sujeito da enunciação (ora implícito, ora explícito) e do sujeito do enunciado (que é aquele do qual fala o discurso) compõe, estes últimos como figuras centrais, a cena, conferindo dinamicidade à mesma e permitindo dividir o poema em blocos como já foi e está sendo analisado. Estes (blocos) são as variações que o desenvolvimento do tema pode assumir, estando “Serpente Emplumada” dividida em vários blocos.

Assim, cumpre-se, no poema, um tempo imanente à palavra, não condicionado ao ritmo do calendário, da duração interior e do mito. Dotado de padrão próprio, o tempo da poesia se ordena como o tempo da enunciação, no ato de produzir os sons das palavras, numa continuidade inapreensível por qualquer instrumento mecânico. – p 150 A Criação Literária de Massaud Moisés.

O entendimento desse aspecto do fenômeno poético avançará se recordarmos que a palavra poética estrutura-se com base numa tensão múltipla, de natureza rítmica, emotiva e conceptual ou semântica. Aqueles expedientes versificatórios servem à compreensão dessa tríplice tensão, mas não a desencadeiam. E é essa tensão que assinala a presença no texto, de um tempo sui generis, ambíguo por natureza, que transcorre no circuito das palavras. Tudo se passa como se as três outras dimensões do tempo se fundissem numa só: a dimensão emocional, a dimensão semântica e a dimensão rítmica, entrelaçadas como uma duração dialética.

[Gaston Bachelard, La Dialectique de la Durée. Paris, P.U.F., 1963, pp 112 e suas. Do livro A Criação Literária de Massaud Moisés.]

Se o tempo da poesia se ordena como o tempo da enunciação, no ato de produzir os sons das palavras, numa continuidade inapreensível, dir-se-ia que este tempo (da poesia) define-se pelo aqui e o agora (momento presente da composição do poema), numa tensão dialética, como se pode constatar nos versos que constituem o processo de descrição exata do real:

 

“Um fruto / Caiu verdinho / Da árvore. /

Não amadureceu. / Permaneceu igual /

Para sempre / No espaço / E no tempo /

Do poema / (Já que muitas coisas / Acontecem /

Dentro e fora / Do poema). / A média estação... // 

Todos os dias / Em pelos / De pernas e braços / Unhas / E células mortas / Vamo-nos aos poucos / Para o nada.

  [...]

Isso é morrer?”

 

Se a palavra é o habitat do ser, a palavra poética é a sua morada eleita, porque acima das contingências, a da História, a da Consciência e a do Mito: “a poesia é a instauração do ser com a palavra”.

[Heidegger, op. cit., p.107 – A Criação Literária de Massaud Moisés]

Ao conceber a poesia como “a palavra no tempo”, Antônio Machado adiciona-lhe novas luzes, porquanto “a palavra no tempo” implica que a palavra se desgarra de sua forma gráfica para assumir-se no tempo o que equivale a supor que a palavra não remete para o tempo, mas nele se incorpora, com ele se identifica. Palavra que se metamorfoseia em tempo, isto é, noutros termos a palavra se cristaliza num tempo próprio, uma quarta dimensão – para estabelecer analogia entre a sua e a nossa ideia.

 

“Por um instante a humana tribo habita

Aquele chão

Aquele ...

.......................................................

.......................................................

Põe-se em fuga

Outra vez.

 

O pó da estrada fica

Para além”

 

E a fixação dos diversos fatos dispostos em um mesmo plano nas estrofes acima, se verifica não só pelo emprego do presente do indicativo – habita, finca, erguem(-se), torna(-se), é, derribam(-se), põe(-se), fica – que já é por si um tempo pictórico, portanto estático, mas pela utilização de significados verbais que muito se aproximam de significados nominais, a ponto de com eles se confundirem: lembrança ð lembrar; habita ð habitante; terra ð terrear etc.

A atualização da significação nominal implica um conteúdo formal. A palavra “lembrança”, por exemplo, refere-se a um sentimento que vamos especificar aqui como sendo sentimento de saudade e, ainda, conota certos sentimentos a ele inerentes, como tristeza, alegria, amor, além de outros, como o valor e a raridade.

E a possibilidade de tal explicitação prova que o conteúdo formal realmente existe na estrutura nominal em que estão implícitos vários aspectos formais. São desse tipo vocábulos como humana, terra, estaca, estrada. Pois foi exatamente o que procuramos evidenciar, oferecendo como exemplo a palavra “lembrança”.

Neste ponto, cremos poder lembrar um princípio da linguagem estética, em função do que ficou exposto: quanto mais o conteúdo formal estiver implícito em palavra de significação nominal, maior será o seu valor expressivo. – p. 91 de Fenomenologia da Obra Literária de Maria Luiza Ramos - 3ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária - 1974.

Mais uma vez podemos extrair outro princípio da linguagem estética: ao poema não interessa, ou interessa de maneira subsidiária, a caracterização dos nomes, ou das expressões, desde que se lhes reconheça uma posição existencial.

Não que a realidade seja desprovida de importância, mas porque a arte não se confunde com o real. É sabido, a função primordial da arte é criar uma supra-realidade, numa objetualidade que, proveniente do objeto, dele se distingue pela natureza estética, de que, participam outros valores, muitos deles de ordem subjetiva.

 

“Parte disso é mistério”.

 

Uma das características universais da arte é o comportamento repetitivo. No que respeita à linguagem poética, a repetição é de partes inteiras – o refrão; de palavras iniciais, ou finais; de sílabas completas em efeito de rima, ou repetição de determinados fonemas idênticos ou afins, em casos de aliteração, assonância e consonância. Pois esse comportamento repetitivo se encontra no poema em pauta. Constitui uma das características do modo de falar do poeta. De bonito efeito, é quando palavra puxa palavra pela simples semelhança:

 

        “Mas baila com o fogo a gente

        A gente que é sombra e dança

        A gente que é nômade e sonho

        A gente que não sabe sono

        A gente que é sopro e vida

        A gente que é triste e samba.”

 

Muito expressivo é o exemplo indicado em que, dentre seis versos, usa o poeta seis vezes o nome “gente”, repetindo por seis vezes uma mesma palavra com grande funcionalidade rítmica.

A repetição da fricativa é aqui de grande efeito estilístico. O gosto pelas palavras repetidas se percebe em algumas outras construções redundantes, como:

 

O povo / Acolhe os dons da eleição. / Parte /

Em duas partes / O deserto / O mundo. Pisa /

Chãos inteiros... / Pisa / A flor. / Faz perfume. /

Alarga a tenda / A cada passo / E passa ...

 

CONTINUA...


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