segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 4)

          Ilha.  Do quinto bloco do poema.

O bloco Ilha do grande poema “Serpente Emplumada” opera um desdobramento do conteúdo significativo espacial do substantivo “Noite”, encabeçando todas as estrofes que compõem este bloco.

A palavra “Noite” é mencionada no início da estrofe, onze vezes, sem contabilizar as noites no interior das estrofes. É, portanto, um espaço muito significativo para o conteúdo programático do poema.

“Noite estrelada” – terceiro verso da primeira estrofe do bloco Ilha – é uma pintura de Vincent Van Gogh que se tornou uma noite maior a partir do seu quadro pintado em 1889, num asilo do sul da França. É uma obra pós-impressionista que estimulou (impressionou) os corações que viviam nos hospícios e/ou “coração humano”.

Todas as outras noites são um desdobramento com suas respectivas nuances e características. 

Ora a noite é igual como a de lá, a daqui e de “Agora”que corta a noite, parte a noite

“Em setecentas outras noites...”

Ora a noite é como o ladrão ou amante que rouba o meu dia (do eu-poético) sem avisar;

Ora a noite é um sentimento além de “Exílios provençais...”

Ora a noite ultrapassa a linha do Equador e atinge até o esplendor de uma noite em Xanadu (uma noite esplendorosa, magnífica, suntuosa).

E mais, ora a noite atinge o âmago da alma como uma noite em Tula (âmago, íntimo, alma).

Ora a noite é alta... alta... muito alta! É como se (de cima se pudesse ver tudo que há no mundo até mesmo “as esperanças / Acesas. // Ainda mais alta...”

A repetição do nome “Noite” vinte seis vezes comprova que o discurso ao invés de se desenvolver linearmente, retorna sempre ao mesmo ponto.

Na perspectiva lógica, ou a repetição esclarece a mensagem ou é redundante, mas neste caso, acrescentando uma nova informação.

O discurso prossegue, recua e se obscurece, resultando imprevisível, original e ambíguo.

Ao analisarmos este fragmento, denominado “Noite” do grande poema “Serpente Emplumada”, poríamos em relevo a preocupação com o “sentimento do mundo” que o habita. O eu-poético descreve, com olhos de lince, o subjetivismo da cena, com todos os seus momentos, em que, a par da liricização do seu estilo, obedece a um ritmo complexo, que depende ao mesmo tempo de agrupamentos lógicos, de grupos tônicos, do numerismo silábico, de vários efeitos fônicos e rítmicos. – p 133.

Verifiquemos:

1)   Agrupamento lógico – “Cruzeiro do Sul a luzir / Gigante de braços para o amplexo abertos”.

Há no poema muitos outros agrupamentos lógicos.                 

2)   Grupos tônicos – “Dos pobres e mendigos / Dos moradores de rua / Das crianças pedintes / Em todos os semáforos do mundo”.

3)   Do numerismo silábico – “Em face da violência / Em face da impunidade”. “Em face de um céu tão grande”.

4)   Vários efeitos tônicos e rítmicos – “Da corrupção do meu país / De políticos / De milhares / De cristão indiferentes”.

...............................

...............................

“Indiferente ou

Talvez – quem sabe –

De algum misterioso modo

A redimir o mundo

A redimir-nos da loucura

Dos hospitais e hospícios

Das favelas

Das intermináveis filas do SUS

Da miséria”...


O eu-poético pintou um quadro, não como quadro estrelado pintado por Van Gogh. Este pontilhado de brilho intenso como o das estrelas; aquele também pontilhado de uma realidade de aspectos e nuances (momentos e espaços) que se des-realizaram, transformando-se num real poético.

Se a poesia é a linguagem do sentimento, conforme o que preconiza Croce, que acolheu a postulação aristotélica e repudiava a distinção formal, poder-se-ia confirmar que este bloco é a percepção do “sentimento do mundo”, não como meramente emoção, mas percepção de emoções, impressões e sensações (sentimentos). – p. 121.

A poesia deve dar-nos a impressão (ainda que sua impressão possa ser enganosa) de que, através de meras palavras, nos comunica um conhecimento de índole muito especial: o conhecimento de um conteúdo psíquico tal como é na vida real. Ou seja, de um conteúdo psíquico que, na vida real se oferece como algo individual, como um todo particular, síntese intuitiva, única da conceptual – sensorial – afetiva. Cf. Carlos Bousoño, Op. cit. vol. I pp. 19-20.

O poeta comunica ao leitor o seu conhecimento das coisas.

O que afeta a essência do poético não é, pelo visto, que haja comunicação, mas que pareça que haja, que se nos produza a ilusão de que haja. – p.122

Neste bloco, o poeta procurou com efeito, comunicar de verdade a alguém, por meio de simples palavras, um conteúdo anímico e imaginário, mas real, muito real; parece-me até que estamos diante deste quadro (o mundo com todas as suas especificações) para se evidenciar o que, na realidade acontece.

À guisa de comprovação, vejamos:

 

.....................................................

“Dos meninos e meninas

Abusados na infância

Da fome

Em minha nação de ricos

Da dor de existir pequeno

Em face de um céu tão grande

E surdo”

 

Se a ilusão de haver-se dado comunicação entre o poeta e o leitor é persistente, o problema continua de pé. A partir de então, verifica-se que outras perplexidades se erguem à nossa frente.

O eu poético faz uma pergunta:

 

“É carnaval?”

 

Não se sente uma resposta plausível, mas por tudo que acontece e vejo neste poema, é lícito inferir que sim. Um carnaval, sim, mas do real estético. 

Porém, nas entrelinhas pressente-se muito sutilmente um significado que se pode atribuir ao termo “Carnaval”. Diante do que se esboçou anteriormente, poder-se-ia dizer, metamorfoseando-se em: isto é um carnaval!!!

São conjecturas, que não sei se verdadeiras, exatas, reais e se caberiam neste contexto.

Num autêntico jogo de espelhos, o eu do poeta contempla-se num texto que, apesar de edificado com a sua matéria orgânica, parece fruto de um demiurgo, cuja exclusiva missão fosse revelar o “eu do poeta” a si próprio.

Portanto, o “eu do poeta” se confessa por meio do “eu lírico”, cuja natureza vale à pena examinar de perto:

 

    “Quando desceu a noite / Cobrindo os mundos / Para além de nossa terra e mar antigo” (grifos nossos)

 

Ainda mais verossímil, pode-se constatar:

 

(“A noite mais linda

É a que se pode ver

Em plenilúnios

Da lagoa da Pampulha).”

 

A obra da recriação (o poema) estaria para a obra da criação (o mundo) assim como o poeta estaria para o demiurgo (poeta) ou o criador do Universo (Deus). – p. 106  A Criação Literária – Poesia de Massaud Moisés.

Quando lemos “Serpente Emplumada” pela primeira vez, confrontamo-nos com um acúmulo de imagens e precisamos lê-lo, muitas vezes, a fim de encontrarmos elementos que, pela sua constância, possam nos indicar uma categoria de leitura.

 

CONTINUA...


Nenhum comentário:

Postar um comentário