sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 2)

    Como introdução ao segundo bloco poético do grande poema “Serpente Emplumada”, o poeta em análise trabalha a frase (o verso) como quem quer dar voz e tom justos a uma experiência em contraste com a convenção dominante. Ele reatualizou a sintaxe oral e deu um novo travo de sinceridade pungente ou irônico. Quer mais comovente e estranho do que:

“Quem decifrará o grão poema? / Grão de areia / Das praias do mar... / Poeira de aquáticas estrelas... / Gota de orvalho transportada / Da rosa / À imensidão do oceano”

“Pacífico”

Esta estrofe constitui-se num “estranhamento” conforme os formalistas russos.

A quase falta de pontuação ou simplesmente as reticências e a interrogação imprimem, na estrofe, um ritmo próprio que vai de encontro com a sintaxe tradicional. Daí porque a reatualização da sintaxe oral.

Poder-se-ia comparar o poema, este poema denso, profundo, com uma imaginação indizível, com o “grão poema? / Grão de areia (...) / Gota de orvalho transportada / Da rosa / À imensidão do oceano // Pacífico”.

Estes versos são formas poéticas corporificadas com suas qualidades visíveis que se transformaram em ações (objetos próprios da poesia).

Em suma, interessa-nos conhecer o poético realizado no texto, o poético entendido como o signo ou categoria que designa uma experiência ou aquilo que aparece à consciência – ou um modo de ser da inteligência e sensibilidade (de um criador de arte: o poeta), como se encontra materializado nas páginas escritas.

Do final do primeiro bloco – “Ofídia Verdade” – para o segundo bloco, há uma introdução para dar início ao segundo, com uma pergunta. Quem? Em suspense. À cata de uma resposta. Quem teria a ousadia de respondê-la?

Com o verso “Terra”, tem início o segundo bloco do poema. Antes, porém há uma definição de terra: décima segunda estrofe:

 

“Terra / Pupila azul / Que gira, gira... /

.......................... /........................../..........................

“Gira”.

 

Nas décima segunda, décima terceira e décima quarta estabelece-se um paralelo entre a Terra e seus movimentos: rotação e translação.

Tudo gira – “Como girassóis do dia” / Gira

................................/.................................

“Como girassóis da noite”

.....................................................

“Como em verso lusitano / Este outrora dito comboio de cordas / Que se chama coração”.

 

O poeta faz menção aos dois últimos versos do poema Autopsicografia de Fernando Pessoa. “O coração é descrito como um comboio (trem) de cordas, que gira e que tem a função de distrair ou divertir a razão: “E assim nas calhas das cordas / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de cordas / Que se chama coração”. (Fernando Pessoa)

Coração – o centro de toda emoção, o ventre do intelecto e da razão, que define o entendimento e a percepção.

E finalmente continua o girar como os movimentos da Terra: rotação e translação já citados anteriormente.

Gira

 

“Como os ponteiros de um relógio” /......................

“Como o pião da infância” /................................

“Como um carrossel de sonhos” /.........................

“Gira”

“Como o gargalo da sábia coruja”.

 

Seguindo o curso normal da leitura do poema “Serpente Emplumada” do livro Girassóis Noturnos, ainda no segundo bloco, privilegiando o conceito de ritmo que afirma que o ritmo é produzido pela repetição de um mesmo elemento sonoro (acento tônico, consoante, vogal, sílaba, etc.) a intervalos regulares, ou ainda o conceito básico de ritmo que é o movimento de um objeto no curso do tempo, eu diria que o bloco poético em pauta é rico em sugestões rítmicas. Não só pela repetição das palavras “gira, gira”... sete vezes e Giram... duas vezes – elo entre as estrofes do 2º bloco, mas também pela repetição da palavra: “Como” – sete vezes.

Não há apenas o parentesco sonoro, mas ainda o da construção:

1)  Sintaticamente: a pontuação (quase inexistente), um ponto final no fim do bloco, cuja leitura se faz de uma só vez, num só fôlego, produzindo um canto sonoro ritmado.

2) Semanticamente: a comparação (o “como”) aproxima as estrofes, estabelecendo a relação do movimento da terra com os objetos e as ações do poema, exemplificando: a terra gira / gira / Como as crianças quando brincam. Gira como girassóis do dia....... Como girassóis da noite.

Além das massas sonoras em que se constitui cada poema, o ritmo se caracteriza por ser um verso emotivo e semântico autônomo. Veja, por exemplo, a última estrofe do segundo bloco; em que a fusão entre a emotividade, a musicalidade e a carga semântica particulariza os versos desta última estrofe. É tão perfeito o gira gira do gargalo da sábia coruja – “este alado ser” – que se pode inferir.

De onde a ilação de que o ritmo poético consiste na sucessão de unidades melódico-emotivo-semânticas, movendo-se na linha do tempo, numa continuidade que gera a expectativa na sensibilidade e na inteligência do leitor.

A descrição deste alado ser (coruja) é algo de fantástico e surpreendente porque perfeita, gerando a dita expectativa no leitor já anunciada. Só quem já conseguiu visualizar e acompanhar noturnamente a coruja pode confirmar tais características do bicho.


CONTINUA...

                                                                                             

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