domingo, 10 de março de 2024

AMIGOS - Myriam Coeli


Os meus amigos que têm mais de 30 anos,

têm menos de trinta dinheiros.

Os que têm menos de 30 anos

não chegam a ter três dinheiros.

Eles enfrentam a poluição, a dor,

a fome e a esperança.

Navegam em ônibus, os braços

erguidos, apoiados em argolas

– pássaros que ensaiam o voo

que os levará à rotina onde manipulam

máquina, enchem papéis com letras e carimbos.

Meus amigos sabem que a vida não é fácil

embora se enjaulem em salas calafetadas

onde o ar se condensa.

Eles enfrentam todos os dias

o gigante do progresso para que

as suas famílias se alimentem,

se vistam, sorriam e falem em civismo.

Mas meus amigos são livres.

Não lhes prendem o ouro e a cobiça de todos os poderes.

Eles são ricos em seus mundos subjetivos.

E eu me visto de silêncio para escutá-los.

São os momentos mais puros de poesia

quando as suas verdades explodem como rosas

ou estrelas no céu.

Daqui saúdo os meus amigos

que não tendo trinta dinheiros

jamais me venderiam como se fossem Judas.

E mais aos que, tendo três dinheiros,

seus talentos sendo pobres de espírito,

alcançarão o reino dos céus.


Ave, Myriam (1984)


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

MYRIAM COELI


 
Myriam Coeli (1926-1982)


CANTO DE ESPERA PARA O PRIMOGÊNITO


Artífice, a mãe se completa moldando o filho de sua argila

– em seu invento ela se multiplica, ousada, para outro espaço. 

A suavidade de seu ventre improvisa ninho de rouxinóis 

de inesperados trinos e notas musicais

para o filho – pássaro cego – navegar nos corredores de sangue.

Com impossíveis cristais inventa canções e embalos

e torna alegre o pesado silêncio de suas entranhas.


Onde a semente germina e a seiva cresce, lentamente com a voz

– um lírio, talvez, uma espiga de dourado trigo, desabrochará.


CANTO DE ESPERA PARA O SEGUNDO FILHO


O filho cresce de antiga semente

e se agita em meu ser com libações de pássaro.

A argila que o inventa torna-o semelhante e lúcido dentro do tempo

que o completa e o reclama, integral e ousado.


O Sangue, o Gesto, a Palavra, a Humana Contingência

e essa argamassa de Poesia – minha herança –

espreitam de seus mistérios e se integram à ousada forma.


Bem-aventurada em meu afã de criar

eu me engrandeço de humildade de não merecer a Dádiva

e glorifico e exulto o Homem que há de vir.    

__________________

COELI, Myriam. “Branco & Nanquim: Obra Poética”, org.: Cristiana Coeli Goldie & Elí de Araujo. Natal: Sol Negro Edições, 2018.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

MURO

  

o coração do mundo é um muro enorme

 

a palavra bate

 

e

 

se

 

e s f a c e l a

 

– coroa-de-monge

ao vento –

 

inútil, inútil,

passageira...

 

quebra-se no rochedo

a água

imóveis

 

quebram

-se

 

falésias

 

heras imaginárias

 

tolerância

direito

 

onde?

 

magnanimidade

brios

 

último raio

última flor

último pássaro

 

pausas

humanitárias

 

não vêm

 

diplomacia


falha

 

brilho

brilho no céu

 

um brilho

 

 

brilho

 

não de estrelas

 

brilho

 

cavalo de vento

 

mísseis a embalar

o sono de crianças

palestinas

 

Antonio Fabiano 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

NO MEIO DO CAMINHO

Fotografia de Antonio Fabiano

 "Todas as descrições da realidade são expressões limitadas do mundo do vazio."  (Shunryu Suzuki)