quarta-feira, 31 de julho de 2019

FANTASIA


Ele tinha o costume de caminhar dando muitas voltas ao redor do campo de futebol. Naquela tarde, o sol se afundava no horizonte mal traçado da cidade, como água que escorre pelo ralo. Era um pôr de sol mole, mole: nem quente, nem frio. Se uma mulher desmaiasse em seus braços, nos braços dele, do homem da primeira linha do conto, seria a representação perfeita desse pôr do sol. Havia ali uma agonia inconsciente de si, avermelhada, sem nenhum pudor ou segunda intenção. Agonia, sim, porque em tela tão sanguínea até gozar é agônico! Enrubescido estava o mundo, como uma donzela velha que acaba de receber um (como se dizia antigamente?) galanteio.
Caminhava em sentido anti-horário, o homem. Uma volta, duas voltas, três voltas... até perder a conta. Fazia isso todos os dias. Nada teria acontecido de extraordinário, se nada tivesse acontecido, como aconteceu. De repente uma moça apareceu, como as coisas bonitas que aparecem do nada, e em sentido horário caminhava...
Ao que tudo indica, ele deu conta disso bem depois do que normalmente exigiria uma beleza extrema, dessas que têm sempre o poder de atrair os olhos para si, fazendo-se notar quase indiscretamente, dando a entender quão inútil é disfarçar que não se quer ver o que se quer ver.
Os ponteiros do relógio estavam em direção e tempo opostos. Como explicar isso? Ele estava em boa forma, mas tinha sessenta e tantos anos de idade. Era casado, tinha filhos, amava sua mulher.
Ela tinha 19 ou pouco mais. Era de fato linda como uma manhã de Natal, em que as crianças ganham presentes e ficam felizes, sem qualquer outra preocupação. (Já pensaste, que lindo seria não ter outra preocupação senão estar feliz?) Abria-se a boca da noite.
Estavam em lados opostos do campo, entre concluir ou dar mais uma volta... nunca se sabe. Mais à frente estava o portão de saída. E se ela resolver ir embora? E se for sua última volta?
Ele apressou o passo. Queria vê-la de perto, ao menos uma vez. Mas foi como se o campo se alargasse e se tornasse eterno. Infinito. Coisas assim acontecem quando temos pressa ou sonhamos. Em alguns sonhos a gente nunca acaba de chegar... Ou quer acordar e não consegue... Ou não quer acordar e acorda.
Pois o campo não acabava nunca. A fantasia se avultou e quase lhe cegou os olhos. O coração pulsava adolescente! Por um instante tudo se tornara relativo. Era uma corda esticada.
Ela passou por ele, como um cometa ou meteoro. Ele terminou a última volta, com um sorriso maduro no canto da boca.
Voltou para casa e amou sua mulher.

Antonio Fabiano

sexta-feira, 31 de maio de 2019

MARIA, MÃE DA POESIA (COLETÂNEA DE 100 POEMAS EM HOMENAGEM A NOSSA SENHORA)

Capa: Robson Andrade

SENHORA DA MANHÃ

Agora, lábios meus, digam sem medos
Prece à Virgem Maria da Manhã.
Cale da seca a boca vil, pagã,
Que dessa sorte partem-se os rochedos!

Senhora das juremas, dos facheiros,
Do xiquexique rude, oiticicas;
Ó tu, Mãe, que a terra plenificas,
Vela por minha gente de ceifeiros!

Senhora da Manhã, Virgem da Serra,
Que sobe ao céu, formosa como hera,
Por tua prece o dia novo vem!

Mãe da Ventura, Mãe da agreste esfera!
Matrona! Mãe de Deus e desta terra!
Bendita sejas, para sempre! Amém.

Antonio Fabiano

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BIBLIOGRAFIA:
"Maria, Mãe da Poesia - Coletânea de 100 poemas em homenagem a Nossa Senhora", p. 111. 
Realização: Instituto Horácio Dídimo - arte, cultura e espiritualidade. Org.: Luciano Dídimo. 
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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

LAMPEDUSA


os corpos um a um
são postos lado a lado...

vão.

são restos de sonhos
réstias de luz.

– a esperança não se afogou?

no chão da estrada
(embora alto mar)
caminho onde outrora
um barco passou
jaz morto o que vinha
em busca de um lar.

e seu coração
de outrora bater
já fora do peito
vai longe
do porto
sonhado e desfeito
em sais e silêncios
de nunca chegar


ANTONIO FABIANO

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Publicado pela primeira vez este ano, na ANTOLOGIA LITERÁRIA CARMELITANA da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares. Edição comemorativa do primeiro centenário da OCDS no Brasil (1918-2018). ORGANIZADOR: Carlos Vargas, OCDS.
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Lampedusa é uma ilha italiana do arquipélago das Ilhas Pelágias, no Mar Mediterrâneo. Sua população dedica-se basicamente à agricultura e à pesca. Com frequência, a ilha tem sido local de desembarque de imigrantes clandestinos, provenientes do norte da África e regiões de conflito, alimentados pelo sonho de uma vida melhor na Europa. Este fenômeno tornou-se ainda mais acentuado nos últimos tempos, de modo que a ilha passou a ser foco de uma crise humanitária. Muitos imigrantes, porém, sequer conseguem chegar à ilha de Lampedusa. Por causa das condições precárias das embarcações clandestinas, milhares de pessoas morrem náufragas no caminho.