domingo, 22 de junho de 2025

DO INESGOTÁVEL


Daniel Faria



Observei-te sabendo já que eras um homem – a cabeça

De pelicano dobrado

O bico que te rasgava para fora

 

Adoeci como lâmpada que se funde

A coroa de espinhos sobre mim – a lembrança

 

Dobrei-me nas tuas asas

Nas chagas ainda quentes

 

No voo como gota de sangue no peito

Que vive. No coração

 

Que partes e distribuis com as mãos

 

 

*

 

 

Todas as minhas fontes vêm de ti

As nascentes

E amo-te com a constância do moribundo que respira

Já sem saber de que lado o visita a morte

 

Procuro a ligação entre ti e a luz muito 

                    [miudinha depois dos temporais

Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas

Desconheço o colar onde unes tudo

 

Procuro entender como é que moldas

Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão

Sei que és tu que me levantas

Que remendas o meu corpo cada dia

 

Em ti encontro a pulsação

Que rebenta – uma artéria como nunca

Tinha jorrado. Cratera onde durmo

Recluso, árvore à chuva

Em dificuldade extrema

De respiração

 

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço 

                                [os braços para fora

Como um pássaro entre um bando

De disparos

 

Tu moves as agulhas, tu unes de novo

As minhas asas à curva do céu

 

 

*

 

 

E desço à verdura das tuas mãos

Como as manadas que buscam as minas

 

Faltam-me apenas os pés feridos dos que

[peregrinam

Faltam-me no chão duro das promessas

Os joelhos

 

Queria tanto andar em redor, rodear-te,

                            [se soubesses como

Queria amar-te tanto

 

O que sei da unidade é a túnica

Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida

É o livro escrito por dentro e por fora

Silêncio escrito por dentro

Palavra escrita a toda a volta da história

 

O que sei do céu

É a mão com que sossegas os ventos

 

Desço à escritura como os veados aos salmos

 

 

FARIA, Daniel – POESIA – Edição Vera Vouga. Publicado em Portugal por Assírio & Alvim. Porto Editora, Ltda. 1ª edição: maio de 2012.