segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A VELHINHA E O TEMPORAL


Imagem capturada de “Rapsódia em Agosto”, um filme de Akira Kurosawa.

Estimados leitores, gastei muitos dias da semana passada tentando descrever a sequência final de “Rapsódia em Agosto” (1991), um dos últimos filmes de Akira Kurosawa (1910-1998). Este grande diretor japonês é um dos meus favoritos no singularíssimo mundo do cinema oriental. E a descrição da sequência final de seu filme, a meu ver, daria uma bela crônica. Porém...
O filme a que me refiro, eu o vi algumas vezes. Mas o final... (peço desculpas pelo mau exemplo!), precisamente o seu final... eu vi cerca de trezentas a quatrocentas vezes. Não exagero!
Estive pensando muito nisso, porque aquela cena é uma das mais admiráveis que a sétima arte já concebeu, ao menos segundo o meu parecer. Sim, eu tenho uma coleção de “melhores cenas” na cabeça, às vezes repasso tudo, e esta é uma delas...
“Rapsódia em Agosto” não é, em minha opinião, o melhor filme de Kurosawa; mas foi, sem dúvida, o mais comercial (isto nem sempre é bom para a reputação de um diretor de filmes de arte), tendo inclusive em seu elenco o ator Richard Gere; e foi também uma das obras mais comoventes de toda a sua filmografia.
O filme rememora o trauma do ataque nuclear norte-americano às cidades de Nagasaki e Hiroshima, em agosto de 1945, mais de quarenta anos depois do acontecido. Aborda, além do trauma (revivido sobremaneira por uma idosa chamada Kane), a indiferença, a ignorância e as ambições mesquinhas da primeira e da segunda geração do Japão do pós-guerra. Em relação ao país outrora adversário (representado especialmente pelo parente nipo-americano), abre-se um caminho para o diálogo, a reconciliação, o perdão...
Mas nada disso importa em minha crônica! O que realmente importava era a porção que eu não soube descrever, porque não cabe em palavras: a tal sequência final. E, sendo assim, tudo não passa de pura indiscrição da minha parte, uma ousadia sem cabimento! Mas por que insisto em escrever? Escrevo porque não escrevo, ora! Escrever sobre não ser capaz de descrever algo, é mais nobre que acovardar-se e não tentar...
Na sequência a que me referi, em tons psicodramáticos, as personagens (re)vivem, simbolicamente, em meio a um majestático temporal, os acontecimentos do final da guerra. A senhora Kane, talvez a personagem mais lúcida da trama, que perdera o marido na explosão nuclear de 45, resolve ir buscá-lo na cidade, quase meio século depois (algo impossivelmente absurdo!), atravessando a tempestade e arrastando consigo as outras personagens que, inutilmente, tentam detê-la. Ninguém, nem os mais novos alcançam o passo da decidida “velhinha”. O que ali acontece – e eu não pude descrever – é coisa de cinema, não cabe em escrita alguma. Uma mulher octogenária e um guarda-chuva, o temporal imenso, o quase impossível “silêncio” introduzido pelo mestre Kurosawa na culminância do drama, mais aquela súbita música, meu Deus!, a (in)esperada música...
Queira, meu aplicado leitor, cinéfilo de carteirinha ou não, ver ou rever o filme – do começo ao fim, nunca seguindo meus maus exemplos de explorar uma única cena trezentas ou quatrocentas vezes! E rendamos graças a quem nos deu essa maravilha, a que podemos chamar de verdadeira obra de arte.
(Crônica ao amigo Guilherme Henrique Nakamoto)

Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 22 de novembro de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

4 comentários:

  1. Jaécia Bezerra de Brito22 de novembro de 2010 às 15:04

    Meu querido escritor,tenho certeza que os leitores ficarão tentados a se repetir como você; sua escrita é tentadora, sua indisciplina nos torna disciplinados. Ainda não vi o filme, mas me senti no temporal, seu e de Kurosawa; abraços

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  2. Eu também sou fascinada por essa cena!!

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  3. Realmente é uma daquelas cenas que vale a pena ver e rever, pois tem uma uma beleza dramática nisso tudo. Confesso que amei esse filme, sem contar outras cenas fantásticas.

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