terça-feira, 29 de setembro de 2020

Leitura crítica do poema “Serpente Emplumada” de Antonio Fabiano, por Elizabeth de Souza Araújo. (Parte 5)

Deixando-nos conduzir pela linguagem do poema, e ao mesmo tempo, deixando de lado noções, explicações, convenções, encontramos já no meio da análise uma parte que trata da criação, um sentido de abertura, de liberação que se confirma na totalidade do mesmo. Assim, neste bloco em análise, os versos

 

“Os filhos da grande mãe se ajuntaram

Para acender o fogo

E ascender graças”

 

indicam um movimento de mudança, de abertura para um novo grupo de imagens;

 

Assim, “Sete cavalos em pastos

               ... a pastar”

 

encarna o máximo de presença da linguagem no espaço mínimo da língua.

 

Referindo-se à “grande mãe”, quem seria esta grande mãe? Seria no meu sentir, no meu entender:

 

                “A Terra”.

 

A Terra com toda a sua exuberância: a flora, a fauna, os rios, os lagos, os oceanos, os mares, o céu, os astros, o vento...

Há, ainda, a presença de um movimento de transformação, de mudança de alguma coisa para alguma coisa:

“o tempo para. / A ... lua / Volta (...) / Atravessa cheia o orbe / Desce / Vai passear”         

......................................

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......................................

        “Depois / Sopra nos montes (...) // Ah! vem dos longes inavidos!... / Vem duma terra estranha! / Oigalê! // Sibila o vento... / A minha alma se levanta já cigana / e dança!” etc. etc.

Estes movimentos que indicam mudança de um estado a outro, ou abertura ou liberação (exemplos anteriores) já confirmam um caminho de compreensão do poema, para que, com muita atenção e força, se chegue ao final da leitura do poema.

Descobrimos, também, que há toda uma área de significação, de purificação da linguagem (grifo nosso).

Como se vê, o termo “inavidos”... é um neologismo e/ou, etimologicamente, uma palavra composta por derivação prefixal = prefixo “in” + ávido(?) (adjetivo) = ansioso, sôfrego, voraz, sedento, sequioso.

Levados ainda pela nossa imaginação, acabaríamos fazendo cogitações acerca da vida do autor, já que no poema lírico há sempre um eu que se expressa, advindo daí o subjetivismo atribuído a este tipo de composição. Nós confundiríamos facilmente o “eu” lírico com o “eu” autobiográfico. Por falta de experiência com a criação, nós esqueceríamos que o fato literário possui um universo fictício, onde os elementos da realidade concreta entram em tensão com o imaginário, para criar uma nova realidade, atrás da qual o autor desaparece.

        “Oigalê”... é uma expressão interjetiva de admiração, espanto, diante do que o poeta vê, visualiza no espaço da cena, pertinente a todo o poema.

A linguagem é o mais concentrado modo de ser da realidade. Na linguagem, o Real se mostra em si mesmo com plenitude de liberdade. (CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Fundamentos teóricos da poética; apontamentos de aula de um curso de igual nome na Faculdade de Letras da UFRJ, 2º semestre, 1971. Do livro Teoria Literária – Eduardo Portella e outros.)

E na paisagem do Real o homem ocupa um lugar privilegiado, porque no dizer de Heidegger: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias”. Nessa perspectiva “pensar a linguagem é pensar o homem”. Ela não é algo externo ao homem, é o lugar inevitável do acontecimento existencial ²² e

 

                     “existir plenamente é empreender

                      um movimento de liberdade. É o

                      que faz o poeta, é o que faz o homem.

                      O poeta o faz poeticamente,

                      assistido pela ação reveladora da linguagem”²³

 

[22. HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo Trad. Emmanuel Carneiro Leão. RJ, Tempo Brasileiro, 1967. p 21

23. Ibidem, p 78]

 

A dinâmica interior/exterior e toda a área de movimento se organizam, também, sintaticamente. A pontuação exerce função fundamental na marcação do ritmo. As reticências não indicam a interrupção abrupta e conclusiva da sequência frasal como ocorre com o sinal de ponto. São pausas cheias de sugestões que não indicam o fim, mas o prolongamento do sentido ou dos sentidos do verso.

        Os versos............. “Com cheiro verde de mato / E mistério... // Ah! vem dos longes inavidos!... ............ Oigalê!... // Sibila o vento”... citados possuem uma cadência de ir e de voltar que as reticências complementam. Estas, enquanto estabelecem uma pausa entre os dois tipos de movimento, nada concluem, antes dão continuidade ao movimento, mantendo o tempo do verso. A pausa das reticências não é propriamente uma parada, mas um alongamento, uma duração.

        No verso: “Ah! vem dos longes inavidos!...” não só o fonema /a/ de “inavidos” se perpetua fônica e semanticamente, o segmento posterior também é aguardado, “Vem duma terra estranha!”

Estas últimas reticências indicam a repetição do processo que não se conclui nunca. As reticências fazem o ritmo e o sentido ultrapassarem a linha do verso. Enquanto o primeiro segmento do verso é prolongado, o segundo é já sugerido, formando-se assim uma cadeia, tendo as reticências como ligação. Estas, ao mesmo tempo em que interrompem a frase ou o sintagma, também o projetam.

As reticências revelam que há ainda algo a ser dito. Os versos, exatamente, que irão se encadear com a estrofe seguinte:

        “Sibila o vento...” e “O vento varreu” são inexprimíveis, são um gesto de impotência, uma renúncia a algo que é excessivamente íntimo.

        Isso que nos surpreende, às vezes em Fabiano como por demais rebuscado, é o que constitui a essência do lírico.

Patrioticamente, o poeta assim se expressa:

        “O vento varreu ......... / Mais que o vento que beija / A bandeira nacional / Na Praça dos Três Poderes / Em Brasília / Mais que o vento da crítica / Literária do meu país... etc.

Eis aí uma lição de civilidade!


CONTINUA...


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