Gullar e Cláudia
Ahimsa (Rogério Reis/Instituto Moreira Salles)
Pequena
seleção de poemas de
“NOITE
SEM DORMIR: poemas timorenses” (2000).
São
versos de Cláudia Ahimsa,
amiga
tão dileta e alma irmã da minha, “musa do planeta Terra” nos dizeres
de seu apaixonado companheiro Ferreira Gullar.
O
referido livro – de uma tiragem de cem exemplares numerados e assinados pela
autora – possui um PREFÁCIO PARA SER LIDO (mas não é prefácio!): das coisas mais impressionantes que já li em poesia. A obra é dedicada aos
guerrilheiros das FALINTIL – vivos e mortos por Timor Leste. Cláudia Ahimsa,
amo.
[1º]
Para evitar
o amargo da casca
a lagarta
em ziguezague vai:
ponto
doce... ponto doce... depois volta
longínqua
e macia pela via da doçura
que para
si mesma traçou...
..........................................................
.....................pela
árvore a lagarta vai.
Árvore
planeta com tudo que ali habita.
Ampla nos hemisférios
de folha e fundo
espectral e sobretudo
de uma paz
territorial com que se sonha...
Cada flor
em suas próprias pétalas
cada copa
com raízes próprias
“cada
macaco no seu galho”.
Ah,
fantástico arquipélago... de tempestades invisíveis.
Estado celular
de substâncias coabitantes...
E mesmo em
seus limites –
uma gavinha
que noutro
galho se entrance.
E mesmo as
enxertias... e plantas que parasitam –
ajudam a
puxar água
ajudam a
respirar – coexistem.
Encosto a
testa no desenho da casca
no visco
luminoso deixado pela lagarta...
............................................e
não posso
desviar do
ponto amargo.
Amargo
essa mágoa de ilha
ligada ao
ladrão pelo mar...
Sem perder
o gosto e a luta
Pelo doce
dos caminhos –
Direito
que até lagarta tem.
Direito à doçura
Cláudia
Ahimsa
[3º]
O cão
procura e não acha.
O fogo
deixou sequelas no faro.
Sabia voltar
a casa...
E ao
dobrar a esquina rente ao muro...
Que casa?
qual nada!
Uma fumaça
aqui... outra fumaça ali...
Talvez
reconheça nisso
um eco de
voz que resiste.
Escutou na
sala do seu dono
nas ruas
do abandono
tantas
vezes as mesmas palavras:
pátria
ou
morte
Não sei
qual é a capacidade vocabular
de um
bichinho
assim
ferido em seu faro cidadão...
Mas ainda
mais triste que um cão sozinho
perambulando
pela cidade fantasma –
É esse
fumo que fica ali saindo
que fica
ali saindo...
dos
destroços de tudo que se amou.
Terra
queimada
Cláudia
Ahimsa
[6º]
Capaz de ver motivo
de fé
numa âncora:
vigio a navisfera
sob aquele céu
obscuro
dos primitivos.
Os tótens?
Excessivamente pintalgados de sangue:
A caixa dos socorros.
Os mapas das fronteiras com o inferno.
Ah, culto faraônico contra a morte...
Ah, meu nome de paz escrito num tanque
como o de Maiakovski.
Vão, missionários! cingidos
de fuzil e capacete –
vão, que é tarde!
Ó vida marinha! monstros teus –
octopus, cachalotes – Pacífico
ajuda a empurrar
pressiona o casco
arrasta a minha prece
não como fita e flor
das leves oferendas
que vão de barquinho
entre as espumas...
Toda a minha fé agora
é uma fragata e mais outra –
o destróier.
Tropas de paz
Cláudia Ahimsa
[7º]
Dorme-não-dorme a cidade marítima.
Serão morcegos?
Atonalidades da noite...
Ou são filhotes das arraias?
Angústias insones...
Ou será fragrância?
Música do sândalo
das tuas montanhas –
o que ouço
desse muro de jasmim...
Confusão!
Sei apenas que a brisa
é noctâmbula também.
E sopra números
nos meus ouvidos...
Do zero às estrelas
que contavas
em lugar delas
344 mil e 580 pontos
para a Independência.
Ouço...
Contas-me
para os sonhos...
Tua história de bravos
teu regresso a ti...
Enfim... a boa notícia.
Mais que política – espiritual.
Basta uma noite sem dormir
para merecer uma alegria diurna.
E o mar não para
de revirar suas conchas
e acordar perigos.
Basta uma noite no mar
para entender
o que é desterro.
Domicílio da noite
Cláudia Ahimsa
[8º]
Talvez...
eu pudesse puxar o lençol
até o
supercílio
até a
aurora...
Encontrar
entre silêncios – um
em que se
possa adormecer.
Deixar que
se desfaça ao longe
a imagem
e Vênus no
céu – de fora.
Mas o que
há do rosto longínquo
no meu
não se
encobre com lençol.
Do leste
da ilha
detrás do
mato
me olha
por olhos
vermelhos.
Lágrimas
de sangue
virão comer
os pássaros
se durmo
de janela aberta.
Se apago a
lâmpada
o escuro
esconderá
cavas
olheiras
junto a
buracos no universo.
Amanhã...
não choro.
Regresso
Cláudia
Ahimsa
[10º]
O rosto
desfigurado
não será
esquecido.
Demora...
não importa.
Faremos as
cabeças extirpadas
uma a uma
célula e
célula
neurônio a
neurônio –
Todos de
volta!
As
mulheres violadas
serão de
novo amadas.
Faremos
amor e filhos.
Faremos os
braços
as pernas
arrancadas
par a par
outra vez.
Carne nova
para os lábios!
E a face
do nosso povo
continuará
a sorrir
sobre a Terra.
Avante!
pois.
Cláudia
Ahimsa
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O direito exclusivo de todos os poemas é reservado a Cláudia Ahimsa.
“Cláudia
Ahimsa é uma poetisa que poderia ser timorense porque nela vive a alma e
palpita o coração timorenses, o espírito forte de liberdade e independência,
mas também de muita sensibilidade e generosidade.
Li
os poemas. Mas que coisa mais linda.”
José Ramos - Horta
Nobel da Paz
“Gosto
dos seus poemas,
todos
feitos de amor, sonho
e
fantasia. Dos protestos
que
surgem, que a miséria e
a
opressão tanto justificam.
Todos
a revelar uma
generosidade
admirável.”
Oscar Niemeyer