Como se não bastasse,
outros aspectos enigmáticos favorecem o poema. O primeiro deles diz respeito a “Uma nuvenzinha / Apareceu no céu / Sobre o
mar. / Escureceu. / Ouviu-se grande estrondo / Luz / E ventos”.
São indícios de uma
grande tempestade.
Trata-se da história do
profeta Elias e o rei Acabe.
Depois de ir e vir, o
encontro acirrou-se entre os dois. Após tudo isto, Elias disse a Acabe: sobe,
corre, etc.
Esta história se
encontra em Primeiro Reis, cap. 18 (Bíblia Sagrada).
Por analogia, pode-se
estabelecer uma ligação deste fenômeno poético com a história de Elias e o rei
Acabe. Elias apresentou-se a Acabe e a palavra do Senhor veio a ele dizendo:
Vai e mostra-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra. Elias, prontamente,
obedeceu, quando de repente, cai a chuva.
O espaço da cena do
poema estabelece uma relação com a história acima mencionada. Vejamos:
“A
chuva caiu
Indizível.
A
chuva
Caiu.
A
chuva.
A...
Chove.”
................................
................................
................................
O bloco poemático
continua até os versos: “E ainda chove /
Chove”.
Este bloco está
inscrito num espaço, que constrói o traço peculiar de um poema concreto.
Poesia concreta:
produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo
histórico do verso (unidade ritmo-formal), a poesia concreta começa por tomar
conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado:
estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear.
Daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe
espacial ou visual, até o seu sentido específico, realismo total, contra uma poesia
de expressão subjetiva e hedonística. – p. 270-271 - Didática da Literatura
- José Maria de Souza Dantas.
Observe a forma que o
poema assume: o cair de uma chuva, de mais intensa para menos intensa,
terminando, visualmente falando, como uma estrutura espácio-temporal, qualificado.
É tão perfeita a comparação do espaço que nos dá a ideia de um ideograma: a
chuva se despencando do céu, como uma cascata de luz e som.
“Na
montanha / Chove / Quedas d’água / Chove / Sibila aquática a água / E ainda
chove / Chove”. (grifo nosso).
Este poema “Serpente
Emplumada” é tão complexo, profundo, completo que o poeta explorou nada mais
nada menos que Literatura, Teoria da Literatura, Poesia em toda a sua extensão,
além de Língua Portuguesa, Língua Asteca (explicação do título do poema), e outras,
Teologia, Filosofia e Poesia Concreta. É demais para o meu pouco conhecimento.
Cada poema, pelo tom
confessional, pela experiência do que se reveste, pela emoção que o anima, é
como se fora uma parte do próprio poeta a se desprender e a se projetar, a se
difundir e a perpetuar o seu criador. É o que aconteceu com o poeta Fabiano. Fenomenologia
da Obra Literária. – p.209.
Como consequência dessa
“nuvenzinha” que derramou chuva, tem-se outro bloco, dando continuidade a mesma
temática.
É um bloco rico de
imagens como a chuva que desce do céu, “Escorre
a sabedoria / Caudalosa”. É preciso sabedoria para compreender o mundo com
tudo que há nele, mas principalmente entender os desígnios de Deus.
Como resultado da chuva
caída tem-se: “O serpear dos rios / Por
entre encostas / A timidez (obscuridade) / Dos barrancos”. Olhe só o
paralelo entre “O olhar miúdo / Das miúdas fontes”, é uma figura de
construção: Anadiplose – é o emprego da mesma palavra ou expressão no
final de uma frase ou verso e no início da seguinte ou do seguinte, por exemplo:
“Daquele céu de safira / Que se mira, / Que se mira nos cristais!” (Casimiro de
Abreu).
A seguir outra imagem
muito sugestiva:
“Aquele
arisco emaranhado
De
torrentes
Diluvianas
poças
De
ilusão”.
Quando a chuva cai no
chão, mistura-se tudo: barro, mato e água, por isso “emaranhado / De torrentes / Diluvianas poças”, mas “De ilusão”. As poças não são d’água são
sim de ilusão. A cena aqui descrita focaliza o ambiente interno onde se
encontra o sujeito do enunciado, figura central sobre a qual incide o foco
descritivo. Sim, porque a ilusão é um sentimento que recai sobre o sujeito da
enunciação e/ou do sujeito do enunciado.
O poeta abandona o
casulo do lirismo egotista e entrega-se à contemplação do espaço cósmico e à
respiração de amplos temas:
“Chove
/ E tudo chora / De gratidão / De gratidão e medo / De alegria e medo / De
alegria / Por haver água / E ser de água marejada / A esfera azul / Que chora”.
É digno de nota a
gratidão. Gratidão pela água marejada = (leve agitação das ondas do
mar).
O espaço da cena que,
afinal é o espaço do discurso, é articulado por uma coreografia feita de:
“O
silêncio / De quando Deus refez o mundo / Pelas águas / Atravessou a epopeia. /
E no bater de asas / De uma pomba / (Como num piscar de olhos...) / Calou
todas as mágoas / Levou tudo / Lavou tudo... // Tudo.”
Este incidente revela o
dilúvio. Percebe-se e confirma-se pelo espaço, claramente delineado pela figura
da pomba.
Mas vejamos ainda
outros aspectos de interesse nesse final em que a palavra assume importância
cada vez maior, como:
“Cada poema se
caracteriza por ser um universo emotivo e semântico autônomo, a fusão entre a
emotividade, a musicalidade e a carga semântica particulariza cada texto
poético” (p.219) na medida em que o poeta vai esgotando o seu tema. Observe a
emotividade, a musicalidade e a carga semântica dos versos a seguir:
“Ouviu-se
por último / O ruído de uma leve brisa / (– leve... leve...) / E
no tênue sussurro / O perguntar: / Que aqui fazes?”
(grifos nossos)
E a resposta vem logo
em seguida:
“Ardo”.
A problemática da existência
parece presidir, portanto, à estrutura desse poema de Fabiano, que nos faz
considerar por um momento o mistério da vida e de sua peculiar forma de
eternidade. (p.213) É só conferir os versos:
“E
da argila do poema / Haverá novo homem... / Sobre os ossos ressequidos / Do
poema / Nova carne / E vida”.
Mais uma imagem se nos
revela, num paralelo estabelecido, quando da criação do homem e do mundo: Deus
foi quem criou o primeiro homem com um sopro, numa porção de barro.
Se há nele (o poeta)
alguma abertura para o mundo exterior, essa se concentra para o seu mundo
interior na reflexão do seu Eu-poético, para o próprio Deus:
“Depois
disso o Senhor / Por quem meu ardente zelo / Arde e zela / Soprará / E da
argila do poema / Haverá novo homem...”
Surge então esse novo
homem dos “ossos ressequidos / Do poema /
Nova carne / E vida”.
O poeta se identifica
com o próprio poema. Ele está sofrido porque debruçou-se “Sobre os ossos ressequidos / Do poema”... porém, “Nova carne / E
vida” ressurgiu.
Depois disto tudo está
consumado, porque “Deus não pedirá mais /
Isaac em sacrifício / Nem sacrifício algum”.
Enfim:
“Descansaremos
Eu
e Deus
Deus
que viu que tudo era bom”.
Note-se que a tendência
para intelectualizar o tema da Criação, conforme revelam os derradeiros versos,
respeitou os acidentes formais que fazem deste poema uma epopeia. – p.285 -
Massaud Moisés - A Criação Literária - Poesia.
Para o leitor, este
poema é um momento absoluto de poesia, embora para o artista ele represente a angústia
da criação.
Todo esse enigma que
agora se clarifica é a Poesia como chave e caminho, como mapa e código. O
código que afinal se resolve por um detalhe mínimo, e tudo se liberta, tudo se
ilumina, tudo é epifania. A epifania que se concretizou com o confronto entre o
deus mitológico da criação – “A
deidade... Ofídia verdade” ó que
equivale ao deus serpente emplumada, o deus da criação dos astecas que
acreditavam no sol de Quetzalcoatl e o Deus da Criação (tradição judaico-cristã),
“que viu que tudo era bom”.
Com essa epifania
completa-se o ciclo em torno de si mesmo. O eu se reintegra depois de ter se
apartado na procura de si mesmo através do tempo. A travessia do tempo pela
poesia. Onde não havia Nada, senão aparência. Agora existe uma obra, um Ser,
uma consciência. O poeta poematizou o tempo e a si mesmo; salvou-se da
destruição e erigiu uma fundação porque “a poesia é a fundação do ser pela
palavra” – Affonso Romano de Sant’Anna – Carlos Drummond de Andrade: Análise
da Obra – 2ª edição. Editora Documentário – Rio de Janeiro.
Natal,
22 de julho de 2020.
Elizabeth de Souza Araújo
________________________
RELAÇÃO DE LIVROS UTILIZADOS NESTA LEITURA
BOSI,
Alfredo. O ser e o tempo da poesia. Editora da Universidade de São
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DANTAS,
José Maria de Souza. Didática da Literatura. Ed. Forense Universitária,
1982.
DELAS,
Daniel e FILLIOLET, Jacques. Linguística e Poética. Editora da Universidade
de São Paulo. Editora Cultrix Ltda.
DUBOIS,
Jacques. Retórica da Poesia. Editora da Universidade de São Paulo.
Editora Cultrix.
EIKHENBAUM
et alii. Teoria da Literatura. Formalistas Russos – Tradução de
Ana Mariza Ribeiro Filipouski, e outros. Editora Globo.
TAVARES,
Hênio. Teoria Literária. Editora Itatiaia Ltda. Belo Horizonte – Brasil.
____________
Técnica de Leitura e Redação. Coleção Didática Moderna 23. Livraria
Cultura Brasileira Ltda. Belo Horizonte.
MOISÉS,
Massaud. A Criação Literária-Poesia. 10ª edição rev. – São Paulo: Cultrix,
1987.
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Eduardo e outros. Teoria Literária. Biblioteca Tempo Universitário 42.
Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro - RJ - 1976.
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Maria Luiza. Fenomenologia da Obra Literária. Forense Universitária –
Rio de Janeiro.
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Carlos. Técnicas de Análise Textual - 3ª edição. Livraria Almedina -
Coimbra - 1981.
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Afonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: Análise da Obra.
Editora Documentário – RJ.
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Coleção dirigida por Eduardo Portella. Professor da Universidade Federal do Rio
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Jacirema (Organização). Estudos de Literatura. Introdução à
Literatura através da Análise e da Interpretação de seu Discurso. Natal;
Fundação José Augusto, UFRN. Ed. Universitária, 1988.
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Gilberto Mendonça. A Estilística da
Repetição – Drummond. 2ª edição rev. aum. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976.