Antes de procurarmos
saber como este caminho ou como esta indicação se confirma nos diferentes
níveis do poema, já nos damos conta que, pelas diversas leituras efetuadas, o poema
em sua totalidade possui uma organização bem delimitada. Com isto,
compreendemos, mais uma vez, que a maior unidade de sentido do poema é ele
mesmo. E “Serpente Emplumada” é poema extremamente descritivo (recurso muito
mais narrativo do que lírico) por focalizar e descrever os blocos poéticos: o
entrelaçamento do “eu” lírico ou sujeito da enunciação (ora implícito,
ora explícito) e do sujeito do enunciado (que é aquele do qual fala o
discurso) compõe, estes últimos como figuras centrais, a cena, conferindo
dinamicidade à mesma e permitindo dividir o poema em blocos como já foi e está
sendo analisado. Estes (blocos) são as variações que o desenvolvimento do tema pode
assumir, estando “Serpente Emplumada” dividida em vários blocos.
Assim, cumpre-se, no poema,
um tempo imanente à palavra, não condicionado ao ritmo do calendário, da
duração interior e do mito. Dotado de padrão próprio, o tempo da poesia se
ordena como o tempo da enunciação, no ato de produzir os sons das
palavras, numa continuidade inapreensível por qualquer instrumento
mecânico. – p 150 A Criação Literária de Massaud Moisés.
O entendimento desse
aspecto do fenômeno poético avançará se recordarmos que a palavra poética
estrutura-se com base numa tensão múltipla, de natureza rítmica, emotiva e
conceptual ou semântica. Aqueles expedientes versificatórios servem à
compreensão dessa tríplice tensão, mas não a desencadeiam. E é essa tensão que
assinala a presença no texto, de um tempo sui
generis, ambíguo por natureza, que transcorre no circuito das palavras. Tudo
se passa como se as três outras dimensões do tempo se fundissem numa só: a
dimensão emocional, a dimensão semântica e a dimensão rítmica, entrelaçadas
como uma duração dialética.
[Gaston Bachelard, La
Dialectique de la Durée. Paris, P.U.F., 1963, pp 112 e suas. Do livro A
Criação Literária de Massaud Moisés.]
Se o tempo da poesia
se ordena como o tempo da enunciação, no ato de produzir os sons das palavras,
numa continuidade inapreensível, dir-se-ia que este tempo (da poesia) define-se
pelo aqui e o agora (momento presente da composição do poema), numa tensão
dialética, como se pode constatar nos versos que constituem o processo de
descrição exata do real:
“Um
fruto / Caiu verdinho / Da árvore. /
Não
amadureceu. / Permaneceu igual /
Para
sempre / No espaço / E no tempo /
Do
poema / (Já que muitas coisas / Acontecem /
Dentro
e fora / Do poema). / A média estação... //
Todos
os dias / Em pelos / De pernas e braços / Unhas / E células mortas / Vamo-nos
aos poucos / Para o nada.
[...]
Isso é
morrer?”
Se a palavra é o
habitat do ser, a palavra poética é a sua morada eleita, porque acima das
contingências, a da História, a da Consciência e a do Mito: “a poesia é a
instauração do ser com a palavra”.
[Heidegger, op. cit.,
p.107 – A Criação Literária de Massaud Moisés]
Ao conceber a poesia
como “a palavra no tempo”, Antônio Machado adiciona-lhe novas luzes, porquanto
“a palavra no tempo” implica que a palavra se desgarra de sua forma gráfica
para assumir-se no tempo o que equivale a supor que a palavra não remete para o
tempo, mas nele se incorpora, com ele se identifica. Palavra que se metamorfoseia
em tempo, isto é, noutros termos a palavra se cristaliza num tempo próprio, uma
quarta dimensão – para estabelecer analogia entre a sua e a nossa ideia.
“Por
um instante a humana tribo habita
Aquele
chão
Aquele
...
.......................................................
.......................................................
Põe-se
em fuga
Outra
vez.
O
pó da estrada fica
Para
além”
E a fixação dos
diversos fatos dispostos em um mesmo plano nas estrofes acima, se verifica não
só pelo emprego do presente do indicativo – habita, finca, erguem(-se),
torna(-se), é, derribam(-se), põe(-se), fica – que já é por si um tempo
pictórico, portanto estático, mas pela utilização de significados verbais que
muito se aproximam de significados nominais, a ponto de com eles se
confundirem: lembrança ð lembrar; habita ð habitante; terra ð terrear
etc.
A atualização da
significação nominal implica um conteúdo formal. A palavra “lembrança”, por
exemplo, refere-se a um sentimento que vamos especificar aqui como sendo
sentimento de saudade e, ainda, conota certos sentimentos a ele inerentes, como
tristeza, alegria, amor, além de outros, como o valor e a raridade.
E a possibilidade de
tal explicitação prova que o conteúdo formal realmente existe na estrutura
nominal em que estão implícitos vários aspectos formais. São desse tipo
vocábulos como humana, terra, estaca, estrada. Pois foi exatamente o que
procuramos evidenciar, oferecendo como exemplo a palavra “lembrança”.
Neste ponto, cremos
poder lembrar um princípio da linguagem estética, em função do que ficou
exposto: quanto mais o conteúdo formal estiver implícito em palavra de
significação nominal, maior será o seu valor expressivo. – p. 91 de Fenomenologia
da Obra Literária de Maria Luiza Ramos - 3ª edição. Rio de Janeiro, Forense
Universitária - 1974.
Mais uma vez podemos
extrair outro princípio da linguagem estética: ao poema não interessa, ou
interessa de maneira subsidiária, a caracterização dos nomes, ou das
expressões, desde que se lhes reconheça uma posição existencial.
Não que a realidade
seja desprovida de importância, mas porque a arte não se confunde com o real. É
sabido, a função primordial da arte é criar uma supra-realidade, numa
objetualidade que, proveniente do objeto, dele se distingue pela natureza
estética, de que, participam outros valores, muitos deles de ordem subjetiva.
“Parte
disso é mistério”.
Uma das características
universais da arte é o comportamento repetitivo. No que respeita à linguagem
poética, a repetição é de partes inteiras – o refrão; de palavras iniciais, ou
finais; de sílabas completas em efeito de rima, ou repetição de determinados
fonemas idênticos ou afins, em casos de aliteração, assonância e consonância.
Pois esse comportamento repetitivo se encontra no poema em pauta. Constitui uma
das características do modo de falar do poeta. De bonito efeito, é quando
palavra puxa palavra pela simples semelhança:
“Mas
baila com o fogo a gente
A
gente que é sombra e dança
A
gente que é nômade e sonho
A
gente que não sabe sono
A
gente que é sopro e vida
A
gente que é triste e samba.”
Muito expressivo é o
exemplo indicado em que, dentre seis versos, usa o poeta seis vezes o nome
“gente”, repetindo por seis vezes uma mesma palavra com grande funcionalidade
rítmica.
A repetição da
fricativa é aqui de grande efeito estilístico. O gosto pelas palavras repetidas
se percebe em algumas outras construções redundantes, como:
O povo / Acolhe os dons
da eleição. / Parte /
Em duas partes /
O deserto / O mundo. Pisa /
Chãos inteiros... / Pisa
/ A flor. / Faz perfume. /
Alarga a tenda / A cada
passo / E passa ...
CONTINUA...
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