sábado, 30 de outubro de 2010

José Gonçalves de Medeiros e o poema “Despedida do pássaro morto”...

Olá, amigos! Na minha crônica da segunda-feira passada eu falei de um poeta acariense, José Gonçalves, e de seu célebre poema, “Despedida do pássaro morto”. Interessaram-se pelo assunto, sobretudo pelo poema, raríssimo; alguém, inclusive, postou um comentário pedindo sua divulgação em nosso blog. Contatei o amigo WILSON AZEVEDO, crítico literário de competência e especialista nesta matéria. Com sua orientação, e licença dos detentores de direito, publicamos agora o texto mais original do poema (apenas a grafia foi atualizada, o que é lícito e mais do que viável neste contexto); também incluem-se aí uns dados sobre o poeta, os quais estão disponíveis em uma comunidade de arte e entretenimento criada pelo mesmo Wilson Azevedo. Este, junto à família do poeta, tem outros trabalhos de José Gonçalves, que não podem ser publicados agora, mas que oportunamente virão a público em edição crítica.
Segue-se o principal... Espero que gostem! Há grandeza neste poema, para além do mito...

DESPEDIDA DO PÁSSARO MORTO

O voo também é sensu-
alidade
Estremeço e vibração de pássaro
Que possui e penetra o
espaço.
E era como se possuísse
e penetrasse a alma
do tempo.
Se eu morrer como
um pássaro
Deixo aos que me ama-
ram, aos que
me quiseram e me
gostaram, como eu
era, o meu sempre
displicente adeus.
Estou compreendendo
que se morrer num voo
antes de tocar a terra
do mundo, serei como
a pena do pássaro
ferido de morte.
Serei um pássaro de
fogo que vem do
céu para repousar
no seu ninho de areia.
Chorem, bebam, dancem,
riam, passeiem, pela
alma do amigo que
não foi pássaro mas
morreu como eles.

José Gonçalves
27-6-45

Segundo Wilson Azevedo, este poema aparece em 16 publicações, entre jornais, livros e revistas. Porém, em todas, o texto apresenta modificações. Esta é a versão original, de acordo com o manuscrito. Só a grafia foi cuidadosamente atualizada.

JOSÉ GONÇALVES é o filho mais velho de uma família de 12 irmãos. Seus pais: o telegrafista Mário Gonçalves e Porfíria Pires Galvão. Nasceu em 18 de dezembro de 1919, em Acari (RN). Faleceu aos 31 anos de idade, a 12 de julho de 1951, em Sergipe, no acidente aéreo que vitimou o Governador do RN, Dix-Sept Rosado, de quem era Secretário de Imprensa do seu governo.
Aos 11 anos, José Gonçalves foi admitido no Seminário de São Pedro, em Natal. Porém, a trajetória como seminarista foi curta. Pouco tempo depois foi transferido para o Colégio Ateneu, onde iniciou suas atividades literárias, escrevendo para o jornal da Academia de Letras da instituição.
Do Ateneu foi para João Pessoa e depois para Recife, onde exerceu suas duas principais atividades: a política e a literatura. Na primeira, foi ativo combatente da ditadura Vargas. Na segunda, deixou poemas, crônicas e contos publicados nos jornais daquela capital.
Dos poemas, o mais conhecido é o "Despedida do pássaro morto" e dos contos, "Menino em dezembro".

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

EXATAMENTE ASSIM...


Fotografia de Reginaldo Magalhães
Direitos

HISTÓRIA DE AMOR (GUI GUI GAGO E A LINDA ESTRÁBICA)

Foi do desencontro
De um certo par de olhos
Que o amor se apaixonou.
Primeiro ele a viu
E ela duplamente o viu
Ouviu seu desconserto de palavras
E o acerto
Daquele bom concerto
Si... silábico.
Amaram-se.
Porque o amor dispensa
A previsível língua
E óbvios olhos.

Antonio Fabiano
Direitos reservados

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

ACARI EM MINHAS MEMÓRIAS

Acari, cidade do Rio Grande do Norte, sempre gozou de boa fama em minhas memórias. Gozava de fama nacional, também, por ser a cidade mais limpa do Brasil, um título que eu não sei se ela ainda ostenta. O que eu sei é que sempre estive muito próximo dos acarienses: nos anos em que concluí o 1.º e cursei todo o 2.º grau – como se dizia antigamente – em Currais Novos (estudei no Colégio Comercial, que fora em tempo áureo dirigido por uma acariense severa, cuja boa fama atravessou gerações); e, depois, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde também os acarienses eram muitos.
Nossas cidades eram pequenas demais, então acorríamos, os que podiam, à cidade maior da cercania, que nem era tão maior assim, para estudar em colégios melhores, fazer faculdade, compras etc. Hoje por certo tudo isso mudou! Mas naquele tempo era assim. Lá nos encontrávamos. E, talvez por sermos meio forasteiros no lugar, nos afinávamos bem.
Os acarienses eram a soma de tudo que eu mais prezava num ser humano: eram disciplinados, simples, muito inteligentes, aplicados nos estudos, bem educados, bem-humorados. Como se não bastasse isso tudo, as meninas eram bonitas, todos eles tinham música no sangue e, ainda por cima, eram poetas até no jeito de falar! Muitos dos meus colegas de lá já eram escritores, naquele tempo da Federal, já tinham livros de poesia publicados e leitores cativos. Acari tinha revistas literárias e uma tradição em verso de fazer inveja ao Seridó.
Os acarienses amavam seu poeta José Gonçalves, que eu também aprendi a amar. Este escrevera, pelos idos de 1945, um famoso poema intitulado “Despedida do pássaro morto”. José Gonçalves veio a falecer, tragicamente, em julho de 1951, num acidente aéreo. Definitivamente isso fez dele, no imaginário das pessoas, o mítico “pássaro de fogo” dos seus mais belos versos...
Eu ainda me ligava à terrinha acariense por outra causa: na sua Igreja do Rosário, a mais antiga do Seridó, estão sepultados alguns dos meus primeiros ancestrais do Brasil. Isso implica alguns séculos de genealogia, coisa que minha parentela antiga cultivou com zelo e ufanismo hoje ultrapassados.
Voltando aos acarienses do meu tempo... Eram criaturas muito especiais. Solidários, destituídos de preconceito, artistas, livres, acolhedores... Tanto eu poderia louvar desta gente! Com alguns deles trabalhei no Centro Acadêmico de Letras. E já ia me esquecendo de dizer, esses acarienses eram também muito politizados! Andamos, sim, metidos na boa política estudantil! Formávamos um grupo relativamente hegemônico e até assumimos lideranças na capital da scheelita, a terra dos curraisnovenses, de cujos artistas estive igualmente muito próximo. Fundamos jornal, promovemos eventos de grande porte e levamos sangue novo ao campus de Currais Novos que, naquela época, funcionava em condições mais ou menos precárias em relação ao que é hoje.
Dos acarienses eu guardo muitas saudades, rostos e nomes que omiti aqui. Tudo isso me faz até lembrar de certo poema que escrevi há tempos e que deveria ter sido publicado no final da década de noventa, em um livro meu que felizmente morreu no prelo, mas do qual ainda posso salvar coisas boas como esta:

ACAUÃ

Acauã
Lanço em tuas asas
Meus anseios
Voo
Vejo-me
Em teus espelhos
De mansas
Alas
Águas
Correntes
Que me prendem
Afim.

Acauã
Doce
Rio sereno
Antigo
Das gerações d’estrelas
Vê-las
Gostava eu
Pintadas
Em teus lençóis
Boiadas
A beber
Passar

Acauã
Nado
Rio de agora
Rio
Do menino
Que dourou
As horas
Nadas
Onde deságuas
Águas
Que adornam
Acari.

Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 25 de outubro de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

sábado, 23 de outubro de 2010

WILMAR SILVA: "solidão é perder a memória do corpo"...

Wilmar Silva sob fotografia de Sebastián Moreno, artista argentino...


arranjo de tico-tico e orquídeas, dia 9

vivo por ti - amarga espera da solidão,
guardo no cântaro da palavra, o verbo
de ação que entorpece tico-tico, eu
sim, te violo e te tálamo, zoológico-me
farfalho tórrido, eu amarelo e outono
atiradeira - dardos de flor sol violeta
misturo entre cor e colibri nos cabelos
reconstruo em ti, irrupção e - posseiro
o meu corpo nu é meu substântivo
concreto, orquídea, pepita, eu-meeiro

Wilmar Silva


arranjo de pássaro-preto e lírios, dia 11

aqui, após o incidente da chuva - ermo
cores de fogo e lodo, feérico eu, pássaro/
preto imito a dança do vento e algas
enleadas nos cabelos, almíscar eu gambá
: jogo de cintura no meandro agreste
vôo,re vôo não apenas de âmbar e asas
eu, pretopássaro, bico limão/e/limão
preparo semântica de verbo lírico, eu
pássaro-preto coloro íris de lírios/
eu, pássaro incendeio água no corpo

Wilmar Silva


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Desde que fiz neste blog uma sinótica apreciação do WILMAR SILVA, vida e obra, multiplicaram-se as reações dos leitores. Sobretudo aquela “Intervista”, originalíssima nas suas desconcertantes respostas, deu o que falar... Tive também notícias de que, depois das matérias, em uma escola do Nordeste crianças/adolescentes se encantaram com ele, pesquisaram seus vídeos no Youtube e ficaram fascinados com as novas possibilidades da língua. Os comentários postados sobre o poeta em meu blog são muitos, até hoje, com as mais interessantes opiniões... Falaram até da “nudez” do cara, pasmem! Então, perdoem-me por esta foto! Não se escandalizem os mais pudicos! Ou, antes, se escandalizem! Ele é artista e artistas não têm confins! Eu gosto desta foto e digo-lhes que mais do que o poeta retratado, aí se expressa a grandeza do fotógrafo SEBASTIÁN MORENO. Não sei se consigo me expressar, mas esta foto parece tornar dispensável a imagem (!), o que é absurdo. Nela o belo grita, por determinada afirmação da negação, ou negação do que intenta (?) afirmar. Tudo com tanta fineza, bom gosto... Vocês entendem o que eu digo? Esta “coisa” foi um achado, encantou-me desde que vi pela primeira vez... Ou não vi, sei lá!...

Os poemas postados do Wilmar Silva, inclusive o subtítulo "solidão é perder a memória do corpo", são do livro YGUARANI, publicado em Portugal pela Cosmorama Edições, em 2009.

A fotografia e os versos são delicada cortesia do WILMAR SILVA, a quem de coração agradecemos.

Esta postagem é para aquelas pessoas que pediram mais Wilmar Silva em meu blog, especialmente sua poesia...

Por último, não menos importante, procurem conhecer as publicações da ANOME LIVROS. Do que é bom eu sempre falo...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

CANTEM AS CIGARRAS

Desde que vim morar em Minas, eu me lembro de não me esquecer das cigarras. Pra ser sincero, elas não se deixam esquecer. Todo ano, quando vem o calor, vem também esta cantoria inqualificável das vagabundas de Esopo. São as cigarras, patéticas, poéticas, embelezadas em sua pequena vida, grande vida, decididas a cantar até que a morte descubra-lhes a tecla “off” e as desligue. As cigarras são só 10% inseto, 90% é canto em ardor explícito. Elas não me incomodam, porque são e existem como nós - eu e você. Reproduzem da vida, após longo silêncio, o esplendor da estridência. Todo mundo tem seu momento de grito nesta vida. Em Minas, as cigarras abundam. São tantas e tão grandes as desta espécie “mineira”. Os cidadãos daqui, não os poetas, querem bani-las do mapa: “calem as cigarras”. Dizem que nem mesmo elas se aguentam, o que é verdade apenas no tocante ao fato de protegerem seus tímpanos na hora da cantação. O canto das cigarras é sedução, atrai o amor delas. Só o macho canta, visto que as graças da fêmea dispensam esse ardil.
Todos os conventos onde morei têm muitas árvores na cercania. E, nas árvores, cigarras que não se acabam mais. Árvores devem ser como conventos para as multiplicáveis cigarras, nada celibatárias. Elas, como nós, cantam em hora certa e rivalizam com os nossos coros. São além de impossíveis, invencíveis. Parecem sirenes doidas, ligadas em desespero, estas quase monódicas e nem um pouco canônicas irmãs. Mas têm razão, eu não as culpo. Vivem anos sob o solo, na escuridão da terra funda. Ataviam-se de levezas lá no abismo, até saírem para o voo e brilho radiantes de quase tempo nenhum. Quando saem, se embriagam de clarão, cantam – indiscretas e desesperadamente – por pouco mais de duas semanas. Ou menos. Ora, estão certas! Não fazem voto de silêncio e tampouco de castidade! Se você tivesse apenas quinze dias de toda a sua vida para acasalar e deixar descendência, você também não agiria assim? Isso não vale, é claro, para frades...
Quando saem de debaixo das árvores, de junto da raiz da vida, as cigarras, lindas, sedutoras, translúcidas, cantam porque vão morrer e sabem disso e não se importam. Esta alegria das cigarras é puro espanto!

Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 18 de outubro de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

SOBRE AQUELAS PALAVRAS: “DILECTUS MEUS MIHI” (Ct 2,16) - Poema de Santa Teresa de Ávila

Entreguei-me toda, e assim
Os corações se hão trocado:
Meu Amado é para mim,
E eu sou para meu Amado.


Quando o doce Caçador
Me atingiu com sua seta,
Nos meigos braços do Amor
Minh’alma aninhou-se, quieta.
E a vida em outra, seleta,
Totalmente se há trocado:
Meu Amado é para mim,
E eu sou para meu Amado.

Era aquela seta eleita
Ervada em sucos de amor,
E minha alma ficou feita
Uma com o seu Criador.
Já não quero eu outro amor,
Que a Deus me tenho entregado:
Meu Amado é para mim,
E eu sou para meu Amado.


SANTA TERESA DE JESUS (1515-1582)
15 de outubro, um grande dia: de Santa Teresa e dos Professores...

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

MARIA LÚCIA DAL FARRA - ela, sim, exuberante!

Maria Lúcia Dal Farra - Imagem disponível na Web

Faz aniversário hoje MARIA LÚCIA DAL FARRA. Uma das pessoas mais autênticas que já conheci! Paulista de Botucatu, onde nasceu em 1944, vive atualmente em uma fazenda do Sergipe – ali tem criatório de infindáveis gatos... É das mais brilhantes intelectuais deste país. Lecionou em universidades nacionais e internacionais. Foi professora na USP e na UNICAMP – nesta integrou a equipe do grande Antonio Candido, responsável pela fundação do Departamento de Teoria Literária, em 1975. Esta exuberante mulher tem centenas de trabalhos sobre narrativa e poesia, publicados no Brasil e no exterior, em português e outras línguas. Escreveu alguns dos mais sérios estudos sobre Florbela Espanca, poetisa portuguesa, além do antológico estudo sobre o foco narrativo em Vergílio Ferreira, “O narrador ensimesmado” (São Paulo, Ática, 1978), e “A alquimia da linguagem”, leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986). Lança-se em poesia no ano de 1994, com seu “Livro de Auras” (São Paulo, Editora Iluminuras). Mais tarde surge seu belo “Livro de Possuídos” (São Paulo, Iluminuras, 2002). E, em seguida, “Inquilina do Intervalo”, livro de contos (São Paulo, Editora Iluminuras, 2005). A revista Veja chegou mesmo a publicar em 2002 – por ocasião do lançamento do “Livro de Possuídos” – que “ninguém no Brasil é melhor poeta do que ela”... Minhas felicitações a Maria Lúcia, por quem nutro de longas datas amizade e especialíssimo carinho.
Segue-se um poema seu, como poucos há na língua portuguesa, de extremada delicadeza, beleza ímpar, requinte, perfeição...

VERGILIANA

Descansa comigo
sobre a folhagem nova!
Tenho frutas maduras, castanhas assadas,
fartura de queijo.
Ao longe um telhado fumega.

Nem de arbustos e tamarindos
os poemas se fazem.
É certo que assim verdejam
mas também em cinza se convertem.
Elevemos o canto: falemos da grande ordem,
da totalidade das coisas,
dos anéis de Saturno
do menino que há pouco nasceu.

Os meses correm:
úmido mel destilam as mangueiras,
heras vicejam sobre o mato,
vermelhos pendem dos espinhais incultos.

As Parcas os seus fusos correm
e a lã não mais imitará a cor:
o próprio carneiro, no prado,
vai transformar seu velo em púrpura
ou dourado açafrão;
já dispensam foices as videiras.

Alcêmo-nos para as grandes honrarias!
Um século há de vir em que o alento
torne o mundo poesia.

Maria Lúcia Dal Farra
(Do “Livro de Possuídos”, São Paulo, Editora Iluminuras, 2002, pp. 49-50).

Homenagem a Maria Lúcia Dal Farra, por ocasião de seu aniversário.
14 de outubro de 2010

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

"VAI, CARLOS!"


Fotografia de Antonio Fabiano

Em chãos do Pico do Amor
No Memorial Carlos Drummond de Andrade
Itabira - MG

ITABIRA BRILHA

Estou em Itabira, cidade natal de Carlos Drummond de Andrade. Aqui tudo lembra o poeta e se serve da sua poesia para continuar existindo no tempo das coisas findas que, mais que lindas, ficaram. Por toda a cidade encontram-se enormes placas de ferro, com poemas do poeta maior. Sinalizam lugares possíveis e impossíveis de Itabira no coração deste tal Carlos. É como se alguém tivesse arrancando as páginas de um grande livro, espalhando-as generosamente no ali. E, em razão disso, não se dá um passo na urbe sem tropeçar em Drummond, a palavra.
Itabira virou uma cidade de poesia, ao menos para quem não mora nela e a visita em honra daquele que a fez existir no mapa do mundo. Cada rua, cada beco, cada casarão lembra um acontecimento tipicamente “drummond”. São rastros vistosos do poeta e personagens que revivem na sua itabirana poesia.
Itabira tem muito pra contar do que ainda não se esqueceu. Neste sábado a cidade celebra o seu aniversário, 162 anos de emancipação política. Porém, é muito mais antiga do que isso. Seus prédios históricos, como tantas partes de Minas, sobejam lembranças do passado. Vultos fantasmagóricos ainda se movem em seus sobrados. Mas nem tudo escapou da ação irreversível do tempo, um tanto se perdeu antes do tombamento, há algo a se lamentar...
Lá está, contudo, a casa do poeta, a escolinha de suas primeiras letras, a fazenda ancestral dos Andrades com suas glórias já idas, o Memorial do mais ilustre itabirano, e suas – embora de aço – nunca soberbas estátuas... Além de versos nos passeios, nas fachadas das casas, nas encruzilhadas, nos becos, nas igrejas, no chão etc.
É bom estar na terra do homem que só tinha duas mãos e o sentimento do mundo.
Tipicamente mineira, Itabira se acomoda entre montanhas e muitas ladeiras. Qualquer coisa existe entre uma esquina e outra. A vida besta de outrora não foi embora, ainda. Onde estou, não tenho dúvida, existo no passado. Mas, definitivamente, aqui eu não sou poeta, o único poeta possível é Drummond, Carlos Drummond de Andrade, só ele, ele só. Pra mim, que sou forasteiro, só o gauche é real em Itabira, de modo que qualquer rua começa ali mesmo, mas finda sempre no coração do poeta da rosa do povo das gentes.
Itabira quer dizer “pedra que brilha”. E, por causa da mineradora que dia e noite trabalha engolindo as montanhas deste ao redor, há no ar um pozinho brilhante, o pó da pedra que brilha. Na sacada do casarão antigo onde estou por estes dias, o pó da pedreira cobre os balcões e brilha. Lá muito em baixo, o chão também brilha. Em poucos minutos eu brilho. Tudo brilha em Itabira. A pedra no meio do caminho do poeta está virando pó, o que eu lamento, mas como brilha!...

Para Emerson

Antonio Fabiano
Itabira, 09 de outubro de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO


Fotografia de Antonio Fabiano
Sobre poema de Carlos Drummond de Andrade
No seu Memorial de Itabira-MG

(clique na fotografia para ler o poema)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

EM ALGUM LUGAR DAS GERAIS...



Homens de ferro... Perdão, Senhor! Eu não sou um deles...

Escritores Mineiros - Praça da Liberdade - Belo Horizonte
Fotografia de Antonio Fabiano

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

UM PASSARINHO FEZ OURO NA MINHA CABEÇA!

Quando eu trabalhava na Secretaria de Educação de Cerro Corá, naqueles anos em que estive à frente do setor de cultura da mesma repartição, uma vez, voltando a pé (em passos largos, como de costume) de uma reunião na Prefeitura, aconteceu-me de um passarinho passar e em pleno voo fazer ouro na minha cabeça! Na ocasião, com bom-humor e muito riso, calculei a extensão territorial da cidade, as velocidades aproximadas do voo de uma ave daquela espécie e dos meus próprios passos. A probabilidade de aquilo acontecer de novo, ao menos naquele dia, a alguém em iguais circunstâncias... era muito rara! Pois é, matematicamente feliz, eu cheguei à repartição. Sentia-me abençoado, único, dentre alguns mil que nunca receberiam essa dádiva. Afinal, quantos tiveram semelhante condecoração? Com que frequência isso ocorre aos cidadãos da minha serrana terra cidade, tão desprovida até de pombos em suas praças?
Os anos se passaram e doutra feita estava eu a tocar violão debaixo de uma árvore. Deu-se ao pôr-do-sol, se isso ajuda a tornar mais bucólica a cena. E não é que o fenômeno ocorreu, pela segunda vez! A mesma oferenda dum ser alado, que não disse seu canto e tampouco se apresentou. Ouro na cabeça! Dessa vez, o humor foi mais comedido, pra ser sincero não teve mais graça, não calculei mais nada e minha consciência ecológica se irritou um pouco. Mas, culpa minha! Era eu que estava debaixo da árvore, que é a casa grande dos passarinhos, ou hotel de seus pernoites.
Engana-se quem pensa que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar! Pois que o desminta um para-raio! Cai, sim, e não apenas duas, mas três... A terceira vez que ocorreu – o que já bem sabeis – eu estava conversando no pátio da PUC com uma menina italiana e alguns colegas de faculdade. Estava parado e não tinha árvore acima de nós. De repente... ploft! Outro passarinho fez ouro na minha cabeça! O episódio foi público e notório! Minha vergonha, também. Mas a ragazza italiana contou-nos que aquilo era sinal de boa sorte em seu país. Em seu país! Porque aqui, não! Ou será também? Obviamente meus colegas transformaram a minha desventura em festa! Mas já passou! Passou?
Caro leitor, se isto fosse um texto de ficção eu pararia agora. Acho que o mais é demais em qualquer biografia. E a minha, vê-se, está suja! Antes três fosse o meu caso! Eu juro que aconteceu! Eis que há pouco venho eu às pressas pra casa, feliz, feliz... E um passarinho, em pleno voo – pleníssimo! – faz, pela quarta vez, ouro na minha cabeça! Ah, não! Outra vez, não! Agora, chega! A sensação panifobicamente indescritível foi a de que eu deveria correr (como quando somos surpreendidos por um temporal). Temo que de uma hora pra outra todas as aves do mundo resolvam fazer seus depósitos de ouro na minha cabeça... Estou rico e polido às avessas! Depois do banho me acalmo.

Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 04 de outubro de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com

FRIA MANHÃ

A manhã está fria
Como são frias
As manhãs da minha serrana terra cidade.

Mamãe cantava em língua e grafia antigas:
“Cêrro-Corá é seu nome...”

Lá fora outra música
Atravessa
A névoa esparsa
E chega aos meus ouvidos
Fria
Como o cadáver
De um tempo morto
Pesado
Frio.

O tempo gira...
As horas passam...
Apenas algo permanece imóvel.

Passam os homens de argila...
Recordo-me de que também sou pó.
Brusco silêncio me consome.
Sou pão do silêncio.

As mulheres da minha terra
Com seus lenços na cabeça
E muitos nomes Maria
Têm no olhar a piedade
Das santas dos altares.

O vento tange com força
As folhas
Das árvores que dormem no meu pensamento.
Até as folhas do chão
Ganham num instante
Diminuta vida.

Ilusão.

Meu canto é de fria manhã...

Não há poesia no medo.

Antonio Fabiano
Direitos reservados

domingo, 3 de outubro de 2010

SOBRE A MESA

Na minha terra as coisas
Tudo
Amanhece.
Como se não bastasse essa primeira graça
Mamãe levantava-se da noite
Vestida de aurora
Setecentas vezes mais poeta do que eu
E dizia sorrindo para a avó Ignácia:
“A mesa amanheceu estrelada
De xícaras
Outra vez”.
Referia-se a meu serão
E rastro de cafeína.
Eu nunca duvidei:
Lá em casa era o céu.

Antonio Fabiano
Direitos reservados

sábado, 2 de outubro de 2010

PRÊMIO JABUTI 2010 - MARINA COLASANTI: MELHOR EM POESIA...

A Câmara Brasileira do Livro (CBL) anunciou ontem os nomes dos vencedores do 52.º Prêmio Jabuti. Este antigo prêmio de nossas letras é um dos mais cobiçados e prestigiosos do país. Em 1959 foi feita a entrega do primeiro Prêmio Jabuti, onde foi laureado - dentre outros - Jorge Amado, na categoria Romance, pela obra “Gabriela, Cravo e Canela”. Desde então os nomes de muitos monstros sagrados da nossa literatura têm passado por lá. Atualmente são premiados autores em 21 categorias. Na categoria de melhor livro de poesia, a vencedora deste ano foi MARINA COLASANTI, com “PASSAGEIRA EM TRÂNSITO”, Editora Record. Eu, particularmente, gostei muito dessa escolha! Também digno de nota é o que se verifica na categoria Romance: 1.º “Se Eu Fechar os Olhos Agora”, Edney Silvestre (Record); 2.º “Leite Derramado”, Chico Buarque (Companhia das Letras); 3.º “Os Espiões”, Luis Fernando Veríssimo (Objetiva). Os nomes de todos os vencedores em cada categoria estão disponíveis no sítio da Câmara Brasileira do Livro.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

GRUTA DO MAQUINÉ: "– Plein!... ritmos do Infinito..."

Gruta do Maquiné
João Guimarães Rosa

A gruta de Ali-Babá ainda existe,
graças a Deus, ainda existia,
quando eu disse:
– “Abre-te, Sésamo!...”,
na fralda da serra,
e fui entrando, deixando cá fora
também o sol, a meio céu, querendo entrar...


Bafio quaternário. O preto
da imensa noite, anterior ao mundo,
com pesadelos agachados
e pavores dormindo pelos cantos,
enrolados nas caudas de gelatina fria,
vem comprimir o peito e os olhos.
E ao acendermos as velas e as lanternas,
a treva se retrai, como um enorme corvo,
das paredes paleozóicas,
salitradas.


Subterrâneos de Poe, salões de Xerazade,
calabouços, algares, subcavernas,
masmorras de Luís XI, respiradouros
do centro da terra,
buracos negros, onde as pedras jogadas
não encontram fundo, como pesadelos
de um metafísico...


Flores de pedra,
cachoeiras de pedra,
cabeleiras de pedra,
moitas e sarças de pedra,
e sonhos d’água, congelados em calcário.
Andares superpostos, hieroglifos, colunas,
estalagmites subindo
para estalactites,
marulhos gotejando das pontas rendilhadas:


– Plein!... ritmos do Infinito...
– Plein!... e séculos medidos por milímetros...


Não falemos, que as nossas vozes, baças,
recuam espavoridas
das galerias ressumantes, das reentrâncias
de um monstruoso caracol...


Rastros de ursos apeleus e trogloditas,
candelabros rochosos,
lustres pendentes de ogivas,
e a visão de Lund, sorrindo, sonhando
com fêmures de homens primitivos,
com megatérios e megalodontes...


Mas é preciso sair. Já é a hora
da noite deslizar para fora da furna,
e subir, desenrolando as voltas
de píton ciclópico,
para encaixar todos os anéis, na altura,
com milhões de escamas fosforescendo
e o enorme olho frio vigiando...

(Poema de João Guimarães Rosa.
In: MAGMA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997).

Fotografias de Antonio Fabiano


PS: Se você nunca esteve na Gruta do Maquiné, basta sentir este poema do Guimarães Rosa. Não mais precisa ir lá.
Esta postagem é dedicada a Rafael, que sugeriu tais versos às fotografias.