Desde que vim morar em Minas, eu me lembro de não me esquecer das cigarras. Pra ser sincero, elas não se deixam esquecer. Todo ano, quando vem o calor, vem também esta cantoria inqualificável das vagabundas de Esopo. São as cigarras, patéticas, poéticas, embelezadas em sua pequena vida, grande vida, decididas a cantar até que a morte descubra-lhes a tecla “off” e as desligue. As cigarras são só 10% inseto, 90% é canto em ardor explícito. Elas não me incomodam, porque são e existem como nós - eu e você. Reproduzem da vida, após longo silêncio, o esplendor da estridência. Todo mundo tem seu momento de grito nesta vida. Em Minas, as cigarras abundam. São tantas e tão grandes as desta espécie “mineira”. Os cidadãos daqui, não os poetas, querem bani-las do mapa: “calem as cigarras”. Dizem que nem mesmo elas se aguentam, o que é verdade apenas no tocante ao fato de protegerem seus tímpanos na hora da cantação. O canto das cigarras é sedução, atrai o amor delas. Só o macho canta, visto que as graças da fêmea dispensam esse ardil.
Todos os conventos onde morei têm muitas árvores na cercania. E, nas árvores, cigarras que não se acabam mais. Árvores devem ser como conventos para as multiplicáveis cigarras, nada celibatárias. Elas, como nós, cantam em hora certa e rivalizam com os nossos coros. São além de impossíveis, invencíveis. Parecem sirenes doidas, ligadas em desespero, estas quase monódicas e nem um pouco canônicas irmãs. Mas têm razão, eu não as culpo. Vivem anos sob o solo, na escuridão da terra funda. Ataviam-se de levezas lá no abismo, até saírem para o voo e brilho radiantes de quase tempo nenhum. Quando saem, se embriagam de clarão, cantam – indiscretas e desesperadamente – por pouco mais de duas semanas. Ou menos. Ora, estão certas! Não fazem voto de silêncio e tampouco de castidade! Se você tivesse apenas quinze dias de toda a sua vida para acasalar e deixar descendência, você também não agiria assim? Isso não vale, é claro, para frades...
Quando saem de debaixo das árvores, de junto da raiz da vida, as cigarras, lindas, sedutoras, translúcidas, cantam porque vão morrer e sabem disso e não se importam. Esta alegria das cigarras é puro espanto!
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 18 de outubro de 2010.
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
Fabiano, cara, acho que vc apetou o "off" do texto antes do tempo, pois está tão musical, suave e humorisco que a gente o ler num relance. Abraços
ResponderExcluirObrigado, xará! Vamos procurar o "on"... rs rs rs
ResponderExcluirNas profundas raízes de vales indiscretos canta um frade sua canção de espanto, um quase queixume de árvores órfãs ao perderem o êxtase de cigarras em cio; grita um mundo quero gozar da embriaguez da claridão e no sibilar quero morar e esquecer os poucos dias.
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