O BAILARINO
Com as pontas dos pés
O bailarino tocava as copas das árvores.
O bailarino girava
Vestido de lua e vento
Sob o céu noturno
De milhões de olhos acesos.
Deslizava como dedos
Ao piano
Em sonata de Chopin.
O bailarino bailava
Sob a luz
Da esbugalhada lua
Sob o riso
De um asteroide
– risco –
Astros vivos e morrentes
Lume luz.
Vestido de desalento
O bailarino voava
Por sobre as copas das árvores
Enchia de nada a noite
Cortava o espaço dormente...
E a sua solidão
Sabida só pela boca
Tangida só pelas cordas
De um trágico anfitrião
Desafinava no tempo
Caía em folhas ao vento
Por sob as copas das árvores
Ainda que fora disso
Muito acima de seus pés
Este hábil bailarino
Bailasse mais que a soberba
Roda gigante da vida
Que roda e gira possante
Na vetusta e estonteante
Velocidade da luz.
A LUZ BRUXULEANTE
A luz bruxuleante dança
Dentro do meu peito
Enquanto arde e queima
Minha nudez
Tangida pelo dedo de um
demônio.
Baila a chama
Bêbada e corcunda
Dentro de mim e neste
quarto
Em que estou dentro
– Ó palco de humanos
desejos! –
Onde sinistras sombras
movem-se
A dançar
Tomadas pela mão da luz.
Com dedos de carícia vem o
outono
Todas as folhas caem
Uma a uma...
Dançam com o vento
Em infinitos tons de
amarelo
As amarelas bailarinas.
Por entre bicicletas
Moinhos e tímidos sorrisos
Existimos.
É de outono a vida
Que chora sua beleza
Rara e austera.
Só um medo me exaspera:
O lago que vai congelar
O frio que – se estou
sozinho – apaga
A luz embriagada
Que dentro do meu peito
treme
Enquanto arde e queima
Minha nudez
Tangida pelo dedo de um
demônio.
Despe-se a árvore de
ferro.
Não a toca vento algum
Como às páginas das
árvores de Handel.
Eu danço com as folhas
Estou feliz de uma
felicidade que espera
De uma felicidade que se
não é será.
O outono vem.
Que dentro dele venha o
meu amor
Com seu fruto maduro e doce.
E assim arda e queime
No fogo efêmero da vida
Minha nudez
Tangida pelo dedo de um
demônio.
Países Baixos,
outono de 2013
TRANSGRESSÕES
Papai
queria que eu fosse Doutor.
Me
fiz poeta...
Foi
tão constrangedor!
Mas
disfarçaram.
Depois
pediram um neto.
Eu
disse: Padre.
Mamãe
levou três dias só chorando
E
quase um ano pra se recompor.
A
minha vida foi a um só tempo
Pequena
e grande
Em
suas transgressões...
O
que direi nesta altura
Aos
que pedirem conta da minh’alma?
BALA
Não direi que o poema
Acordou ou adormeceu.
Ele ficou doce
Como a água de um rio
Ou como frutas sazonadas
na estação.
Tão natural ao poema
Acontecer...
Como se o campo
Chorasse ou festejasse
A sorte da semente
E depois ela crescesse
Indiferentemente.
Um poeta não acerta
sempre.
O poema quando acerta
Atinge o alvo como seta
Ou como bala de canhão.
É pura sorte que estes
dois se encontrem – digo
O poema e seu poeta.
Coisa que não acontece
tanto
Em tantas vidas
Nem tantas vezes
Sob a rota
Combalida
De uma vida.
É como bala vil
Perdida
Um poema que acerta
O peito ou o crânio do
poeta
E vira fato de notícia
Ou de perícia.
O CORPO
O corpo nasce
E se expande
Em sua natureza física
E psíquica.
Pelas ruas de suas veias
Trafegam carros de sangue.
Nos pés põe meias.
O corpo ama
E brinca de se esconder.
Veste-se de beleza
E despe-se
Com igual destreza.
Finge que é eterno
– e talvez seja.
Deitado
Dorme e sonha
O que deseja.
ZUMBIS
Depois
da chuva
Vieram
os zumbis.
Como
esconder meu constrangimento
De
abordar esse horror cinematográfico
Em
poesia?
Eles
vieram em bandos
Saídos
da lama
Maltrapilhos
e podres
A
perambular sobre o que era cidade
E
virou picadeiro de fantasmas.
Alguns
milhões de reais custou
Aos
cofres públicos
O
nascimento deste poema feio.
A
verdade estava ali
Justa
ou vingativa
A
lembrar que
Os
mortos voltam.
TUCUMÃ
No meu braço dorme a noite
Qual criança bem pequena
Aquecida em meu abraço
Puro aço.
Dorme a noite negra e
tímida
Alheia a dor que sufoca
Surda à lâmina e aos
pulsos
Pus e ácido.
Tucumã não se partiu?
Por que não parte esta
dor?
Por que não desperta a
noite
O amor?
Dos meus olhos assustados
Disparam sete cavalos
Têm crinas de fogo e vento
Morre o tempo.
O chão está encharcado
Do vermelho numinoso
Sangue espesso das
estrelas
Derramado.
Tucumã não se partiu?
Por que não parte esta
dor?
Por que não desperta a
noite
O amor?
CONVERSA AFIADA
Para Leonam
Se a navalha no peito
Dói mais que nos pulsos,
Não sei.
Sei que os seios
Não foram feitos para a
lâmina,
Nem as mãos
Para o que de escarlate as
quer tingir.
Palavras são aldeias.
Um tango em Buenos Aires
me incendeia.
Só a solidão faz nevar
dentro de mim.
O GALO
O galo canta na noite
Não porque cantou antes em
algum poema
Mas porque quis cantar no
meu quintal
E canta no mundo
Desde o início dos tempos
Passando pela negação de
Pedro
Até chegar aqui.
O galo canta
E rasga a noite
Como eu rasgo o rascunho
de um poema.
Frei Antônio comprou
galinhas.
Um acontecimento banal
Como a vida às vezes quer
ser.
Para o galo
Foi excepcional.
Ficou contente.
Até cantou mais vezes!
Metido a machão
Quis se exibir pras novas
namoradas.
Ora (direis) ouvir o
galo!...
Sobressaltado estou
Dentro da madrugada!
Abro a janela e pergunto
Contido e alucinado
Às gotas de rocio sobre o
campo:
Vem da garganta
Do canto rouco do galo
O brilho da aurora feito
espada?
Ou vem de mim
Que subverto a lógica
banalíssima da vida
Em coisa de impossível só
sonhada?
O canto do galo exorciza
Os últimos espíritos da
noite e
Corta com o fio de ouro da
alvorada
A cabeça das trevas na
calçada.
Ave Maria cheia de
graça...
A vida segue banalíssima
Para além do galinheiro e
do quintal.
O galo tem suas penas e eu
as minhas.
O galo tem o seu canto e
eu também.
O galo não canta no meu
poema.
Apenas canta no quintal.
SONHO PENDULAR
Quero Petrópolis em meu
poema
Mas o que vem é Londres
E minha calma espedaçada
em suas ruas.
Dorme a rainha de neve
Enquanto eu sonho estranho
sonho pendular.
Minha irmã desperta em
outro canto de Inglaterra
Diz qualquer coisa e sai
Vai passear...
Adeus, minha irmã!
A matemática é tão
perfeita
Que até me dá vontade de
chorar!
Dirijo em mão inversa
Enquanto ousadas são as
serras de Petrópolis
Que vestidas como noivas
Não querem se casar...
CÃO
DE ESTIMA
I
Com que cansaço chegarei
Ao meio deste século
Se chegar.
Com que tédio.
‘Mas era tão jovem e forte
Na virada do milênio’.
Tinha certezas
Que não reconheço mais
Na face do espelho –
Aquele estranho eu
Que eu não sou.
O tempo é crudelíssimo
Com os filhos de Adão.
Melhor é ter morrido jovem
Depois de fazer tudo que convinha.
‘Foi tão esbelto’ – dirão – e
‘Fez-se tapera o que
Na carne era mansão’.
II
O poeta só se eterniza no poema.
Fora dele envelhece e morre.
Morrer é sublime.
Envelhecer é bonito.
Eu sempre achei.
Melhor idade é eufemismo?
Melhor
Era não ter escrito nada
E ter vivido a vida possível
A aventura possível
O amor impossível
A alegria (moderada)
Quando impossível é não querer
Não desejar
Não amar
O que se ama.
III
O poeta virou uma fotografia.
Foto e grafia.
Saberão que ele foi tantos?
Alguém fecha o livro.
Cala o poeta
Dentro do livro.
Dentro do livro
Seu coração ainda pulsa
Mas as palavras ficaram cansadas
Caíram em desuso.
O livro ficou velho.
Só a emoção antiga
Porque demasiado humana
Voltará molhada
Como beijo apaixonado de amante.
Outra vez acontecerá a chuva
Da noite em que se escreveu o poema.
O poeta se levantará ressurreto.
No coração de alguém haverá riso e
festa.
Haverá vinho e vida.
Haverá brinde e lágrima.
Haverá valsa e canto.
Haverá...
IV
Refeito
– não mais refém –
a quem direi
no ano dois mil e cem
o que vi e vivi
no começo deste que é apenas um
de meus dois séculos?
em que língua das tantas que falei
em que português direi
o que aconteceu
uma noite em Manaus
quando voltávamos de um jantar
e o carro da frente
displicente
mais que veloz
feroz
atropelou
um cão
– cãozinho –
e passou
passamos e
não (ninguém) paramos
e o pobre cão
– cãozinho –
ficou
por cerca ou mais
de cinquenta anos
agonizando
dentro de mim
para ser libertado
ainda que tardio
em Minas Gerais
na asa de um poema...
a quem direi?
V
Esperaria o meio deste século
E até sonharia
Seu excedente fim
Se não morresse jovem
Se não morresse
Tantas vezes
Como um cão de estima
Na rua abandonado
Atropelado pela vida.
Oh ter sido
Para sempre
Aquele
O de outrora
A parar com a mão o tempo
No espelho
Onde hoje vejo e não me vejo
Claro e lúcido.
ESTAÇÃO DA LUZ
Aguda é a chuva
Que cai sobre a cidade e a
Estação da Luz.
Vazio o pátio é palco
Para os pingos que na poça
Tamborilam e dançam doidos
Alucinada dança tribal.
Agulhas pluviais tecem
infinitas
Roupa nova para o mendigo.
Gotas brilham no asfalto
(Como atrizes em cena
Sob os holofotes)
No segundo em que
atravessam os faróis.
A CASA
A casa respira
A casa pulsa
Como um coração...
Está viva!
Suas paredes falam
Sentem.
Pelas artérias
Da casa
Corre um fluido
Mais precioso
Que sangue
Na veia de homem.
Bomba a casa
Em seu cansaço de
Existir tão viva
Em seu desejo de
Explosão.
Como um animal gigante
Respira
Fundo
Respira...
Desperta que está
Nesta hora da noite
Em que todos
Dormem.
Palpita
A casa
Como um relógio
Como se fantasmas
Ali vivessem. Mas
Fantasmas não há
Nem dentro nem fora.
Há apenas algo
Em suas paredes cimentadas
A mover-se
– indiscreto enigma –
Supondo-se
(como os que dentro da
casa dormem)
Qualquer coisa mais que líquida
ou onírica:
Delirante.
Lá fora
Sente a casa
– sem sentir –
O vento a bater
E a rir...
Não vai ruir
Edificada que está sobre a
rocha
Enquanto folhas caem
E o tempo passa.
A casa
Guarda os que respiram
Dentro de seu pulmão
imaginário
Dentro de seu pulmão
Que também respira
Audível
Mais friamente sonoro
Mais terrivelmente
agonizante
Que um doente terminal.
Por invisível caminho
Corre dentro da casa
Um rio secreto
E sua fala oblíqua...
Segue a nau plantada
– noite afora –
Levando
Corpos dormentes
E mentes
Igualmente adormecidas
Blindadas de calefação
E carinho
De pesadelo e sonho
De toda a contradição da
vida.
GATOS NO CIO
Os gatos no cio
Fazem barulho no telhado.
Não. Fazem barulho
Debaixo da janela...
Fica melhor dizer
Que é no telhado.
Os gatos no telhado
Fazem barulho no cio.
Pardos a noite engole-os
um a um...
Grande é o silêncio que se
segue.
NAVALHA
Não
sabem que o amor fala por si?
Que
os olhos dos que amam são bem mais
Acesos,
eloquentes e jamais
Se
cansam de brilhar e de exibirem-se?
São
como preciosos diamantes
Ainda
que na dança perigosa
Navalha
corte o rosto de quem goza
Amor
delicioso de amantes!
Direis
que nunca soube o que é amar
Quem
tendo olhos deixa-os fechados
Para
os prazeres desta vida e mar
De
rosas que ao primeiro amor nos vêm!
Pois
o amor na vida põe seus fados
Mas
têm mais vida aqueles que o têm!
FABIANO, Antonio. NAS PONTAS DOS
PÉS. Mossoró-RN: Sarau das Letras Editora, 2015.
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