PREFÁCIO
Por qué los árboles esconden
el esplendor de sus raíces?
Pablo Neruda
Cancioneiro
da terra
é o terceiro livro de poesia que Antonio Fabiano traz a lume, depois de Sazonadas e de Girassóis noturnos, publicados no Rio de Janeiro, em 2012, pela
editora Taba Cultural. E seriam muito mais, não fosse o próprio autor seu
crítico mais impiedoso, rasgando e lançando à fogueira centenas de poemas que
só poderiam ser de fato avaliados por uma visão exterior. [1]
Esse Cancioneiro
escapou às chamas, para o enlevo daqueles que apreciam poesia e, especialmente,
de quem conhece seu autor. E, certamente, o poeta o salvou por ser este um
inventário de seus mais caros afetos: o canto telúrico à terra da qual teve de
se ausentar.
Dividido em sete segmentos (da língua dos anjos
até as línguas avoengas), Cancioneiro da
terra revela um poeta em pleno domínio do verso, pois o primeiro desses
segmentos é composto por quatorze sonetos metrificados em decassílabos. E a
primeira impressão que se tem desse processo metrificador é que o poeta quer
provar o domínio de uma técnica de versificação, qual aqueles modernistas que,
depois de cometer “desvarios” como os conhecidos “Sapos” de Bandeira, voltaram a
escrever poemas rimados e comportadamente metrificados; sonetos, inclusive.
Mas essa impressão se desfaz no conjunto do
livro. Não por aqueles poemas em versos livres, mas exatamente por outro de
forma fixa: o canto real [2] em que o
poeta fixa a tradição, para dizer que ela morreu e ficou circunscrita àquela
forma antiga de fazer poema.
Antonio Fabiano não precisa provar nada, pois se
assim quisesse, já o teria feito em Sazonadas
com o soneto “Infinito”, digno de figurar entre o que de melhor se produziu no
gênero. E mesmo um poema longo como “Serpente emplumada”, de Girassóis noturnos (em versos livres que
se estendem por mais de vinte páginas), impressiona pela contenção do verso.
A forma fixa, então, se explica por uma
necessidade da estrutura do livro. A primeira parte, composta de sonetos, tem
como fim: a) a fixação do sujeito poético: primeiramente, na terra em que
nasceu, a Paraíba; depois, na qual foi transplantado ainda criança, o “Rio
Grande”; b) a descrição da terra que, afinal, é indivisa: “Nordeste é o mundo
inteiro!” (Poema para Francisco J. C. Dantas); c) o inventário das tradições de
sua terra (religiosas, culturais...).
Já o canto real (de tradição antiga) é a forma pela
qual o poeta evoca os seus (nossos) antepassados. É um modo de expressar a
tradição das fórmulas mortas. E é a partir daí que o sujeito é desterrado do
seu chão: “Minh’alma deslizou por sobre os mares”.
Esse deslocar errante em tudo contrasta com a
primeira parte (Em línguas de anjos) onde estão fincadas as raízes do sujeito
poético (por nascimento ou transplante), e reforça toda uma instabilidade do ser já explorada nos poemas em verso
livre (em línguas de rios e em línguas de asas, principalmente).
E aqui vale uma observação sobre o tempo do
livro. Do conjunto dos quatorze sonetos do segmento “em línguas de anjos”,
apenas os sete poemas iniciais expressam-se no presente, predominando o
passado, a partir do oitavo, e assim no restante do telúrico Cancioneiro.
E é exatamente em decorrência da predominância
do tempo passado, que dizer de Cancioneiro
da terra que ele é um livro telúrico seria apenas uma tautologia, pois é esse
passado que lhe empresta uma sombra de melancolia. Assim, o Cancioneiro não é apenas telúrico, mas
de um telúrico melancólico, pois esse livro vai muito além de um canto de
exaltação ao solo: “Em chãos da Paraíba eu nasci, / Mas cedo vim morar no Rio
Grande.” Ele não é telúrico apenas no sentido de que é um poema enraizado na
terra das lembranças do poeta: “Lancei raízes nesta terra Norte... / Daqui sou
filho — alma e coração!”
Isso porque ao inventariar as tradições
ancestrais, na busca de suas raízes, o sujeito poético dá-se conta de que é ele
próprio um desterrado: “Expatriado é o que eu sou” [...] “Folha de árvore que
se soltou” (Talvez os mortos voltem). Assim como em todo o segmento “em línguas
de asas”, em que ser degredado não é atributo apenas do sujeito poético, mas do
sujeito moderno, embora sem menção explícita a ele, que perdeu suas
referências, suas raízes; que não é mais capaz de fincá-las em lugar algum:
“São as filhas degredadas do universo” (A chegada).
Dessa forma, telúrico (no sentido do livro)
significa uma comunhão com a terra; não a prometida, mas a perdida, onde as
raízes que de fato importam são as dos ancestrais (avoengas), pois, diferente
dos versos de Neruda, esse Cancioneiro
não esconde suas raízes. Elas continuam lá; as árvores é que feneceram, como em
“Talvez os mortos voltem”:
“Talvez os mortos voltem
Com suas ilusões de vivos
E eu os ouço à noite
Em seus gemidos.
Nada sobrou dos bens antigos
[...]
Bem inventariados em papel
Que agora as traças comem”.
Outro poema que expressa bem esse telúrico
melancólico é “Perfeição”:
“[...]
O que sei e guardo
É o frescor da manhã
O canto das rolinhas
O cheiro do curral
Leite quentinho
E meu indizível avô
Ainda vivo.
Mas outro nome pra isso é perfeição!
[...]”
Isto
é, a “perfeição” ficou no passado, perdeu-se no tempo da infância, de quando o
avô ainda estava vivo.
E ao circunscrever seu Cancioneiro (no caso desse poema, a “perfeição!”) no passado, o
poeta também se insere em uma outra tradição (a que mais importa agora): a
tradição poética. Pois é também nesse poema no qual se percebe aquilo que se
convencionou chamar de intertextualidade, explícita no primeiro verso, numa
clara referência a Drummond: “A lembrança de minha terra dói”; ou ao rio que
passa na aldeia de Pessoa: “E agora eu sei que o sol das outras terras / Não é
/ Como o daqui”.
Parafraseando nosso poeta maior, qualquer leitor
(desterritorializado ou não) pode ler este Cancioneiro
e dizer: “minha terra é apenas uma fotografia na parede mas como dói”.
Wilson Azevedo *
[1] Refere-se ao episódio de julho de 2012, o qual narrou-se em bem-humorada crônica, aqui mesmo no blog, sob o título de “Julho em Chamas”:
http://antoniofabiano.blogspot.com.br/2012/07/julho-em-chamas.html
[2] Canto real (chant royal) é uma complexa e rara forma
fixa de origem francesa, composta geralmente de cinco estrofes de onze versos
com o mesmo bordão final e um remate (envio ou oferta), além de rigorosa
metrificação e rimas determinadas. Surgiu no século XIV e foi bastante
cultivado até o século XVI. É uma espécie de variação da balada e absolutamente incomum em nossos dias. (N. do B.)
* Wilson Azevedo é intelectual potiguar e crítico literário.
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