Aos 33 devo estar pronto para morrer crucificado. Ou queimar poemas. Por isso, depois do meu aniversário deste ano, tomei a resolução de acertar as contas de vez com o meu passado, ao menos com o meu passado de poeta. Revisitei pastas antigas de poesia... E eram muitas, porque eu escrevia compulsivamente em fins dos anos noventa e virada do milênio. Agora estou antigo lá, jovem e imaturo lá, transformado para sempre em cinzas. Poemas revisitados causam estranhamento algumas vezes. No meu caso, escrevê-los foi um exercício salutar, mas felizmente nunca os publiquei e, embora muitos os lessem, eu não os dava a ninguém, salvo raríssimas exceções. Minha mania de escrever livros inteiros em um só dia ou em uma só noite, acabou. Não é coisa de gente séria escrever tanto assim! Neste início de julho lembrei-me do amigo Wilson Azevedo, para mim “Zé”, intelectual e crítico literário que se admirava da produção prolífica do “Anto”, e perguntava irônico se eu psicografava. Ele viu, tantas vezes, nascer livro após livro, da verde pena do poetinha. Aos 33 entendi que nem tudo que se escreve presta ou deve ser guardado. Alguma coisa deve ser guardada, por algum tempo. Mas não tudo, nem para sempre. O poeta não pode se levar muito a sério – eu não me levo! – mas poesia é coisa séria, quero dizer, reclama responsabilidades. Desgostei gravemente do que escrevi antigo, quando jovem e imaturo lá. Grato por ter escrito, mais grato ainda por não ter publicado, e grato ainda por poder dar cabo disso tudo agora de uma vez por todas. Resolvi, então, queimar meus livros inéditos. Mais uma vitória sobre mim mesmo, sobre o meu gênio e teimosia de levar adiante o que não tem remédio. Passei noite inteira abrindo pastas, resoluto, separando papeis... Ó feliz semana!... Crescente alívio e euforia de estar devolvendo ao nada aqueles versos de outrora... De manhã tive vontade de espalhar os papeis sobre a grama verdinha do claustro. Certamente cobririam tudo! Eram muitos, mais do que eu podia carregar sozinho! Faria uma bela foto de recordação. Mas isso ia, indevidamente, atrair a atenção dos irmãos e há entre nós o chamado “decoro carmelitano”... Seria extravagante demais! Melhor nem tentar!... Então levei todas as peças para um lugar do quintal, e a quantidade de papeis era tamanha que assombrou os irmãos que trabalhavam àquela hora. Um deles me ajudou a espalhar tudo, de maneira que se ateasse fogo rapidamente, quando eu riscasse o fósforo. Outro irmão lamentou que eu queimasse tal registro, deveria ter pra mim ao menos algum valor sentimental. Ando pouco sentimental, ultimamente. Outro frade caçoou de mim e se pôs a inventar nomes de mulheres que, enquanto ria, fingia ler nos papeis, como se dissesse que eu almejava queimar antigos amores para me tornar santo de vez! Bobagem. Em minutos era já imenso o fogo, julho todo em chamas de uma quase meia vida inteira!... Agora é um alívio enorme não ter mais aqueles versos e poder começar do zero... Quase do zero, pra ser sincero! Os maiores poetas do meu país levam décadas para publicar livros fininhos de poemas bons. Era imoral escrever tanto assim! Mas foi bom ter escrito. Não julgo a poesia que virou fuligem, nem julgo a mim mesmo que a escrevi e a queimei. Existiu para o tempo que existiu e basta! Há muitos anos eu me escandalizei de uma amiga poetisa que ficou com raiva de um amor e rasgou todos os seus versos. Eu não fiquei com raiva de nada, mas posso finalmente entendê-la. Rasgar ou queimar poemas é tão libertador! Estou muito contente! Não destruiria estes versos se estivesse convencido de que eram realmente bons... Anotarei abaixo alguns dados dos livros, porque prometi a Cláudia que o faria, e queria também guardar esta lembrança que já não ameaça a reputação do poeta atual. O inventário de bens inúteis e perdidos para sempre é o que se segue, nesta lista de títulos já conhecidos de alguns amigos que leram os livros e que pateticamente guardarão só a lembrança do que não existe mais. Os poemas que estavam em arquivo digital também foram deletados, se alguém por acaso quer saber. E que ninguém lamente nada. Eu não lamento. Aos 33 estou pronto para morrer crucificado. Ou queimar poemas...
Segue-se o cemiteriozinho de poemas...
Precedidas de cruzes estão as obras incineradas. E, de asteriscos, as poucas que foram conservadas. De cruzes e asteriscos somente as que foram parcialmente conservadas.
+ Uma coleção de 106 poemas, dos quais salvei apenas um, bem remoto, pelo simples fato de que uma vez ao lê-los mamãe gostou mais dele (“O beija-flor”).
+ Uma coleção de 118 poemas, igualmente avulsos e de minha primeira produção.
+ Primeiros Sonetos – 48 peças, das quais salvei apenas duas de 1999 (“Encanto” e “Mudei-me para as alturas!”).
+* Cancioneiro da Terra – salvo parcialmente. Este seria o meu primeiro livro de poesia, a ser editado em Natal, em fins dos anos 90 ou início dos anos 2000. Felizmente morreu no prelo. Quero reescrevê-lo. Por isso foram salvas algumas peças.
+* Versos de Arribação – salvo parcialmente. Todos escritos em 09 de junho de 2000.
+ Livro do Canto Real – sob a homônima forma fixa de origem francesa, experimentais de 1999. Salvei quatro peças, uma das quais se tornara bastante conhecida e celebrada naquela ocasião...
+ Ósculo – um livro de sonetos, mais de 60, que escrevi e reescrevi algumas vezes, dedicado a Florbela Espanca. Versos muito experimentais e ruins, poemas sentimentais e verborrágicos, dos quais salvei duas ou três peças, menos piores, para refundição. Versos decassílabos, predominantemente heroicos...
+ Auto da Ventura – 31 poemas de 1999. Era um livro em que os poemas disputavam entre si, alternadamente. Um heterônimo meu em formas fixas, outro totalmente livre. Ambos se contaminavam e se fundiam ao final do livro, que terminava com uma página em branco.
+ O Livro do Riso – 22 poemas. Todos escritos na manhã de 08 de julho de 1999. Este livro era dedicado aos meus irmãos.
* O Livro das Visões – este eu o salvei integralmente. São 42 poemas “concretos”, por assim dizer, de julho de 1999.
+ Alvorada – 32 poemas escritos em Currais Novos, em 03 de fevereiro de 1999.
+ Ele – 28 poemas de caráter sebastianista, escritos em 2000.
+ Livro de Eus (I) – 23 poemas egocêntricos de 05 de setembro de 1999. Tinha por epígrafe isto que escrevi: “Sou meu porto, meu mar, navio e âncora...” Por aí se pode deduzir o desastre do livro, não obstante os apontamentos de Elizabeth, que guardei, vendo coisa boa nos dois livros.
+ Livro de Eus (II) – 18 poemas de igual feição, datados de 09 de setembro de 1999.
+ Livro de Eus (III) – seus poemas foram dispersos antes deste julho, quando me cansei do projeto.
+ O Livro da Insônia – 21 poemas escritos em 06 de setembro de 1999, dos quais salvei apenas um dedicado ao meu amigo Theo.
+ In Di Gentes – 28 poemas de um curioso livro escrito entre os dias 02 e 03 de outubro de 1999. A voz poética era a de um mendigo, e coincidência ou não, na noite em que eu encerrava o projeto havia um pedinte dormindo em minha porta. Guardei apenas os apontamentos de Elizabeth.
+ Livro das Sinfonias – 26 poemas de 1999 e 2000, dos quais salvei apenas um poema de um verso de 26-02-2000, além de um desenho feito para o livro, do ilustre artista plástico Assis Costa.
+ Folhas Soltas – 13 poemas de 1999, absolutamente desnecessários.
+ Aos olhos da manhã – 17 poemas matutinos, de 1999.
+ Lume Azul – 34 poemas escritos em 12 de outubro de 1999.
+ Aqui Viagem – 24 poemas de 1999. Expressava uma ideia de movimento, sob a perspectiva de alguém parado dentro do móvel.
+ O Céptico – 28 poemas do ano 2000. Era um livro muito contrário a tudo em que eu acredito. Escrevi da perspectiva dos meus amigos intelectuais, daquele tempo, que se diziam ateus.
+ Ópio – 35 poemas do ano 2000. Era um livro ridículo que começava sóbrio e terminava bêbado.
+ Livro das Variações – 32 poemas escritos na noite de 26 de maio de 2000.
+ Livro do Amor Passageiro – 28 poemas escritos em 05 de junho de 2000.
+ Livro do Outro Amor – destruído antes deste fatídico julho.
+ O Penedo Místico – 22 poemas do ano 2000, dos quais salvei apenas um.
+ O Tempo e o Verso – 26 poemas escritos em 15 de junho de 2000.
+ Pluviais – 20 poemas. Era um livro que eu gostava e que tinha como epígrafe a estrofe de um poema do meu amigo Theo.
+* Livro de Haicais – salvei algumas estações dos diminutos poemas de inspiração japonesa, foram preservados cerca de 50.
+ A Cor Original – destruído antes deste fatídico julho.
+ Piadas e Plágios Originais – cerca de 15 poemas sem graça, mas que se pretendiam de “humor”, onde figuravam versos ridículos como estes que satirizavam outros poetas, especialmente do Romantismo brasileiro: “Se eu morresse amanhã... / Ai, se eu morresse amanhã... / A véspera da minha morte seria hoje!”; ou se contava a história de um homem fortão que morrera engasgado com um pedaço de maçã do amor etc.
+ Uma coleção de Elegias – dos quais se salvaram um ou dois poemas de valor sentimental.
+ Antropoesia – 24 poemas de novembro de 2000.
+ Estelares – 12 poemas de 2000. Não abandonei a temática, reincidente na poesia atual, como se pode ver...
+ Hora do Silêncio – 32 poemas de 2001. Poemas de verdadeira estagnação literária.
+ Gitano – 10 poemas de 2000 a 2002. Dois ou três foram reescritos e assim salvos.
+ Lapsos Lapsos Lapsos – 19 péssimos poemas de 1999 e 2000.
+ Inspiração – 16 poemas (pouco inspirados) de 1999 e 2000.
+ Repúdio – 8 poemas amargos e reprováveis.
+ (Poesia Finissecular) – Não sei qual devia ser o título, tratava-se de uma coleção de 14 poemas escritos no último dia do milênio, entre as 14:47h e 23:37h de 31 de dezembro de 2000. Fetiche de uma mente desocupada...
+ Pele Vermelha – 15 péssimos poemas de 2002.
+ Foram queimadas ainda 187 peças avulsas, poemas com datas diversas.
+ Foram incineradas mais sete coleções sem títulos, com os respectivos números de poemas: 21, 21, 14, 17, 28, 18 e 16.
+ Encontro-me de Dois com Pessoa (para Fernando Pessoa, eles mesmos...) – um extenso poema verborrágico de 18 páginas.
+ Algumas dezenas de poemas escritos em inglês e outras línguas. Salvou-se em áudio “Hermosa China”, um poema que celebrava o retorno de Hong Kong ao seio da pátria chinesa em 1º de julho de 1998 (data do poema) e que foi divulgado em várias emissões da Rádio Internacional da China (Pequim) nos dias 03 e 06 de agosto de 1998. Guardei ainda outro poema, em espanhol, que me tocou profundamente ao relê-lo, intitulado “Ancha Pelea” de 26 de março de 2001.
* Poupei com certa ressalva um livro-diário, escrito em língua inglesa e bilinguado em português (prosa poética), datado de maio de 2000.
* Salvei com algumas restrições o longo poema “Nos corredores de uma alma” de 03 de junho de 1999. Originalmente era um conto e talvez deva voltar à sua primeira forma.
* Salvei “Todos os Relógios do Mundo (Linguagem das Horas)”, um longo poema, de forma pouco usual na minha escrita, datado da noite ou madrugada de 17 de setembro de 1999.
* Foram preservados uns poucos versos que eventualmente migrarão para livro do futuro ou terão o mesmo fim dos outros.
Fabiano, meu querido irmão e companheiro de muitas insônias,
ResponderExcluirme sinto menos culpado com essa notícia, porque senti sempre certa culpa diante da minha lentidão dos versos: 10 anos pra escrever um livro, meses pra dar cabo de um poema de uma estrofe só, etc. ver essa lentidão ante sua rapidez era angustiante. havia coisas muito boas entre seus poemas, acho que hoje a maturidade nos permite compreender o tom de "exercício" que essas coisas tiveram. muito do que escrevemos deve mesmo ser esquecido. o crivo do bom leitor certamente salvou o que merecia salvação.
às vezes ainda me perguntou se eu não deveria incinerar minha obra inteira antes de morrer, inclusive o que faço hoje, mas assumo que certa vaidade me proíbe de o fazer. no entanto, confesso, morro de medo de que possa sobrar algo de minha lavra que eu não aprovaria para ser visto.
sua maturidade é um ganho.
um grande abraço!
Pelo amor de Deus! Correu um sério risco de incendiar o Convento, pois não são poucos os versos!!!
ResponderExcluirFilhinho querido, Deus lhe abençoe.
ResponderExcluirVocê chegou à idade na qual Jesus consumou a missão de redimir a humanidade pelo sacrifício da cruz. É realmente uma boa ocasião para fazer síntese da vida, redimindo o próprio eu, esquecendo o que ficou para trás e lançando-se para frente, como fez São Paulo, buscando conquistar Àquele que primeiro nos conquistou.
Parabéns pelo despojamento! Que você prossiga com determinada determinação no exercício do nada a fim de alcançar o TUDO.
Agora falando “subjetivamente”: fiquei com muito pesar de saber que queimou tanta coisa que eu não tive a oportunidade de ler...
Um abraço carinhoso e a comunhão nas orações.
Chega a ser revoltante, Sr. Poeta, o seu surto! Não devia ter feito isso, que é um dos maiores escândalos da literatura potiguar, você que é também um dos seus maiores poetas! Conheço pessoas que conheciam na época os poemas e diziam que era bom. Não foi uma atitude precipitada? Acho que não devia ter feito isso...
ResponderExcluirEu não estava surtado, Sr. Anônimo, muito pelo contrário, foi um acesso de lucidez, senso de responsabilidade, pois escândalo é publicar coisa ruim. Obrigado pelo alucinado elogio de que sou um dos maiores. Já se vê bem quem está surtado... (risos)
ResponderExcluirAbraço forte!