Desperto no meio da noite e me lembro, sobressaltado, do que eu havia esquecido e há dias queria recordar para dizer à minha amiga Cláudia, minha irmãzinha.
Naquela tarde de dezembro fomos surpreendidos por uma chuva. Das janelas de vidro da casa eu via sua chegada repentina, o ruído avassalador dos ventos, atropelando-nos. A ira da natureza magoada, ferida, chorava sobre as nossas cabeças.
Gotas d’água caiam do céu, translúcidas. Pareciam chicotes de cristal de um domador invisível, enlouquecido. Barulho crescente apoderou-se da cidade, como os passos de um gigante. Ou o mundo acaba, ou começa assim, pensei. Era, aquilo, como a gênese ou o apocalipse de nossos alucinados sonhos.
Eu olhava de dentro da casa a dança oblíqua das águas sobre a grama verdíssima do pátio. Uma escola de samba pluvial. Bicas escoavam lágrimas dos telhados, como se o inesperado tocasse trombeta e quisesse anunciar alguma dor secreta, infinitamente grande.
As horas contraiam-se de pavor, a solidão fez-se onça acuada quando o belo aconteceu: línguas de fogo cortaram os espaços, ribombaram os trovões maiores; e, simultaneamente, os granizos, pedras enormes, desceram quebrando as simetrias que fundavam a existência, a maciez da vida e das coisas de lá fora, a própria aspereza do mais humano medo.
Precipitadas sobre o pátio, não paravam nunca as brancas bailarinas. Pululavam, frenéticas, bem diante dos meus olhos. Atônito, eu esperava o fim do mundo já tantas vezes adiado. A beleza terrível nos visitara e eu cedi...
Era dezembro. Abri as portas e as janelas, para que entrasse a glória daquele dia. Saí indiferente aos raios que ameaçavam. Poderia morrer de beleza, naquele instante, pouco importaria. A surdez que me vinha dos trovões, e de tudo que rugia, era o meu melhor silêncio interior. Eu era, então, um filme mudo e antigo, sem quadrinhos de legenda.
Fiquei imóvel, até que se fizesse, em pianíssimo, calmaria fora. Sem medo ou sentimento algum menor. Arrebatado é o que se diz, ao menos por segundos, de quem vive epifanias.
Era isso que eu ia dizer à minha amiga Cláudia, na manhã seguinte, quando o seu mundo desabou, silenciosamente, dentro da noite de dezembro, e ela escreveu dizendo que sua mãe partira para sempre.
Aqui também imperava o caos... Nenhum vestígio sobrara da beleza que eu vira, terrível, um dia antes, a vestir a capital mineira. Com os restos da chuva, apenas escombros e fria nudez. Frenético barulho de sirenes, tetos quebrados, soluços, postes e árvores caídos...
Coisa tão grande e bela, a que nos visitou, haveria de cobrar seu preço, sim, em mundo tão pequeno como o nosso. Ainda que alguém jamais possa pagar por isso ou apagar o belo irreversível.
Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 6 de fevereiro de 2012.
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Para Cláudia Ahimsa
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