segunda-feira, 20 de setembro de 2010
“A DURAÇÃO DO DIA” (2010) – ADÉLIA PRADO.
Adélia Prado (Foto Divulgação)
“Sem avisos se mostra / a duração perfeita, / forma que de si mesma se acrescenta / e na mesma medida permanece.” (O vivente, p. 81).
“A duração do dia” (2010) é o mais recente livro de versos de Adélia Prado. Uma boa surpresa! Pelo título somos imediatamente levados a crer que, como nas obras anteriores, aí também se privilegiará a temática do cotidiano. E é o que acontece. Ao lado disso vem com acentuada força o seu outro bordão predileto, de teor religioso: a experiência de Deus. Esta, em “A duração do dia”, parece dramaticamente intensificar-se. É curioso o sofrível latente, na gozosa relação entre Deus e sua criatura (amada). O livro é dividido em grupos de poemas que se separam por citações em sua maioria bíblicas. Tais blocos não possuem títulos como nos livros anteriores. É uno o dia, transcorre ininterrupto. Letras santas ou falas norteiam-no, sutilmente, sem qualquer ruptura ou ideia de capitulação.
O poema de abertura já nos coloca diante de um “eu” que se esconde “no porão / para melhor aproveitar o dia”, “pra rezar, / agradecer a Deus este conforto gigante.” (Tão bom aqui, p. 9). O enfoque recai sobre o mínimo: “Eu só quero saber do microcosmo, / o de tanta realidade que nem há. / Na partícula visível de poeira / em onda invisível dança a luz.” (idem). Este paralelo “visível - invisível” atravessará “A duração do dia”, é um problema de fundo e moção na obra. Não se busca no entanto uma solução, frui-se o problema. Nisto, de fato, vemos que, se a predileção recai sobre o pequeno (mínimo), este é paradoxalmente potência motora do “dia” e tem matiz evangélico: “minha fortaleza é a da mostarda. / Um grão.” (O noviço e a abstinência de preceito, p. 44).
No primeiro momento desta obra, “As matemáticas suplantam as teologias / com enorme lucro para minha fé.” (Uma janela e sua serventia, p. 10). Ou, “Como oráculos bíblicos, / os paradoxos da física me confortam.” (Pensamentos à janela, p. 19). Visão romanesca da ciência quântica. Alternam-se luzes e lágrimas, reminiscências nostálgicas ou muito boas da explicitada mulher, a sombra de Deus aterradora e aprazível, as contradições do amor. Este livro não se exime de trazer-nos sobejados ecos de outros tantos da autora, diga-se de passagem. Tudo, porém, revestido de uma “coisa” nova (original), certo entretom em sua voz poética, algo sutilizado na maioria dos versos, mas bem perceptível ao leitor iniciado de Adélia Prado. Pode causar algum estranhamento, isso, mas é bom.
“Deus há! E pode que haja o diabo, / o que não tem é morte.” (Como um parente meu, um Riobaldo, p. 17). A presença da morte, pela sua aproximação ou memória dos que já se foram (ancestrais revivem), é reincidente no conjunto desta obra, mas nem de longe tem aí seu triunfo. Exceto em fala irônica (cf. Rua do Comércio, p. 48) ou de tentação (cf. Anjo mau, p. 71). A morte é “a que não existe.” (Epigráfico, p. 33). Ou, “Só morrem os muito velhinhos / que pedem pra descansar.” (Aqui, tão longe, p. 21). Ela é uma insistente sombra no “dia”, sem dúvida, mas tanto como o tempo é relativizada: “não se tem certeza de que vamos morrer, / (...) / São os relógios / o mais obsoleto dos inventos.” (Dádivas, p. 42). Todo o mais é cotidiano poetizado, metamorfoseado pelo maravilhoso de uma “memória dourada” que traz “mentira meio existida, / verdade meio inventada.” (Aqui, tão longe, p. 21). Não importa se faz noite neste “dia” de Adélia Prado: “Estrelas na escuridão são ícones potentes.” (Pensamentos à janela, p. 19). Importa “que amanhã seja outro dia, / igual a este dia, igual, / igual a este dia, igual.” (Aqui, tão longe, p. 22).
No livro aparece ainda o drama em palavras da palavra que não (?) acontece. Em face da luz eterna “Quis dizê-la e não pude, / ingurgitada de palavras / minha língua se confundia. / (...) / Aquiesci gozosa, / a língua muda, / a folha branca, / a mão pousada” [o poema “termina” sem ponto final] (Divinópolis, p. 13-14). Esse drama é a luta da “escrivã” (poeta) pelo sentido mais profundo das coisas. “A beleza transfixa, / as palavras cansam porque não alcançam, / e preciso de muitas pra dizer uma só.” (A escrivã na cozinha, p. 25). Sabe-se desde sempre que “as palavras são dúbias” (O clérigo, p. 50). Luta-se com elas, como Jacó lutou com Deus (se me permitem essa imagem bíblica). Diz-se: “Perdi a conta das vezes / que retomei esta escritura / sem avançar de sítios pantanosos, / (...) / Foi ontem e já tem cem anos, / faz um minuto só, / foi agora e foi nunca, / jamais aconteceu, / não há, não houve,” porque, para além de brincar com a atemporalidade das melhores letras, no “dia” de Adélia Prado “o que não tem palavras não existe.” (Nem parece amor, p. 92). Note-se ainda o problema da palavra, complexificado, em “(...) língua / para todas as línguas traduzível / sem prejuízo” (cf. Querido louco, p. 93).
Se nos deparamos com certa insuficiência das línguas ante o inefável, é natural que até as matemáticas do primeiro momento não mais possam dar conta do milagre em evolução: “Neurônios não explicam nada.” (A escrivã na cozinha, p. 25). E o que dizer de versos como estes: “Como o cão, minha língua ladrava / à aterradora beleza.” (Constelação, p. 87)? O drama da palavra, em face do indizível, é vivido em modulações de gozosa agonia, como todo o mais deste “dia”. Tal ira aplaca-se, no entanto: “E só Vos dei palavras, ó Deus santo. / Quando achei que exigíeis / cabeças sanguinolentas, / um punhado de versos aplacou-nos.” (O penitente, p. 65). A conclusão não poderia ser outra: “Toda compreensão é poesia, / clarão inaugural que névoa densa / faz parecer velados diamantes.” (Esplendores, p. 88). Sobrevive-se.
O sofrimento é também lugar comum no “dia” duradouro deste livro: “Avia-te para sofrer – conselho pra distraídos –, / cristãos já sabem ao nascer / que este vale é de lágrimas.” (A escrivã na cozinha, p. 26). Esta agonia – sempre gozosa – de ser ou existir no mundo é, inclusive, partilhada por solidário Deus. O sofrimento não parece ser anômalo ao “dia” adeliano, é parte de seu mistério. Como o medo: “Ter medo é saber do inaudito, / ninguém até hoje explica / por que batem as pálpebras.” (Epigráfico, p. 33). Em todo o contraste vivido na obra, confessa-se sem pejo: “estou feliz e dói.” (Olhos, p. 29). Dói, mas nunca em sentido totalmente negativo. Dói dor saudável e previsível, como a dor de um parto.
É, pois, a consciência ou suspeição de um “plus” divino, o que dinamiza esta obra, movimentando personagens e demais coisas. Isso transubstancia toda a realidade habitual, deifica o mundo das rotinas e chega, com similar naturalidade ou estático espanto, aos sacrários e às cozinhas da existência humana. Igual.
O mundo com todos os seus desvãos é a passarela basilar das múltiplas formas de “cotidianização” deste “eu” lírico, na obra de Adélia Prado. Inclusive o divino é “cotidianizado”. Assim, Deus muitas vezes é feito à imagem e semelhança do homem, ou talvez devamos admitir que o humano é mesmo divino e feito de Deus. As duas leituras são possíveis na obra, não há aí qualquer incompatibilidade. Não obstante alguma coisa, este mundo/tudo (em seu viés original) é assentido: “que bom estar no mundo / a esta hora do dia! / De maneira perfeita tudo é bom” (Dádivas, p. 42).
No “dia” põe-se então holofotes sobre o que já está aí. Nada de grande se inventa, maravilha-se do que há. É a trama das coisas que se enfoca, quase sempre a partir da ótica da mulher, seja a perspectiva feminina ou virilizada. Esse mundo é, portanto, palco da ação de Deus (às vezes “deus”), que se apresenta ora amoroso, terno, ora terrível em seu poder e rigor antigos. Aqui a experiência de Deus é a experiência do sentido radical da existência/vida, sem qualquer divórcio entre sagrado e profano. Se o Deus da obra é onipotente em suas epifanias, cuja glória até chega a doer, ele também é um Deus carente: “É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor / como se fora eu Sua mãe e O rejeitasse.” (Consanguíneos, p. 99). Há aí sobejante cumplicidade: “Jungidos como estamos em formidável parelha, / enquanto Ele não dorme eu não descanso.” (idem).
O corpo tem neste livro a mesma visibilidade nunca preterida na vasta obra adeliana: “Este é meu corpo, / corpo que me foi dado / para Deus saciar sua natureza onívora. / Tomai e comei sem medo, / na fímbria do amor mais tosco / meu pobre corpo / é feito corpo de Deus.” (A necessidade do corpo, p. 28). Dir-se-ia, em jargão tomista, que este corpo é transubstanciado, torna-se corpo de Deus, hóstia viva (não por acaso aí também figuram as palavras evangélicas da ceia eucarística, ditas em cada missa: “tomai e comei”). O corpo é sacralizado pela presença/ação de Deus. A carne (visível) dá sentido ao mais sagrado (invisível), e o que não alcança isso é vão: “Contra o que se sente / toda filosofia é mesmo vã, / o livro é sagrado / quando o que apregoa / é revelado na carne” (Epigráfico, p. 33). A carne não é prescindida pelo esplendor epifânico. O ápice deste é, mais que tudo, encarnação!
“A duração do dia” sugere ainda reclusão: fala-se a partir do porão, de dentro da casa, de dentro de si, de trás das vidraças, das não poucas janelas etc. Porém nunca se insinua aprisionamento, tudo se reveste de serenidade e até resignações heróicas. Quando há sentimento diverso, este participa do que chamei de “agônico gozoso”. É o bom multifacetado nas contradições de um mesmo “dia”.
A condição humana é exposta de modo desconcertante em toda a obra de Adélia Prado. A grande extensão do mistério humano se mostra em dramático teor psicológico igualmente profundo aqui. Bastam estes versos para ilustrar o que se diz: “Quem me dera os lobos fossem fora de mim, / bastava um pau e os afugentaria. / Mas seus fantasmas é que uivam inalcançáveis.” (Alcateia, p. 73). Dentro. E fundo.
Alvíssaras chegam na hora boa. Neste livro como em outros da autora, a misericórdia se mostrará intacta e a salvação vaza para todos os lados, ainda que custe a suspensão do “dia” no sono do Cordeiro/pastor e esquecimento dos pecados: “A salvação, mais que viável, / é certa para santos e réprobos.” (A suspensão do dia, 78).
Pode não agradar a todos (o que é normal), mas este é um livro maduro, bom, de quem está muito segura do que faz e sabe o que quer. Alguns de seus poemas erigem-se tão acima da média, que podem figurar em qualquer antologia. Adélia escreveu a poesia dela (nossa), como ela mesma (a poesia) pediu para ser escrita. Sem artifícios. Sem enfeites. Só poesia. Nuinha. Três versos do mesmo livro, aplicados aqui a nosso propósito, serviriam para sintetizar em clímax “A duração do dia”: “a lâmpada de repente partindo-se / com estrondo e multiplicado clarão, / tudo sequencial, tudo no mesmo dia!” (Credo, p. 31).
Dancemos com essa luz. Amém.
(Bibliografia das citações: PRADO, Adélia. “A duração do dia”. Rio de Janeiro: Record, 2010.)
Antonio Fabiano
Blog: www.antoniofabiano.blogspot.com
E-mail: seridoano@gmail.com
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