Se fôssemos reconstituir a cena, seria algo mais ou menos assim: um homem, suplicante, dirige-se a uma cobrinha de nada e lhe ordena que ela pare de serpear, a fim de que ele copie as cores de seu corpo ofídico, para dali fazer um belo colar e dar à sua amada.
Patético? E se eu disser que é uma joia, talvez o primeiro poema genuinamente brasílico de que se tem notícia?
Quem gosta de música popular brasileira (MPB), já se deu conta de que estou falando de algo que lembra aquela canção do Caetano Veloso:
“Pára de ondular, agora, cobra coral:
a fim de que eu copie as cores
com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar
à minha amada,
a fim de que tua beleza
teu langor
tua elegân...cia
reinem sobre as cobras não corais.”
É a “Cobra Coral”, do CD “Noites do Norte”. Mas talvez você não saiba ou tenha esquecido que a letra – o belo poema – é de Waly Salomão, publicado em seu último livro, “Tarifa de Embarque” (2000). Dele, sim ou não? Dele, sim e não!...
Waly Salomão (1943-2003) lia Michel de Montaigne (1533-1592). E foi de Montaigne que ele “raptou” esse trecho, que nem é de Montaigne. Aliás, permita-me uma digressão, Montaigne costumava se apropriar do pensamento de alguns autores célebres, sem demasiada preocupação de, digamos assim, citá-los “explicitamente”... Com Waly, então, temos um caso de bom discípulo desse mestre! Mas fiquemos com a cobra coral... Em Montaigne, ela era simplesmente “serpente”. E o poema ficou conhecido como “chanson de la couleuvre”, isto é, “canção da serpente”. Acreditem ou não, esta canção teria sido fundamental para provar, no século XVI, que os nossos selvagens – índios canibais brasileiros – eram humanos (!). Segundo Montaigne, alguma vez acusado de ter falsificado esta letra, o fragmento poético – citado em uma de suas importantes obras (Ensaios, I, XXXI, Dos canibais...) – lhe chegou aos ouvidos por meio de um empregado seu que teria vivido aqui no Brasil e, por sua vez, ouvira dos índios a pérola inestimável de que falamos. É quase insustentável hoje em dia, dada a originalidade da canção e o avanço de outros achados científicos, que Montaigne tenha inventado isto! Melhor assim! Mas, como se não bastasse tamanha fortuna, um pouco mais tarde, em 1783, Goethe traduziu a canção para o alemão, encantando sobremaneira os românticos do século XVIII. Em Goethe, a canção da serpente virou quase um palavrão: “Liebeslied eines Amerikanischen Wilden”, isto é, “canção de amor de um selvagem americano”.
Dizem que nem Caetano, de quem o poeta Waly era amigo, soube desse affair. Waly não apenas traduziu, mas refez o poema, embelezando-o sumamente, excluindo sem pejo aquilo que considerou excrescência. A semelhança de um texto para o outro é tão grande que, se não fosse de fato uma transcriação[*] das mais geniais, seria um plágio! Mas, plágio não é! E dos muitos poemas de seu livro – inclusive este que é bem maior –, foi exatamente o feliz trechinho que já correu mundo, através dos séculos, a parte que Caetano (sem o saber) catou para cantar e encantar! Ficou perfeito em sua voz, e ainda mais perfeito ao ser cantado por ele e Lulu Santos, ao vivo.
Agora, depois desse admirável currículo da cobrinha, depois de uma tão invejável fortuna literária, a nossa serpente com sua canção, a brasileiríssima cobra coral, não nos parece mais tão patética quando para homens suplicantes e inspira colares de amantes! E quem a esta altura ousará pedir que ela pare de ondular? Ondula, ondula cobra coral!...
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Alguns dessas informações estão contidas de modo científico num admirável ensaio que li, certa vez, do Prof. Dr. José Alexandrino de Souza Filho (UFPB), a quem dedico a crônica desta segunda-feira.
[*] transcriação – “tradução, em sentido lato, de algo em que se põe tal criatividade que, alegadamente, o resultado vale como se fosse um original” (DICIONÁRIO HOUAISS).
“A transcriação, conceito formulado por Haroldo de Campos e posto em prática pelos expoentes do Concretismo, propõe um tipo de tradução criativa, em que o tradutor, na pele do escritor (ou do poeta), se permite alterar, acrescentando ou suprimindo determinadas passagens do original, estabelecendo uma espécie de diálogo criativo com o autor e a tradição literária.” (SOUZA FILHO).
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Antonio Fabiano
Belo Horizonte, 30 de agosto de 2010.
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Caro Fabiano,
ResponderExcluirPrazer enorme ler seus textos! Aqui, um raro exercício de busca das origens desse poema/música do Waly. Verdadeiro trabalho de historiador. Abraços!