NOS BICOS
DOS PÉS [*] se viabiliza um título de livro,
substancia, por outro lado, toda uma ‘arte poética’ materializada, nos seus
enunciados, ao longo dos textos que o formam. Mas mais ainda: a... ‘posição
corporal’, sugerida pela expressão, acentua propósito, intenção, que o poeta estratifica
nos seus versos – visionar o mais além, atmosferas longínquas ou próximas,
horizontes nítidos e palpáveis ou desvanecidos: ao alcance da ‘vista interior’.
Aliás, nesse propósito se inscreve também a consciência do ‘ilimitado’ que é
tecer um poema. E que poema? “Um poema que tivesse toda a poesia do mundo”,
mesmo que esse poema fosse afinal sinal de aniquilamento: “o poema me consome.
Mija no poeta”.
“Vestido de
lua e vento”, e eis o poeta-criador a aclarar, pela palavra, o seu itinerário
de vivências e de experiências, guiado por uma “luz (embora) bruxuleante” mas
que poderá iluminar a sua solidão: “um ser estranho a mim / é o que sou”.
Curiosa duplicidade: porque se “escrever doi”, a firmeza de uma vontade perante
o acto de escrever (de comunicar) articula-se amplamente como força de
determinado (e pessoal) destino – esse de ser poeta.
E daí, então
que os próprios sonhos familiares (“papai queria que eu fosse Doutor / me fiz
poeta”; que as ‘realezas’ em vivências da infância; que o “ser-se palhaço” no
percurso do quotidiano; que a atenção a pertinentes situações sociais (“o meu
Brasil é lindo”, mas é lugar de corrupção; que este plurívoco registo de afloramentos
se direccione, enfim, para uma certeza redentora: “É santa toda obra de amor”.
E o “galo canta na noite”, como no admirável hino de Prudência.
António
Salvado
Castelo
Branco
Portugal
Julho de
2015
[*] Tradução em Portugal de NAS PONTAS DOS PÉS
O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001) regista em duas formas: «em/nos bicos dos pés» (assim como o Dicionário Estrutural Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Porto, Lello & Irmão, de Énio Ramalho) e «em bicos de pés», significando «sem assentar os calcanhares no chão, apoiando-se nos dedos, na ponta do pé», «sem ruído, sem que se ouçam os passos».
ANTÓNIO SALVADO – poeta e escritor português
Natural de Castelo Branco, nasceu em 20 de fevereiro de 1936. Licenciou-se em Filologia Românica na Universidade de Lisboa. Em Coimbra e em Paris frequentou outros cursos superiores. Além de museólogo e de poeta, tem-se dedicado a outras tarefas, tais como tradução, ensaio, ensino e direção de publicações. Está traduzido para o francês, inglês, italiano e castelhano. Foi premiado várias vezes em seu país e no exterior. Em 1980 ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia de Personalidade Cultural, da União Brasileira de Escritores. Em 1986 foi galardoado com a Medalha de Mérito da Universidade Pontifícia de Salamanca. Em 06 de Fevereiro de 2010 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Santiago da Espada. Autor de uma extensa e respeitada obra literária, sobretudo poética, seu nome figura no panteão das grandes letras ibéricas e é um dos poetas mais originais da contemporaneidade.
* * *
Afirma AUGUSTO PAIVA, artista brasileiro responsável pelo projeto gráfico e capa do livro:
“(...) estive observando a parte tipográfica da capa.
Numa observação semiótica, fiz duas associações interpretativas.
1 - NA DOS (NADAR, VIAJAR COM A FORÇA DOS BRAÇOS) por conta da uniformidade da cor rósea;
2 - PONTAS PÉS ([PONTAPÉS], RISPIDEZ, RUDEZA OU UM DESPERTAR) do padrão preto [das letras sobrepostas].
Eu pretendi [na capa] expor razoalidade interativa entre esses dois vértices.”